PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    35 Agosto 2015  
 
 
CINEMA

ADEUS À LINGUAGEM, VIVA A LINGUAGEM


DÉBORAH DE PAULA SOUZA [1]



Em Adeus à Linguagem, Jean-Luc Godard reafirma a potência das imagens e palavras vivas. Seu ensaio visual é uma intervenção na fala que não diz mais nada e na hipnose da tela do celular. Nessa operação estética ele convoca a poesia, a filosofia, o bicho e a água – para dar a ver o mundo vivo, que se chamava floresta.

Criar linguagem para se despedir dela. É assim o último filme de Jean-Luc Godard, Adeus à Linguagem. Uma espécie de mergulho, pois boa parte do tempo ele nos mantém na pele da água, na enchente, no naufrágio, na plataforma de onde se ouve o apito do navio. Godard nos coloca à deriva e com isso desdobra a língua. O Adeus pode virar Ah, Deus. O filme ganhou o grande prêmio do Festival de Cannes em 2014 (Roxy, o cachorro de Godard e um dos protagonistas, levou o Palm Dog). Na época, o velho cineasta deu uma entrevista, hoje disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Bou1w4LaqMo. Explicou que no canto da Suíça Francesa, onde ele mora, Adeus também significa Olá. É simultaneamente despedida e saudação. Afirmou que Freud é o começo do cinema, que é o mal-estar na civilização. E fez piada com nossa paixão por tecnologia: “O que quer dizer SMS? As pessoas mandam SMS como se fosse um SOS. Significa: Save My Soul”.

Durante os 70 minutos do filme, tentei me agarrar a alguma coisa. Precisava fazer o texto que, num ímpeto de ingenuidade, sugeri a este Boletim. Mas não dava para me agarrar a nada, o que Godard quebra é a ilusão de que haveria algo a que se agarrar. O filme se desenrola por excesso: citações iluminadas são combinadas às imagens desconcertantes. Assisti duas vezes. Na primeira, contemplei sem entender. Na segunda, idem, mas levei uma caneta. Queria copiar as citações do narrador. Por exemplo, aquela em que ele detona qualquer pretensão de novidade: “As grandes invenções são o infinito e o zero”.

Comecei a copiar as frases no escuro, sem perceber que a tinta da bic havia acabado e que, portanto, passei uma hora escrevendo sem escrever. Quando a luz acendeu e me dei conta disso, tive um acesso de riso. Como se tivesse caído na armadilha do nome do filme. Que contém Deus, em francês e em português.

As traduções importam. Tanto que no início da exibição a produção avisa que, a pedido do diretor, alguns trechos não tinham sido traduzidos (a maioria desses trechos era em alemão, simulações de ordens de soldados da Segunda Guerra). O segundo aviso é pura provocação do cineasta (talvez dirigida à quem lhe peça objetividade?): “A realidade é o refúgio dos que não têm imaginação.”

Na tela, uma mulher bonita surge ora com o marido ora com o amante. Seja qual for a dupla, eles parecem entediados e são duplicados em espelhos ou telas - filmes antigos passam na televisão, evocando bailes, jazz americano, cenas de amor e cenas de horror. Enquanto na TV ainda persiste alguma narrativa, na tela surgem imagens recorrentes: um homem disparando um revólver, banheiras onde escorre sangue pelo ralo. Na pedagogia de Godard, os livros estão pelas ruas, um professor lê para uma mulher enquanto os transeuntes seguem hipnotizados pelas telas do celular. E tem o cão, Roxy, com seus olhos enternecedores. É ele quem vê o que não vemos? Lembrei na hora de um livro antigo de Hilda Hilst, Com os meus olhos de cão, cuja narrativa quebrada revela o enlouquecimento de um velho professor: “(....) Rompe-se a negra estrutura de pedra e te vês num molhado de luzes, um nítido inesperado (...) foi invadido de cores, vida, um fulgor sem clarão, espesso, formoso, um sol-origem sem ser fogo. Foi invadido de significado incomensurável. Podia dizer apenas isso.”

E o que é “apenas isso” que Godard filma em 3D? Um delírio visual pleno de vitalidade que não corresponde às expectativas de sentidos ou pressupostos. Assim como o velho professor de matemática do livro de Hilda Hilst, Godard desconfia das equações disponíveis no mundo. No livro e no filme, o delírio produz. Teria a escritora Hilda Hilst sussurrado alguma coisa para Godard antes que a linguagem acabasse? Há muitas semelhanças na temática do livro dela e do filme dele. Ambos falam de Deus, da guerra, da morte, e também da impossibilidade de falar. No caso de Godard, os acontecimentos são em 3D. Alguns jornais disseram que ele ri da técnica. Sim, ele identifica de imediato a profundidade fake. E joga o cão (e a plateia) na água. Je vous salue, Godard, toda vez que você sussurra para todos nós: vivre sa vie.

O cineasta força a pele do filme, desfiando imagens de cidades, estradas, um barco, turistas, a floresta, a mulher lavando as mãos no riacho. Um cinema instagram, cheio de filtros que tingem folhas de roxo e vermelho, como as toalhas do banheiro, onde cenas escatológicas não faltam. A nudez da mulher é tão bela quanto estranha. No chuveiro, o marido força a intimidade, ela foge, molhada, pedindo que Deus perdoe a todos nós. Seja o casal ou o triângulo amoroso, ninguém tem para onde ir. Mas à beira do mar, um outro casal muito jovem prepara a partida para a América, levando livros de filosofia. Quem não leu os livros, não adianta procurar no Google.

Em muitos e desordenados momentos a sala escura é invadida por florestas, mar, rio e chuva (a protagonista quase sempre de capa ou nua). Frases escorrem: Uma mulher não pode fazer mal a ninguém, ela só pode amar e matar. Ou: Estará a sociedade preparada para o assassinato como modo de se evitar o desemprego? (Impossível não pensar no naufrágio de imigrantes).

Numa viagem, numa noite de temporal, o casal estaciona no posto de gasolina e o cachorro, que vivia na floresta, pula no carro. O homem quer expulsá-lo, mas a mulher diz: “Não, ele fará bem a nós”. Cenas de sexo e lençol e o homem que deseja. O quê? Alguma coisa que se possa falar.

E as falas surgem como aparições, plenas de beleza. Escritores, pintores e filósofos são resgatados da inundação, em recortes a la Godard: “Nós nunca nos amamos”. “O terrorismo é a segunda vitória de Hitler”. “O que eles chamam de imagem é a morte do presente”.

Não existe mais o mundo que Godard viu nem o que Monet pintou, mas o cineasta cita o pintor, dizendo que é preciso pintar o que não se vê. A mesma operação rege suas palavras. É preciso dizer o que não se diz, escutar o que não se escuta. Guardei comigo a cena do homem que implora por palavras como se implorasse por amor. De algum modo compreendi a lição reveladora das primeiras cenas: não é possível reduzir a África a uma ideia. Nem uma mulher, nem a natureza, nem Deus, nem a linguagem. Godard desconfia das ideias, coloca as crianças jogando dados, recupera o poder do acaso, termina o filme com o choro e o balbuciar de bebês, de modo quase imperceptível. Na tela preta do fim, surge a lista de créditos dos seus interlocutores, que passa por Faulkner, Georges Sand, Françoise Dolto e outros habitantes das florestas da linguagem, os criadores de mundos, do sistema decimal, do código civil e da lei que trapaceia quando nega a própria violência. Tudo isso Godard resgata da enxurrada, numa vertigem. Com os seus olhos de cão.




______________________________


[1]Psicanalista e jornalista. Aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do grupo de trabalho Sexta Clínica e terapeuta-pesquisadora da Clínica do Testemunho do Instituto Sedes Sapientiae.



 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/