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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    35 Agosto 2015  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

EM HOMENAGEM A FRANKLIN GOLDGRUB


CRISTINA BARCZINSKI [1]



Franklin foi embora.



Foi Caetano Veloso quem me avisou desta partida, deixando a notícia ainda mais surreal. Uma colega havia publicado no facebook um escrito do Caetano contando como tinha conhecido Franklin num espetáculo universitário de música, nos anos 60, no Rio de Janeiro[2]. Custei a reconhecer, na foto daquele menino ao violão, Franklin Dario, compositor de uma bela canção[3] que havia encantado Caetano, o mesmo Franklin Goldgrub que eu conhecia.

Ingressei na graduação na PUC-SP há mais de vinte anos atrás, recém chegada do Rio de Janeiro. Na primeira aula de introdução à Psicanálise, surgiu Franklin, declarando-se pós-lacaniano. Começou a escrever na lousa os tópicos que resumiam todo o semestre, enquanto nos introduzia na história da teoria psicanalítica, numa voz pequena e rouca, de costas para a turma. Os alunos se agitaram, começaram conversas paralelas e fiquei impressionada tanto com a riqueza de sua análise do pensamento freudiano quanto, simultaneamente, com sua aparente absoluta indiferença pelo que se passava em sala de aula.

Foram alguns semestres, mais dois anos num grupo de estudos com colegas do curso e sua coorientação na minha monografia de final de curso. Assim conheci sua generosidade em dividir o conhecimento, seu rigor teórico e seu enorme senso de humor, apesar da timidez. Uma das lembranças mais saborosas era a de quando passava na secretaria do departamento de Psicologia, e o via conversando com seus grandes amigos, boa parte deles professores do núcleo de Fenomenologia. Circulava a tradicional troca de piadas e gozações mútuas, inclusive em relação à diferença de abordagem teórica; havia um tom de molecagem e muito carinho entre eles.

Franklin era torcedor fanático do San Lorenzo - paixão partilhada pelo papa Francisco -, na época um modesto time de futebol argentino. Certa vez estava com outros colegas de curso, descendo as rampas da PUC, conversando com Franklin sobre alguma questão teórica, quando o vimos estremecer, parar imediatamente de falar e, como que atingido por um raio, se aproximar rapidamente de um rapaz que vestia o uniforme de um time de futebol. Conversou alguns minutos e voltou empolgado, simplesmente porque o tal rapaz, que ele não conhecia, era torcedor do amado[4] San Lorenzo...

Mestre em Filosofia e doutor em Linguística, a questão do discurso sempre lhe foi um tema fundamental. Certa vez levou em sala de aula o relato de uma sessão e nos desafiou a interpretar aquele discurso como se fôssemos detetives em busca da resolução de um mistério. Afirmava que o analista, segundo Freud, deveria ter uma escuta apoiada na atenção flutuante, em tudo semelhante, enquanto produzida pelo inconsciente, à associação livre do paciente. Além disso, deveria renunciar a qualquer esforço em tentar memorizar o que o paciente dizia (anotar durante a sessão, nem pensar). Quando tentávamos discutir questões de técnica com ele e pedíamos algum exemplo da clínica, ele sempre respondia, impassível: “Eu não me lembro de nada...”

Era um pesquisador incansável dos temas que o fascinavam, que abarcavam, além da psicanálise, literatura, filosofia, linguística, economia, política, antropologia e, é claro, futebol[5]. Também no grupo de estudos, ao lado de um roteiro impecável de leituras da obra freudiana e ótimas discussões, tenho a lembrança de ter participado de uma partida animada de futebol de botão, outra paixão deste professor. Ele mantinha em casa um depósito de times em caixas de sapato, cujas peças ele mesmo tinha fabricado com tampas de plástico (que, se não estou enganada, eram de mostradores de relógio), pintadas em verniz colorido. Franklin levava a sério a atividade de botonista, na época chegava a participar de campeonatos pela cidade.

Por outro lado, algumas vezes se colocava como alvo fácil de críticas, ao defender com veemência aquilo em que acreditava. Um dos temas polêmicos que o convocava era a questão do Oriente Médio. Franklin era judeu e, quando jovem, tinha morado em Israel: desde cedo se viu comprometido com o destino do país e de seu povo. Durante o curso, não me lembro do assunto vir à tona, só depois chegaram-me artigos publicados por ele sobre o assunto. Respondendo às críticas de Roger Waters sobre a construção de barreiras por parte do estado de Israel, Franklin afirma: “Ou Waters desconhece inteiramente o tema ou age de má fé. Ou talvez ambos. À ignorância da história do conflito soma uma hipocrisia incomensurável, que alia contraditoriamente o ‘humanismo pacifista’ com o belicismo semifeudal das ditaduras muçulmanas, que criaram e respaldam o terrorismo palestino[6]

Mas lembro-me, sobretudo, do seu enorme interesse pelo tema da aquisição de linguagem, acompanhando inclusive experimentos feitos com animais (recordo-me especialmente do seu relato dos experimentos com os macacos bonobos, capazes de aprender um repertório de cinquenta palavras). Embora valorizasse a grande importância dada por Lacan à linguagem, cujo aprendizado constituiria o momento fundamental da passagem da condição de objeto para a condição de sujeito, lamentava que não houvesse por parte de seus seguidores um estudo aprofundado sobre o processo de aquisição da mesma. Em relação a este autor, mesmo criticando aquilo que definia como excesso de hermetismo, admirava-o na sua proposta de retorno a Freud na busca de expurgar a psicanálise de todos os fatores orgânicos e ambientais. A respeito da contribuição lacaniana, afirmou: “O reconhecimento da fantasia e do desejo como irredutíveis a qualquer origem corporal ou ambiental devolveu à teoria seu princípio reitor – o não saber –, o objeto que legitimamente lhe cabe – o inconsciente – e o analista à única humildade que não poderia ser inteiramente falsa: reconhecer-se enquanto animado pela máscara que lhe é emprestada”[7]. Sábias e belas palavras de um lacaniano sem lacanismo... Em outro estudo, Franklin buscou uma analogia entre a antropologia estrutural de Lévi-Strauss e a psicanálise freudiana, através da análise dos conceitos de mito e Complexo de Édipo, exogamia e proibição do incesto, assim como as práticas terapêuticas do xamã e do psicanalista. Concluiu que, mesmo guardadas as diferenças entre os autores, “tanto Freud como Lévi-Strauss perscrutam o inconsciente via linguagem, ou seja, procuram captar através do discurso (imaginário: fantasia e mito) os fenômenos relevantes para pensar as categorias de desejo e lei ”[8]

Apesar de tê-lo escolhido para entregar-me o diploma na cerimônia de formatura (a que ele compareceu com uma evidente dose de má vontade, avesso que era a este tipo de ritual), acabei perdendo o contato com Franklin depois da graduação, fora um ou outro encontro carinhoso, porém casual, nas ruas das Perdizes. Falar desta perda agora, num trabalho de luto que retoma escritos e lembranças, se me enche de tristeza - com alguma pitada melancólica -, confirma também a certeza do privilégio desta convivência durante minha formação.




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[1]Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise, integrante da equipe editorial do Boletim Online.

[2] http://www.coisasjudaicas.com/2015/07/caetano-veloso-escreve-sobre-franklin.html

[3] https://www.youtube.com/watch?v=PNTs2y5OahQ

[4]Franklin compôs uma canção para o San Lorenzo, seu e-mail pessoal fazia referência às cores do time, cores estas que também decoram seu site http://franklingoldgrub.com/ , onde constam vários textos, a lista dos onze livros publicados com a versão integral de alguns capítulos, além das músicas por ele compostas.

[5]Em Futebol, arte ou guerra, propõe: “Este não é um livro de história do futebol e não se preocupa em louvar equipes ou exaltar jogadores que marcaram época, embora não deixe de citá-los. O seu objetivo fundamental consiste em repensar as regras do jogo e entender porque, sem que elas fossem modificadas, ocorreram mudanças tão drásticas nesse esporte, a maioria de natureza negativa, como a queda da média de gols e a notória diminuição dos grandes jogadores”.

[6] “Carta aberta aos cúmplices de genocidas”. Este escrito faz parte de um conjunto de treze artigos que encontram-se no link http://franklingoldgrub.com/psico/oriente-medio/

[7]Goldgrub,F. Trauma , amor e fantasia. São Paulo: Escuta, 1988, pg. 163.

[8]Goldgrup, F. Mito e fantasia: o imaginário segundo Lévi-Strauss e Freud. São Paulo: Editora Ática, 1995, pg. 198.




 
 
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