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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    35 Agosto 2015  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

UM NOVO DOGMATISMO E A PRODUÇÃO DE INTOLERÂNCIA: SUSTENTAÇÃO MANÍACA DO TRIUNFO NA DENEGAÇÃO DOS FANTASMAS[1]


LIANE PESSIN[2]



Nos últimos anos tenho vivenciado uma espécie de retorno contundente de discursos dogmáticos. No cotidiano e, obviamente, também, na prática clínica, posições e avaliações absolutas em relação a valores e formas de vida se impõem com poucas possibilidades para um talvez. Junto a estas posições supostamente seguras e objetivas se associa uma atitude de intolerância e violência com o outro que, curiosamente, vem revestida de uma aparência crítica e inovadora.

No ano passado, 2014, nos grupos de trabalho do EBEP em Porto Alegre, falamos muito a respeito das nossas posições e da ética psicanalítica frente a esses dogmatismos e intolerâncias. Mais especificamente nas reuniões do grupo de trabalho de Derrida, abordamos intensamente estas questões na medida em que discutíamos sobre a complexidade do encontro entre hospitalidade e desconstrução. Tomada por esta temática me debruço sobre a obra de Derrida e encontro inúmeras ferramentas para pensar a produção de realidades no contemporâneo e, notadamente, as experiências totalitárias em questão. Um livro me salta aos olhos e, já na contracapa, me anuncia o tecido por onde eu poderia fazer os meus bordados: Espectros de Marx: O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Nele encontro operadores trabalhando na análise da produção de novos discursos totalizantes, e a referência da intolerância como um sintoma deste processo. Desde aí é que penso em construir este trabalho; pondo em jogo, novamente, os elementos que Derrida disponibiliza quando se responsabiliza pela herança de Marx. Tais elementos surgem da análise, feita por Derrida, da fragilidade da hegemonia do neoliberalismo e da lógica discursiva construída para tentar dar sustentação a ele. Neste cenário Derrida se utiliza de recursos imagéticos como espíritos, espectros e fantasmas, assim como de processos vitais como herança e trabalho do luto. No encontro com estes elementos e as posições de Derrida ensejarei uma leitura sobre a produção de um novo dogmatismo e sua parceira: a intolerância.

A responsabilidade de Derrida frente aos espectros de Marx

Comecemos com as palavras de Derrida a respeito do título do livro em questão:

Ao propor este título, Espectros de Marx, pensei inicialmente em todas as formas de uma obsessão que me parece, precisamente, organizar isso mesmo que domina o discurso hoje. Na ocasião em que uma nova desordem mundial tenta instalar seu neocapitalismo e seu neoliberalismo, denegação alguma consegue desembaraçar-se de todos os fantasmas de Marx. A hegemonia organiza sempre a repressão e, portanto, a confirmação de uma obsessão. A obsessão pertence à estrutura de toda hegemonia. (p.58)

Em 1993, ao abrir um Simpósio Internacional denominado Para onde vai o marxismo?, na Universidade de Riverside, Califórnia, Derrida aponta que, principalmente na universidade, estava se correndo o risco de tratar “Marx contra o marxismo”, ou seja, de criar uma dissociação entre Marx e sua obra por um lado, e o espírito revolucionário e a prática política por outro. Esta estratégia se punha a classificar e entender a obra para poder calar o imperativo político que ela contém. Segundo Derrida, esta dissociação negava a obra, pois uma obra é também seus desdobramentos. Tais desdobramentos são o trabalho que acontece a partir do contínuo e eterno retorno de suas questões na vida como ela é. O que retorna, retorna numa espécie de ambiente fantasmagórico. Assim, os desdobramentos de Marx são a produção de seus espectros retornando. Lá, em 1993, Derrida assinalava, ainda, que esta operação de amortecimento do espírito revolucionário também se encontrava na cultura. A tarefa daquele momento, para a sustentação da lógica hegemônica, era a da criação de um estereótipo de Marx e outro do marxismo; e assim, sob a égide de uma feição de tolerância “neutralizar uma força-potencial, primeiramente debilitando um corpus, fazendo calar nele a revolta (aceita-se o retorno, desde que não retorne a revolta que inspirou primeiramente o levante, a indignação, a insurreição, o elã revolucionário)” (p. 51).

Então, Marx poderia retornar, mas em silêncio. Calado, Marx estaria morto e o marxismo em decomposição; o que viabilizaria tratar disto com a calma necessária para não ser incomodado pelos gritos dos espectros. Marx não pertenceria mais aos comunistas ou àqueles que atendem aos seus chamados, agora ele é um grande filósofo que faz parte do cânone da filosofia política ocidental.

Desde este ambiente de análise Derrida se posiciona, no seminário em questão, como aquele que quer falar deste tema com Marx, reconhecendo sua herança, ou seja, a presença de seus espectros e do seu espírito revolucionário. Quanto à herança, Derrida nos alerta que é preciso assumir a herança do marxismo por que ser herdeiro não é uma escolha. A herança é uma responsabilidade, não uma escolha. No entanto a herança é sempre uma tarefa; ela não é dada, ela está na nossa frente como uma tarefa a ser enfrentada. É como uma dívida seletível: temos que reafirmá-la para transformá-la tão radicalmente quanto necessário. Não se trata de devoção passadista nem de saudosismo, mas de disposição e capacidade para enfrentar o luto que a herança nos impõe. Daí a intrínseca relação entre luto, herança e devir. A experimentação da afirmação singular do devir se faz pela travessia do luto do que é herdado. Derrida entende que para seguir afirmando a potência da vida temos que assumir nossa condição de enlutados, neste caso, de herdeiros dos espectros de Marx que retornam, mesmo que às vezes, denegados.

Mas afinal, o que é um espectro para Derrida?

Um espectro é a frequência de uma certa visibilidade; mas uma visibilidade do invisível. Ele tem uma estrutura de aparecimento – desaparecimento. Não há como fechar os olhos ou os ouvidos para ele. À princípio ele nos olha, nos encontra antes, nos espreita. Produz uma frequentação angustiante. Podemos passar fugindo desta frequentação, deste retorno, ou conjurá-lo. Ao conjurar um fantasma convocamos e acolhemos; restringimos e expulsamos. Nesta tensão conjuratória entre a promessa que ele traz e nos lembra e o esquecimento necessário para impor nossa existência, neste vão, é que podemos criar o novo. Derrida pontua que esta angústia frente ao fantasma é efetivamente revolucionária; pois ao conjurá-lo invocamos a morte para inventar o vivo e fazer viver o novo, para fazer vir à presença o que ainda não esteve aí.

Os fantasmas aparecem quando menos se espera: povoam e sustentam o presente; daí a ideia de Derrida de que o presente não é contemporâneo. A anacronia do presente produz medo e o desejo é o esquecimento. Sendo assim, o espectro ameaça a ordem tranquilizadora dos presentes. Para Derrida a não contemporaneidade do presente vivo cria o que poderíamos chamar de experiência do desajuste, mal-estar daquilo que parece não se ajuntar. Explicando melhor, o que desajusta é essa presença dos que não estão tão claramente presentes e vivos, ou porque não estão mais ou porque não chegaram ainda. Os fantasmas não são só os do passado, são os do devir. Desde esta perspectiva a existência é uma obsessão por que ela se faz pelo deslocamento dos fantasmas.

Entendendo, agora, um pouco melhor a ideia de espectro e sua potência de produção, podemos ensejar a política espectral de Marx trazendo como referência uma frase que se encontra na abertura do Manifesto do partido comunista, qual seja:

Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo.

Marx abre o Manifesto do partido comunista com a palavra espectro. Como nos diz Anamaria Skinner (tradutora de Espectros de Marx) o texto de Marx é povoado por fantasmas, espíritos e aparições. Ele trabalha exaustivamente para sustentar o espírito da revolução analisando a sua história e as vicissitudes de seu devir no capitalismo. Esta experiência espectral do devir – o espectro do comunismo rondando a Europa – por exemplo, é fantasmagórica por que anuncia o acontecimento e coloca no presente um conteúdo que parece não ser seu mas que está aí.

Com sua atitude histórico-crítica Marx tenta aprender sobre as formas como os espíritos retornam e se apresentam. Quem sabe tentasse imaginar sobre as formas espectrais que trariam os retornos dos espíritos revolucionários. A disposição de trabalhar dentro desta fantasmagoria vem do desejo de se empoderar com ela; assim acreditava poder enfrentar a fantasmagoria do capitalismo.

Para Derrida, Marx também sabia das possibilidades inusitadas de manifestação dos espíritos, do estranho familiar que eles põem em cena quando retornam através de seus espectros - experiência inquietante e sinistra também apontada por Freud.

Marx se sentia tomado pelos fantasmas; eles o perseguiam com aparições e prenúncios. Não queria acreditar neles, mas só pensava neles. Acreditava que sabia muito bem sobre as diferenças entre eles e a efetividade viva. Então, assim como seus adversários, tentava expulsá-los, denunciá-los e exorcizá-los; só que com uma metodologia espectral diferente, a análise crítica. O uso desta metodologia aponta para a sua percepção da necessidade do trabalho do luto para fazer promessas efetivamente de vida, na vida. Para conjurar os fantasmas Marx os convocava, conversava com eles, os recebia com amor e ódio, com desejo pelo que eles anunciavam e com medo. Derrida entende que com esta atitude ele tentava evitar operações de contramagia que são incoerentes com o espírito da revolução. Marx queria atravessar os fantasmas, queria trans-formar.

Derrida nomeia esta metodologia de enfrentamento espectral de Marx de exorçanálise. Com ela Marx trabalhava na direção de exorçanalisar a espectralidade dos espectros. Para Derrida, tarefa interminável e necessária, justamente, para manter o espírito revolucionário; para Marx, o sucesso deste trabalho seria o controle dos espectros. No 18 Brumário, por exemplo, Marx refere que é preciso “reencontrar o espírito da revolução sem fazer com que seu espectro volte”. Missão impossível, nos alerta Derrida, mas continuando a reflexão: do que Marx nos alerta? Alerta-nos a respeito de não nos convencermos com os gritos e as formas manifestas dos espectros que retornam, mas observarmos aquilo que insiste e se repete neles, numa espécie de ritmação anacrônica, intempestiva e extemporânea, ou seja, o seu conteúdo espiritual. Utilizando a metodologia de análise espectral de Marx podemos apontar para a questão deste trabalho nos perguntando: Como podem se organizar as forças dos espíritos revolucionários que estão dentro dos espectros? Qual a lógica do campo de forças a cada retorno espectral? Tentando explorar estas perguntas seguimos com a pontuação seguinte.

Herdando Marx e Derrida: O reconhecimento de um novo dogmatismo e sua parceira, a intolerância

Em 1993 Derrida percebe a ascensão de um novo dogmatismo que se apresenta através de um discurso dominante a respeito da morte de Marx, do marxismo e de todas aquelas figuras que os acompanham e que apontam para um modelo revolucionário mundial de inspiração marxista. Derrida retoma Freud e afirma que as formas de enunciação deste discurso hegemônico são maníacas e louvam o júbilo de uma fase triunfante do luto.

A encantação repete-se, ritualiza-se, empenha-se por fórmulas, como requer toda a magia animista. Recai na repetição e no refrão. Ao ritmo cadenciado de um passo, proclama: Marx está morto, o comunismo está morto, de fato morto, com suas esperanças, seu discurso, suas teorias e suas práticas; viva o capitalismo, viva o mercado, sobreviva o liberalismo econômico e político. (p.76).

Para Derrida a intensidade deste triunfo denuncia a denegação de algo; qual seja, a fragilidade de uma hegemonia que se esforça por sustentar velhos modelos neoliberais que estariam profundamente corroídos e ameaçados e, portanto, incapacitados para sustentar as promessas do capitalismo. A força da denegação neoliberal fala da fragilidade da hegemonia e, também, no caso da morte triunfante de Marx, da força do retorno de seus espectros.

Colocando-me, agora, como herdeira de Marx e Derrida retomo a temática deste trabalho e me arrisco numa proposta de leitura da produção de um novo dogmatismo e da intolerância, neste momento, no Brasil. Para tal penso em apresentar este exercício a partir de algum evento que possa ser desdobrado. Ressalto, entretanto, uma questão metodológica fundamental na sustentação de uma certa herança de Derrida, que é a de que qualquer evento de onde possa emergir alguma análise seja entendido como um ponto da rede de um campo e não como causa ou consequência de processos.

Laçando um ponto começarei parodiando Marx: "Um espectro ronda o Brasil - o espectro do comunismo."

O discurso anti-comunista gritado de forma messiânica e triunfante, numa posição quase que de exorcização do demônio é algo que vem habitando nosso dia a dia há tempo. Junta-se a ele a “tolerância zero”, a maioridade penal, a cura gay, o estatuto da família, o saudosismo por uma moralidade ideal nunca vista e nunca vivida por ninguém e outras fórmulas seguras e eficazes para a resolução das contradições e dos males do mundo. As famílias e os amigos se hostilizam e se afastam em nome desta demonização. Os discursos de ódio são enunciados sob um véu de crítica e de resgate moral e, no entanto, pouco acessam posições de implicação, reflexão ou análise; são fundamentalmente maníacos. Ou melancólicos, por que a outra feição deste novo dogmatismo é a feição também dogmática de que, então, nada vale a pena e nos resta ficar gozando de um lugar infantil onde viveremos da submissão a um poder maior; uma declaração da anti-política.

Derrida considera que esta ordem discursiva é do tipo neoevangelizadora porque afirma um princípio de sustentação da moralidade hegemônica a partir da crença em um progresso que virá desta moralidade, naturalmente, trazer um futuro melhor. Crer em um futuro melhor não é apostar em alguma promessa que arremesse o devir, pois não há devir que prescinda do pensamento do acontecimento e, nesta lógica – do “futuro melhor” – não há lugar para o acontecimento. Como estratégia religiosa de salvação, este discurso aparece, justamente, para nos salvar das dificuldades, das frustrações e das decepções oriundas das práticas políticas. Se, na mania salvacionista, no desespero pelo controle do devir, não há lugar para o acontecimento, não há lugar para qualquer experiência espectral, então os espectros que insistem em retornar para disputar a lógica a ser conservada devem ser demonizados. Conjurá-los não é suficiente, é preciso negar o seu retorno. Negar um grande trabalho de luto que, entre outros, está colocado para nós, o luto que os espectros de Marx nos impõem: o luto das promessas do capitalismo e o luto deles no capitalismo. Para Derrida só com esta exorçanálise podemos resgatar o espírito revolucionário e liberar a vida para o devir. Entretanto, na perspectiva neoevangélica o empreendimento do luto é muito ameaçador e aponta para a possibilidade iminente do “mal pior”. Esta expectativa do “mal pior” é algo que aparece claramente no discurso anti-comunista que referimos. Derrida nos alerta sobre a inversão deste pensamento: a posição triunfante pressupõe uma coerência absoluta, a qual para ser mantida inviabiliza a experiência do outro e do seu desajuste. Para evitar a parcialidade que o outro impõe, o antídoto é o mal sem parcialidade para evitar o outro, para evitar a herança e o porvir. O triunfo se dá no campo do impossível puro, como diz Derrida, portanto da ira pura, sem talvez. O mal sem talvez, mal acrítico, não é o mal no risco iminente da sua variabilidade, é a sustentação do pior, do pior do impossível. A hostilidade e a intolerância que se manifestam junto a este discurso anti-comunista e aos outros verbetes de um novo dogmatismo apontam para um vetor de produção do mal sem talvez.

Vivemos em tempos de derrocada mundial das promessas do capitalismo. Neste contexto, nos últimos anos, no Brasil, experimentamos um abalo importante na estabilidade das posições das relações sociais. No conjunto destes deslocamentos se esgarçam os limites das formas até então constituídas ameaçando o retorno do que precisa ficar oculto, no nosso caso, a fragilidade da sustentação das promessas do projeto de um capitalismo de mercado na América Latina. Com o retorno desta fragilidade impõe-se a continuidade da vida e o processamento do luto das formas que se vão; mas não de maneira simples e pragmática: com o retorno dos espectros que, necessariamente, trabalham na perspectiva da desconstrução e do enfrentamento da herança. Tarefa árdua e arriscada porque disputa com a conservação. Nesta fantasmagoria estão espectros das mais diferentes ordens carregando diversos espíritos que apontam para novos investimentos, novas possibilidades, quais sejam, espíritos revolucionários. Como nos diria Derrida, entre outros, certamente retornarão espectros de Marx.



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[1]Trabalho apresentado por ocasião da XIV Jornada do EBEP – Sua majestade, o mercado – realizada em 19 e 20 de junho de 2015 no Rio de Janeiro.

[2]Psicanalista, membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos em Porto Alegre.



 
 
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