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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    34 Junho 2015  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

SOBRE O DEBATE DE PERCURSO 52


CRISTINA BARCZINSKI[1]

Em torno da histórica edição 52 – Figuras políticas do mal: limites do humano – o Conselho Editorial da Revista – Percurso e o Conselho de Direção do Departamento de Psicanálise organizaram um debate no dia 9 de maio no Instituto Sedes Sapientiae, para o qual foi convidada a psicanalista Maria Rita Kehl, ex-integrante da Comissão Nacional da Verdade. A ela juntaram-se Janete Frochtengarten, coordenadora do evento, e Renato Mezan, coordenador editorial da Percurso, nesta que foi a 35ª discussão de uma edição da revista. Embora normalmente estas discussões ocorram em uma sala de aula, com o público disposto numa roda de conversa, desta vez, diante da grande quantidade de pessoas presentes, foi necessário o uso do auditório.


Depois da fala de abertura apresentada por Janete, que incluiu um vívido relato sobre os momentos inaugurais da Percurso, Maria Rita, comentando a importância desta edição da revista, teceu algumas considerações sobre como a violência é constitutiva da sociedade brasileira desde seus primórdios. Como dentro da Comissão a psicanalista se dedicou à pesquisa sobre a violência de Estado sobre as populações indígenas, relatou que durante a ditadura civil-militar, calcula-se que pelo menos 8000 índios foram mortos. Comentou também a demora do país em abolir a escravidão, o que também contribuiu para banalizar a violência de classe desde esta época. Mesmo a abolição, feita de forma abrupta, não fez mais do que jogar da noite para o dia os ex-escravos nas ruas, criando uma massa de negros sem condições de sobreviver dignamente; da mesma forma, a República foi inaugurada com o massacre de Canudos. Para ela, a ditadura acabou num suspiro e com uma anistia “que apaga tudo”, fazendo do Brasil um dos poucos países que não puniram seus torturadores. Como a polícia segue militarizada, continua matando mais ainda, fazendo agora vítimas que, na maioria das vezes, permanecem anônimas, reproduzindo os padrões terríveis da ditadura. Se não tivesse havido Rubens Paiva (e sobretudo, se este assassinato não estivesse impune até hoje), possivelmente não haveria o Amarildo. Ambas as famílias não conseguem encontrar os corpos, homenagear seus mortos nem punir os culpados.

A discussão começou na palavra de um membro do coletivo de psicanalistas Margens Clínicas, que atende vítimas da violência de Estado, quando este afirmou sentir, enquanto psicanalista, falta de ferramentas para lidar com a população pobre e negra de periferia. Afirmando que o inconsciente não tem cor, Maria Ângela Santa Cruz lembrou que é preciso pensar politicamente a psicanálise, pois esta não é exercida num éter, mas sim num determinado contexto histórico. Os negros jovens de periferia são vítimas preferenciais dos assassinatos cometidos por policiais em boa parte das grandes cidades brasileiras. Esta violência, sustentada pela sociedade, só gera desesperança e um ódio cada vez maior em muitos destes jovens. Este tema gerou comentários sobre o preconceito racial, inclusive a fala de Heidi Tabacof sobre a importância do evento sobre o racismo organizado pelo Departamento em 2013, embora tenha lamentado a impossibilidade de manter o Grupo de Trabalho surgido em torno do tema, por conta das tensões de conteúdo racista surgidas entre os próprios participantes.

Maria Laurinda de Sousa mencionou alguns autores que, dentro da psicanálise, além do próprio Freud, se ocuparam do social, como Chaim Katz, Pontalis e Castoriadis. Afirmou que uma das piores marcas da ditadura foi impedir que as famílias pudessem prantear seus mortos e atribui ao apagamento destas mortes o fato de que jovens estejam hoje nas manifestações de rua defendendo a volta deste regime.

Voltando à composição desta edição, Renato Mezan comentou que o maior desafio foi que ela pudesse tematizar as figuras políticas do mal sem cair em uma forma panfletária e pouco psicanalítica – o que certamente não aconteceu. Refletiu sobre os efeitos da ditadura naqueles que não viveram o período, as marcas que permanecem na experiência subjetiva do brasileiro, compondo um caldo cultural. Acredita que uma delas seja o fato de que toda e qualquer autoridade é vista como ilegítima e expoliadora, a partir da crença de que o poder tem como único propósito abusar daqueles que dele não fazem parte.

Maria Cristina Ocariz refletiu sobre como as Clínicas do Testemunho são expressão da presença da política na psicanálise. A partir da elaboração de uma narrativa de vítimas da violência de Estado, aliada ao atendimento de seus familiares, é possível procurar compreender este período. Segundo ela, a edição n°52 honra a todos os psicanalistas.

Mario Fuks, retomando o trabalho dos articulistas, falou da importância desta edição e do trabalho para que os artigos fossem reunidos. Ele concorda com a mensagem de Paulo Endo e vê a psicanálise avançando, através da conversa permanente entre clínica, política e história. Citando o conto de Eduardo Galeano apresentado por Janete, descreveu o trabalho clínico como um processo no qual “analisamos, decompomos e os sintomas aparecem como aquilo que está constituído por pedaços que contêm dentro de si outros pedaços, na perspectiva do recalque, mas também, às vezes, como vazios ou bolhas na argila, que teriam a ver com o recusado.”

Moisés Rodrigues da Silva Jr. acrescentou que é preciso manter a tensão entre o público e o privado e que a psicanálise deve sempre estar implicada com o social, ao incorporar aquilo que não tem palavras, ao fazer falar aquilo que não tem representação. Também ressaltou o papel fundamental de Dodora Arantes na proposta e elaboração desta edição.

Segundo Tiche Vannuchi, a edição 52 abordou muitos aspectos importantes, como a diferença que existe entre o traumatismo por catástrofe social e aquele constitutivo, assim como a diferença entre o trabalho com os testemunhos e aquele com o recalque neurótico.

Finalizando a discussão, Maria Rita lamentou a permanente indiferença diante dos fenômenos da violência de Estado sobre as populações das periferias e favelas. Por outro lado, as denúncias e prisão de vários políticos identificados com o PT deixaram boa parte da esquerda sem discurso, o que abriu espaço para o linchamento moral de direita. Desta forma a anomia se instala, e com ela outros discursos – fundamentalistas - ganham força. Aqueles que invocam o poder militar, achando que estão pedindo lei e ordem, não sabem o que estão pedindo.

O desafio agora é superar a decepção e reconstruir a democracia, permanecendo dentro de seus limites. Para que isto seja viável, é preciso recuperar a história deste período tenebroso e, finalmente, enterrar seus mortos. A Percurso n. 52, tecida com testemunhos pessoais, reflexões sobre o mal, seus efeitos sobre as subjetividades e seu enfrentamento a partir do pensamento e da prática psicanalítica, é certamente uma parte importante de um trabalho de luto possível e necessário.



 

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[1]Psicanalista. Aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; integrante da equipe editorial do Boletim Online e do grupo Sexta Clínica.




 
 
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