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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    34 Junho 2015  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

ABERTURA DA DISCUSSÃO SOBRE PERCURSO 52


JANETE FROCHTENGARTEN[1]


Leitores, autores, a debatedora convidada Maria Rita Kehl, os colegas que fazem Percurso acontecer, estamos todos aqui hoje para conversar sobre os vários textos que compõem Percurso número 52, que, como o convite nos diz, é uma publicação especial, especial, também, porque, ao circular, pode incitar mais psicanalistas a produzir, a debater e a pensar no quanto e no como a psicanálise tem a dizer sobre os anos da tenebrosa ditadura civil-militar e, mais, sobre o ódio e o mal; anos que passaram enquanto cronologia, mas que não passaram. Há fatos concretos que prosseguem e, para além dos fatos, os anos da ditadura não passaram, também, pois seus efeitos, reconhecidos ou não, habitam em todos nós.

Na mesa em que o jornalista Alberto Dines participou, ao lado de Maria Rita, no evento sobre a ditadura aqui realizado em setembro do ano passado, ele nos alertou: que o evento pudesse não ser apenas uma efeméride. Podemos dizer que não está sendo! A revista está circulando, nós estamos aqui hoje, as Clínicas do Testemunho acontecem, a Comissão Nacional da Verdade e as várias comissões estaduais e locais registraram, fizeram-se presentes e fazem-se presentes.

Para mim, chamou a atenção que três articulistas deste número escreveram depoimentos pessoais, testemunharam para serem acolhidos, tornando, em parte, a própria revista uma Clínica do Testemunho.

A ditadura é uma memória no presente.

Um fato: no dia 15 de março passado, em meio aos protestos democráticos, havia um homem que posou de herói, falou como herói, afirmando em alto e bom som que repetiria o que fez: matar. Matar aqueles que para ele, no dizer de Agamben, tão presente nesta Percurso, são seres matáveis, sem mais, matáveis! O homem tem nome e não o esconde, é Carlos Alberto Augusto, que gosta de ser chamado, com orgulho, de: Carlinhos Metralha. Metralha, ex-delegado do DOPS, da equipe do Fleury. Em sua fala, ele não é um ex... ele prossegue!

Memórias no presente, mas de outro jeito, do nosso jeito, do jeito-vida, do jeito “para não esquecer, para não matar”: Galeano, Eduardo Galeano, o escritor uruguaio que morreu há poucas semanas, profundamente ligado à vida política dos países da América Latina, países que ele muito amou, um amor que deixou presente recolhendo e publicando histórias de nativos, tradições, lendas, memórias que vivem e que se transmitem de geração a geração.

Galeano nos conta que em um lugarejo, por aí, há o seguinte costume: quando um oleiro fica velho demais para fazer seus vasos, suas vasilhas, quando os olhos fraquejam e as mãos tremem, ele oferece a um jovem oleiro a sua melhor obra. O jovem a recebe. Ao invés de guardá-la para contemplá-la, o jovem atira o vaso recebido ao chão, estilhaçando-o em mil pedacinhos. O jovem, então, recolhe os pedacinhos, os incorpora à sua argila e se põe a trabalhar com esta argila. Memória incorporada.

E a nossa argila, a que nos compõe, no Departamento e aqui na Percurso? Ela também é feita de muitos pedacinhos.

Eis já fabricado, a partir da revista, um precioso livro composto por dois volumes. Mara Selaibe e Andréa Carvalho organizaram este livro coletando, re-editando, um grande número de entrevistas publicadas ao longo de 25 anos de Percurso. O primeiro volume já está publicado, foi lançado no ano passado e o volume 2 será lançado agora, no dia 30 deste mês, com a presença e a fala de Marcelo Vinãr, que, aliás, também escreve neste número da Percurso. No prefácio que Renato Mezan escreveu para o livro, embora ele se refira às entrevistas especificamente, está delineada toda uma trajetória histórica, que é também a história de nossa revista, uma história que prossegue, uma história que é percorrida por uma Psicanálise múltipla, em movimento, que se pensa e re-pensa e que pensa e re-pensa o nosso mundo. Inclusive, no número da Percurso que aqui nos reúne, um psicanalista, Paulo Endo, lança e deixa para nós uma pergunta, ao terminar seu texto, questionando-se, trazendo-nos inquietude. A questão é: será que a nossa claudicante democracia pode ir, desta forma, avançando? Ou “será a democracia uma criatura de grandes proporções, que não saberá se mover, senão a passos largos?”.

Bem, continuando... Há, também, outros pedacinhos preciosos, menos visíveis, de uma obra que foi realizada e que integra nossa argila.

Vou mencionar duas mulheres, duas mulheres que, assim eu penso, têm tudo a ver com este nosso momento.

Regina Schnaiderman e Madre Cristina.

Regina que, tantos anos atrás, nos falava de Winnicott, de Pontalis, de Laplanche, de Rosenfeld... que nos trazia a literatura, a política, o poder no cotidiano, a filosofia, as artes, com muita paixão por esta psicanálise, a psicanálise que, aos ser fertilizada por tudo isto, é a que nos apaixona e que anima a Percurso a cada número.

E a Madre, cujas ideias e cujas lutas todos conhecem. É sobre a Madre que quero contar um episódio, que tem a ver com o lançamento do número 1 da Percurso, com a nossa história.

Éramos poucos, então, os que moviam a publicação e fazíamos de tudo, inclusive a busca de patrocínios, com a indicação de contatos que José Paulo Kupfer, então nosso jornalista responsável, conseguia para nós; nossa colega Marilucia Meirelles passava horas aguardando para ser atendida em salas de espera de executivos de bancos e de indústrias, para conseguir publicidades que trariam o esperado e imprescindível dinheiro. Em várias buscas ela teve êxito. A revista iria ser feita!

Bem, aí aconteceu...Quando, finalmente, o boneco do primeiro número de Percurso ficou pronto, como eu iria estar por aqui, no Sedes, fui designada para levá-lo à Madre. A Madre participava, acompanhava os movimentos que ocorriam nesta casa, nesta sede que ela criou e pela qual zelava. Afinal a revista iria sair por aí, transportando consigo o nome do Instituto, e o cuidado deveria ser grande.

Lá fui eu, toda orgulhosa, com o boneco em mãos, apresentá-lo à Madre; ela, com seus olhinhos por detrás das grossas lentes, com sua visão tão prejudicada, a madre VIU! Viu uma das publicidades.

Trago-a para vocês verem o que a Madre viu, pois esta publicidade já é história, está no número 1, já esgotado, da revista. Não sei: ou nós não tínhamos visto, ou, se vimos, não nos tocamos, ou, não quisemos ver...

Eis aí o cartão de crédito Diners. DINERS on the rocks, e, em letras bem ressaltadas: TER é PODER... (eu levei uma cópia plastificada que circulou pelo público)

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Quando a Madre chega a esta página, levanta o rosto e fixa o meu: “Filha, não pode, como assim, ter é poder? Ter cartão de crédito é que é poder fazer algo nesta vida ????”

Eu, surpresa, atônita, já vendo nosso tesouro ameaçado, digo algo assim: “Bem, Madre, é que precisávamos, a revista já vai para a gráfica, o lançamento...”

“Filha, não pode, assim não dá...”.

Eu, um pouquinho mais composta: “Madre, a senhora sabe, nos conhece, sabe que não é isto que pensamos...”.

O rosto da Madre, preocupado, irritado, mas já com um pequeno brilho matreiro, volta a me encarar e diz, enfática: “Vai filha, vai, vai! Não me mostre mais!....”

Difícil, não foi, Madre? A senhora engoliu, engoliu, engoliu como quem engole alguns rocks a seco, porque acreditou em nós e, possivelmente, sabia que não estava cedendo no essencial. E, assim, saiu a Percurso número 1! E assim, aqui estamos, hoje, reunidos em torno deste número, o número 52.

Para terminar esta abertura, quero fazer uma homenagem sentida. Lembrando. Memória bem presente. Lembrando que dias atrás, no dia 28 de abril, morreu Inês Etienne, aos 72 anos; presa e muito, muito torturada, Inês tinha várias sequelas graves, o que não a impediu de prosseguir na luta, denunciando torturadores e localizando a Casa da Morte de Petrópolis.

Da Casa da Morte desapareceram, para sempre, ao menos 20 presos políticos; seus corpos nunca foram encontrados.

Bem, Maria Rita foi convidada a escrever para este número da Revista e não pôde aceitar na ocasião, pois trabalhava intensamente na Comissão Nacional da Verdade. Mas, hoje aqui está.

Obrigada a você, Maria Rita! A palavra é sua, e, depois, é claro, a palavra é de todos os que quiserem ir falando.

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[1]Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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