PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    36 Novembro 2015  
 
 
CINEMA

SOB A PELE DE VÊNUS, A BACANTE


NAYRA GANHITO[1]

Poucos filmes têm a virtude de transportar-nos para uma “outra cena” desde que as luzes se apagam e surgem as primeiras imagens. Um certo modo standard de filmar nos roubou a magia do cinema antes que se rendesse ao mercado como objeto de consumo prêt-à-porter: esse transporte para um mundo que não é o nosso, mas que para além das distâncias de época, lugar e outros aspectos da vida de vigília é capaz de agir sobre o espaço onírico em nós, criando um espaço-tempo compartilhado. Este é o caso de A pele de Vênus de Roman Polanski (La Vénus à la Fourrure, 2013) só agora exibido em nossos cinemas.

A câmera avança decidida, febril, através de um típico boulevard parisiense arborizado, sob chuva torrencial, embalada pelas notas irônicas de uma espécie de valsa burlesca. Algo de mágico, fantástico ou sobrehumano marca sutilmente essa marcha inicial pontuada por trovões e iluminada por relâmpagos. Um giro repentino da câmera e somos conduzidos paulatinamente para um prédio decadente de um T_ÉATRE que perdeu o H; seus pares de portas se abrem sucessivamente de modo fantasmagórico; estamos entrando, entramos. A primeira cena no interior do que será o único ambiente de todo o filme revela que o trajeto poderia ser o olhar subjetivo de Vanda, candidata ao papel de Wanda von Dunajew, de uma peça adaptada do livro de Léopold von Sacher-Masoch traduzido entre nós como A Vênus das peles (1870). Dá também logo de início a perspectiva feminina que marcará o filme. A inebriante música de Alexandre Desplat repetirá seu leitmotiv em diversos arranjos que modulam as viradas do enredo: dramática e poderosa como na abertura, mas também delicadíssima, insinuante, sombria, ligeira, sempre com um toque de humor e uma ponta de cinismo.

 

Da porta onde chegamos com Vanda, vemos o diretor Thomas ao celular, exausto e irritado após as tentativas frustradas de encontrar sua atriz principal: “foram 35 babacas que pareciam ter 10 anos de idade, mascando chicletes, vestidas como putas ou sapatões”, diz ele destas que se mostraram tão distantes da Mulher capaz de encarnar sua Wanda. Vanda está ensopada, atrasada para o teste, a maquiagem borrada, desarrumada. Insistente para fazer a audição, fala demais, usa gírias em seu desembaraço vulgar e mostra-se inculta e superficial, exasperando o diretor que mal disfarça seu desprezo. A peça seria por acaso baseada na música de Lou Reed, Venus in Furs[2] ? Só consegue dobrar sua má vontade quando chora e faz menção de ir-se magoada. Mais adiante, a ameaça se repete numa clave ofendida mas então o diretor já não poderá prescindir dela. Lágrimas e ofensa, armas consagradas da mulher no quadro de relações entre os gêneros, marcadas por uma desigualdade?
 
Assim, Thomas Novacheck é levado a tornar-se seu partner no teste, interagindo com ela na leitura da peça, encarnando Séverin Kusiemski. O filme será o embate entre eles, na leitura e nas discussões que a interrompem, mostrando as divergências de ponto de vista entre os personagens masculino e feminino. Personagens que se desdobram e reduplicam: Thomas-Séverin-Wanda? Vanda-Wanda-Vênus?, num jogo de espelhos ainda mais inquietante porque a protagonista escolhida é Emmanuelle Seigner, mulher de Polanski há mais de 20 anos, e o ator Mathieu Amalric é incrivelmente parecido com o cineasta quando jovem, “inclusive na inquietude e nos gestos hesitantes”[3] . Engano, engodo, fingimentos, troca de papéis, confusão entre realidade e encenação e entre teatro e cinema são os ingredientes desta quase tragicomédia que acompanharemos atônitos. Quem dirige ou é dirigido, domina ou é dominado, seduz ou é seduzido? - as perguntas  saltam das cenas, sempre temperadas por finos humor e ironia que mediam a angústia e a inquietante estranheza implicados. 

Na primeira surpresa que indica que ela ou nada, afinal, é o que parecia,  Vanda antes de começar o ensaio e de modo “casual” decide manipular a caixa de luz - e eis que num instante todo o ambiente do cenário da peça -  e do filme  - se transformam, surpreendendo o diretor. No desenrolar da trama, de sua mochila irá saindo a série de adereços que irão caracterizar – com muito pouco, como no teatro - os personagens e as várias inversões nos jogos de poder que se desenrolarão entre o homem e a mulher.

O momento em que Vanda encarna Wanda é inesquecível. A câmera se fixa no rosto do diretor enfadado que não espera nada, mas então ouvimos com ele a voz articulada e insinuante de Wanda e de repente um giro de câmera nos depara com a figura elegante e aristocrática em que se transformou, mudando seu tom de voz, semblante, gestos e postura.

A leitura da peça e as discussões entre diretor e atriz irão se alternar até confundir “realidade” e encenação, em um ritmo descontínuo que brinca com as tensões e que não deixa brecha para um instante de tédio, distanciando o filme do “teatro filmado” – apesar de passar-se todo num teatro e ser baseado numa peça teatral[4].  Trata-se no entanto de um filme “cinematográfico” como poucos na arte das manipulações virtuais do espaço, dos pontos de vista e da montagem dos planos que dão a ilusão de continuidade no tempo. Isto com uma verdadeira economia de recursos materiais – a mão firme do diretor extrai dos atores o seu máximo, enquadra câmeras, joga com luz e sombras, afina a sensibilidade entre aqueles, o compositor e...nada mais.

No confronto, armado de seu discurso intelectual Thomas enaltece o romance de Sacher-Masoch como um clássico da literatura que conta a sublime história “de dois corações algemados para sempre”. Ela, aparentemente saturada de clichês pop-midiáticos, rebaixa a obra à categoria de “pornô-sadô-masô” e sexista. Ele afirma que se trata de amor: “Hoje não se vê mais aquela paixão, aquela raiva!” E ela ri-se, ele deveria conhecer um de seus amigos... Ele nega e resiste a qualquer aproximação - que ela insinua constantemente - entre aquilo que escreve e aquilo que ele é, suas paixões pessoais. Nisso o personagem se distancia de Sacher-Masoch, que em 1888 publicou as experiências de sua infância que deram origem tanto ao seu romance como às suas preferências eróticas[5] .

 

A montagem dos diálogos é uma obra prima dentro do filme. Implacável, Vanda aponta cada passagem da peça que interpreta como um ato falho do diretor. “Os princípios que ela professa”, no lugar de simplesmente “seus princípios”, quando Wanda se declara pagã e faz seu discurso libertário, mostrando que Thomas não os leva a sério. Particularmente, insistirá na epígrafe do livro de Masoch retirada do Livro de Judith e que Thomas manteve em sua adaptação: “E Deus o puniu entregando-o nas mãos de uma mulher”?!?, diz ela chocada, “e você põe isso na página zero da sua peça?”

No entanto, o corpo pode desmentir a palavra... A sutileza dos diálogos compõe, com a expressão dos corpos e as posições dos personagens em cena um complexo inseparável: raramente o diretor estará em posição mais alta que a Vanda-mulher; a cada cena em que ela mostra conhecer bem mais do que parecia (as falas da peça, o livro de Masoch, o teatro clássico...) se torna mais bela e ousada. “Você está querendo me seduzir?”, pergunta ela, ocupando abertamente a posição sedutora. Thomas, por sua vez, cada vez mais identificado no papel de Séverin, passa a experimentar afetos e excitações que ignorava. Quando ela exige que ele dispense a noiva que lhe telefona, ele diz “impossível” quase ao mesmo tempo em que atende e obedece. O momento em que ela parece enfim vacilante é aquele em que Thomas exige que ela repita e repita com mais força a fala de Wanda: “Eu não sou sua tia, não sou sua Vênus, sou eu, estou aqui!!!”

Aos poucos, desconcertado, por fim seduzido, Thomas vai cedendo às suas sugestões. O momento mais significativo é a inclusão da abertura do livro de Masoch, ausente na peça, que ela reclama e que eles improvisam: Vênus em pessoa estendida no divã se oferece ao aristocrata Séverin, que lhe resiste. O comentário de Vanda poderia ser uma de suas simplificações e referir-se à peça, mas oferece uma clave de interpretação para o desenrolar do filme que assistimos: “Ah, então Wanda é a própria Vênus que volta de dia para vingar-se de Séverin que a rejeitou no meio da noite!?” O mistério sobre Vanda é um ingrediente fundamental da trama: “Quem é você?” – pergunta subitamente Thomas quando já há algum tempo deixou de crer que é a candidata desastrada a atriz tal como se apresentara.

 

Há quem veja as relações de sexo e poder como a linha mestra do cinema de Polanski. Todo filmado no interior de um teatro vazio remete aos dramas claustrofóbicos da chamada Trilogia do apartamento: Repulsa ao sexo (1965), O bebê de Rosemary (1968), O inquilino (1976) e também ao mais recente Deus da carnificina (2011). Mas o confronto psicológico-erótico entre os personagens remete a uma outra vertente de sua obra, presente desde a estréia com A faca na água (1962) e que, passando por Chinatown (1974), Tess (1979), Lua de fel (1992) e  A morte e a donzela (1994), explora a inextrincável teia entre poder e sexo. A pele de Vênus  pode ser vista como uma síntese do tema recorrente e das questões essenciais do diretor condensadas da forma mais clara e concisa[6] .

O filme é repleto de citações e alusões, inclusive autobiográficas. Quando Vanda evoca a declaração de Thomas de que fazer teatro é a forma mais fácil de seduzir mulheres, ele se queixa por ainda ser perseguido devido a uma fala de quando era muito jovem e estreava no teatro. Há ainda a explosão do diretor quando Vanda se refere ao romance de Masoch como uma história de “abuso infantil”, justo quando ele acabara de recitar o episódio da infância do personagem Séverin com viva excitação: “Essa mania atual de tudo reduzir a um problema social idiota, que desgraça, que clichê! Não estamos fazendo sociologia ou psicologia, fazemos teatro!”

Mais adiante, durante uma conversa Thomas deita-se no divã, o lugar privilegiado de Vênus-Wanda no cenário. Sem parar de falar, Vanda veste o paletó dele, seus óculos e senta-se à cabeceira do divã – imperceptivelmente  instaura-se a situação de uma sessão de análise. Agora ela mostra conhecer detalhes da vida privada do diretor, em particular a figura de sua fiancée. Suas revelações atingem a expressão do rosto dele em close: desconcerto, perplexidade, fascínio, estranheza. Numa espécie de caricatura, suas palavras ironizam a conveniência de sua escolha pela noiva intelectual, jovem, bonita e rica. Resignação às conversas polidas e letradas e ao “bom e pacato coito”, dirá ela, “o pacato coito pra relaxar”, daqueles que “depois têm filhos que farão tudo igual e então... morrem!”. Para Thomas, os perigos da sedução e da paixão ficam restritos à ficção, à literatura, ao teatro, enquanto sua vida se restringe ao previsível e ao administrável. Em suas relações amorosas encontra-se sem saber enquadrado no pragmatismo contemporâneo que critica, enquanto no fantasma persegue um ideal de mulher que não corresponde às mulheres que encontra.

 

“Decifra-me ou te devoro, parece dizer o recorrente signo de Vênus, recapitulado em suas versões mais belas (Ticiano, Botticelli, Rubens, Velázquez) na sequência dos créditos finais”[7] . A fascinação e o terror inspirados no homem pelo feminino, o enigma em que este quer envolver a mulher  – o que ela quer, que fosse tão diferente do que ele quer? – interessa vivamente a Polanski, ao lado da crítica à pobreza contemporânea que tudo rotula e enquadra na tentativa de abolir a complexidade, a ambiguidade e as contradições. Ambivalência, diz Vanda em várias ocasiões; ambiguidade, corrige o diretor a cada vez, retirando a intensidade dos afetos implicada na palavra ambivalência.

No entanto, rimos em vários momentos do filme, surpresos, desconcertados, deliciados. Se evocamos o amargo Lua de Fel, também estrelado por sua mulher e um ator que também lembrava Polanski, entendemos algo que o diretor elaborou nestes anos. Já não se trata de dor, humilhação e degradação, de danos permanentes como a cadeira de rodas de um, a depressão melancólica da outra, o suicídio dos dois, mas algo que, não deixando de ser jogo de poder, é sobretudo jogo – angústia, mas também prazer. Mais do que o manifesto domínio oferecido à mulher, convite ao  feminino, no homem e na mulher. Talvez o protagonista saia transformado e renovado da experiência, não destruído. Talvez trate-se de um manifesto contra o amor servil, contra qualquer servidão no amor, inclusive às conveniências sociais.

O mesmo para os símbolos-fetiche que se sucedem: as vestes de um sadomasoquismo-clichê, com que Vanda chega vestida sob a capa de chuva e que nos fazem rir. As peles, no romance enaltecidas em sua maciez, imponência e sensualidade, na encenação da peça tornam-se um velho cachecol surrado. As botas de salto e cano alto, com que ela o faz calçá-la e que ele “por engano” faz menção de vestir em si mesmo. Mas como Thomas já se encontra despojado de suas defesas, Polanski o faz olhar disfarçadamente e com temor para o sexo da mulher no gesto de calçá-la acrescentando um deslocamento da câmera-olhar para o zíper que ele fecha lenta e cuidadosamente, numa notável figuração da noção clássica do fetichismo. Há, por fim, o cactus gigante, resquício no palco de uma outra peça, que ao longo do filme poderá representar o falo, a estátua de Afrodite, totem, lugar de suplício. Quem irá ostentar uma pele opulenta e ao mesmo tempo imemorial, primitiva, vestindo-a diretamente sob a pele nua, será a fantástica encarnação da Bacante, na cena alucinada-alucinante da dança ritual da deusa – entre o sublime e o grotesco. Uma radical e verdadeira transmutação, dentre as muitas metamorfoses de Vanda.

 

Perversão, sadomasoquismo, fetichismo, diriam leituras convencionais. Inveja do pênis, histeria, complexo de masculinidade - “blá-blá-blá”, poderia dizer Vanda como o faz frente às teorias masculinas sobre a mulher que adivinha sob o discurso racional de Thomas. O feminino sagrado, o sagrado “pagão” que desapareceu sob o monoteísmo e o cristianismo, o feminino como potência diferenciada na mulher, podemos arriscar na falta de conceitos, dos quais a psicanálise ainda carece. E ainda, pobreza do registro de dominação da sociedade patriarcal e sua divisão de papéis, mas também dos limites de uma política do gênero – quem domina quem, nos jogos de amor? Thomas, cada vez mais atordoado, será levado a travestir-se em Wanda, uma citação da figura do próprio Polanski travestido numa cena de O inquilino.  Seria a parte apaixonada, homem ou mulher, sempre feminina nas vicissitudes do amor? Seria isso ainda insistir na equivalência feminilidade-passividade?

No livro de Sacher-Masoch o masoquista controla e domina sua maîtresse, moldando-a de acordo com seu fantasma - cruel, fria, infiel, interessada apenas em jogos de poder. Deleuze[8]  mostrou essa atividade do masoquista capaz de construir seu algoz nos mínimos detalhes e da importância do contrato que irá mediar suas relações; é o suposto escravo quem escreve seus termos impondo o papel dominante ao outro. Mas também desconstruiu a complementaridade simples entre masoquismo e sadismo, descrevendo suas estruturas peculiares, impossíveis de enquadrar-se enquanto pares de opostos. Masoch e Sade, dos quais se derivaram as noções de masoquismo e sadismo, seriam deste ponto de vista os clínicos que, como nas síndromes designadas pelo nome do médico que as descrevem, souberam delineá-las.

Masoch foi reconhecido e respeitado em vida, mas o tempo lhe reservaria um triste destino comparado ao de Sade, que em vida foi renegado e preso. A obra de Sade torna-se cada vez mais objeto de curiosidade e estudos, enquanto a de Masoch quase caiu no esquecimento. Quanto ao seu Venus in Fur, parece que o escritor em sua época foi acusado de misoginia, apesar de editar uma revista progressista que combatia o antissemitismo e defendia a emancipação feminina. Justamente porque ali Vanda claramente assume o papel que lhe é atribuído por Séverin que, no fundo, teria o controle da relação convertendo a mulher em seu ideal, a deusa inacessível.


A Vanda-Wanda do filme seria então uma Vênus que vem atordoar o universo masculino de Thomas, cindido entre a relação com a noiva bem educada e a paixão vivida na literatura e nas peças que adapta, na fantasia?

No filme, a mulher encarna a deusa vingadora que denuncia a misoginia disfarçada de adoração, como formação reativa, mas, sob a pele de Vênus-Afrodite, ela se revela Bacante, sob o signo de Dionísio. Deusa vingadora, afinal, mas num registro que se contrapõe ao falo aonde o protagonista termina amarrado e travestido. Ela mostra o homem preso ao falo, fazendo com que este ocupe o lugar da mulher tal como ele a imagina, a quer e como o fascina. Fascinação é uma palavra que em sua etimologia remete ao amor e ao ódio.

A menção a Dionísio, no filme, evoca na tragédia de Eurípedes As Bacantes sua vingança contra o poderoso e arrogante rei de Tebas. Disfarçado de pastor estrangeiro, engana o rei e o envia, disfarçado de mulher, às Bacantes que condena mas que instigam sua curiosidade. São elas que executarão o castigo – preso a uma árvore em vestes femininas, será feito em pedaços. Mas Dionísio não corresponde aqui ao fálico definido pela psicanálise, ao contrário, pode ser relacionado à alteridade e à diferença. Segundo alguns, é “o deus da arte, o deus-espelho que reflete para as pessoas o que elas são, e a partir de então elas podem aceitar o que são e o que os outros são, podem aceitar o diferente”[9] . É associado também ao estrangeiro, por suas peregrinações na Ásia e terras distantes, e ainda por não ter sua natureza divina reconhecida por sua própria família. Até o fim do século XIX o tema das Bacantes, considerado repugnante, permaneceu marginal. Somente com Nietzsche, que valorizou a relação de Dionísio com o teatro, a peça começa a despertar interesse, e finalmente será muito encenada no teatro do século XX. 

O filme de Roman Polanski oferece, portanto, para além de uma profunda experiência de fruição estética, algo para pensar as questões de gênero na atualidade. O desfecho do filme não é o mesmo desfecho do romance de Masoch, no qual o personagem Séverin relata a história vivida no passado; dizendo-se curado de suas antigas paixões, agora maltrata as mulheres e trata de “fazê-las obedecer”.

Vênus na construção do filme estaria mais para a encarnação da fantasia masculina da mulher enigmática que é sedutora, mas potencialmente perigosa. Resta pensar se a Bacante-Vanda seria a afirmação de uma potência não-fálica da mulher, sexuada e dona de seu saber ou ainda a encarnação do demônio masculino, a mulher fálica e destrutiva. Provocativamente, a epígrafe “E Deus o castigou entregando-o nas mãos de uma mulher” que Vanda questionou vivamente, aparece nos letreiros finais e fecha a cena.

No dia em que estive no cinema, ninguém se moveu da cadeira até após os créditos terminarem. Não houve aplausos, mas um silêncio fascinado, desconcertado e reverente. No entanto, sentia-se uma rara cumplicidade entre expectadores desconhecidos - pequenos sorrisos e comentários se trocavam a caminho da saída. Rostos comunicavam entre si uma comoção trocada de modo mais divertido do que grave, da qual as análises e racionalizações estavam ausentes. Um rapaz se agitava, perdeu seus óculos, faz menção de voltar à poltrona, constrangido percebe que o tinha em mãos. “Também, depois deste filme! O que é verdade, o que é não é?.. Não sei mais!”. E em volta, sorríamos solidários, sem tampouco saber mais nada.

                                       ..................

P. S. Em um documentário realizado durante a prisão domiciliar de Polanski na Suíça, em 2009, sob o risco de extradição para os EUA aonde ainda tem voz de prisão pelo envolvimento com uma menor nos anos 70[10] , me impressionou sua figura afável, que parecia esforçar-se em responder francamente as questões que lhe eram feitas. Nada de apelativo ou midiático em sua presença, nada de negações, nada de campanha por uma “inocência” frente às acusações. Há um tom terno, amoroso, uma quase gratidão ao falar de sua esposa, a Vanda do nosso filme, e de seus filhos. Há algumas lágrimas quando evoca a infância na Polônia sob o domínio nazista, elaborada no filme O pianista (2002), ou a morte de sua então esposa Sharon Tate, em 1969, grávida e brutalmente assassinada por membros da estranha seita de Charles Mason. O controverso cineasta, hoje em seus 80 anos, talvez seja agora este homem que, ao chorar, sorri.

 

______________________________
[1]Psiquiatra e psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise, integrante da equipe editorial deste Boletim.
[2]Venus in Furs, música de Lou Reed com  a banda Velvet Underground, de 1967, inspirada no romance de Sacher-Masoch.
[3]A frase é de José Geraldo Couto  em   Polanski e o terror do feminino, um instigante artigo sobre o filme; parte  deste trabalho dialoga com sua leitura: http://www.blogdoims.com.br/ims/polanski-e-o-terror-do-feminino
[4]Do norte-americano David Ives, que assina o roteiro com o diretor. A peça era um musical.
[5]“Recordação de infância e reflexão sobre o romance”, Sacher-Masoch, “Coisas vividas”, Revue Bleue, 1888, apêndice ao romance publicado anexo ao trabalho de Deleuze abaixo referido.
[6]Polanski e o terror do feminino, op. cit.
[7]idem.
[8]Apresentação de Sacher–Masoch – O frio e o cruel, Gilles Deleuze, 1983[1967]. Rio de Janeiro: Livraria Taurus Editora.
[9]https://pt.wikipedia.org/wiki/Tragédia.
[10]Polanski foi acusado de forçar relações sexuais com Samantha Gailey, então com 13 anos de idade, quando a fotografava para a revista Vogue. Admitiu sua culpa e cumpriu pena de 3 meses, mas reviravoltas no processo o fizeram fugir dos EUA em 1978 temendo uma nova prisão. Samantha, hoje com 50 anos e 3 filhos, está publicando um livro autobiográfico intitulado The Girl: A Life In The Shadow of Roman Polanski,  no qual queixa-se da exploração do caso pela mídia, advogados e juízes que alimentaram o que chama de “indústria da vítima”; seu objetivo declarado foi “partilhar uma história em que eu recupere minha identidade.”




 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/