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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    36 Novembro 2015  
 
 
ARTE

TADEUSZ KANTOR FAZ 100 ANOS


CRISTINA BARCZINSKI[1]

Uma máquina nunca é simplesmente técnica. Ela envolve homens, mulheres,
ações, lugares, obras, leis, rupturas, saberes, ignorâncias, desejos, isso
porque uma máquina é desejo
.
Deleuze e Guattari

 

Tadeusz Kantor dirige happening

 

Tadeuz Kantor foi um diretor de teatro inventivo e genial. Isto era tudo o que eu sabia quando ouvi falar da exposição que no SESC Consolação homenagearia seus 100 anos. A Máquina de Tadeusz Kantor era um título bastante atraente, transmitindo uma ideia de criação, vigor e movimento; além disso, seria a maior exposição sobre este multi-artista já feita fora da Polônia. Ricardo Muniz Fernandes, sociólogo e produtor de eventos, dividiu a curadoria com Jaroslaw Suchan, diretor do Muzeum Sztuki, em Lodz, e com o crítico teatral Sebastião Milaré.

O primeiro espaço estava ocupado por sua Máquina de Aniquilamento, uma espécie de pirâmide formada por cadeiras dobráveis, que, ao ser acionada, produz um ruído - Kantor a utilizou em peças de teatro, em que o barulho encobria a fala dos atores, desconstruindo a concepção tradicional de uma encenação teatral. No Café Europa, decorado com um varal de fotos e ilustrações dos pensadores e artistas que teriam influenciado Kantor, circulavam, por vezes dançavam e esbarravam-se em silêncio atores caracterizados como fantasmas, vestidos de preto e com os rostos pintados de branco, interagindo com as obras e com o público. No espaço ao lado, grandes caixas de madeira empilhadas e escritas em polonês, nas quais vieram peças da exposição da Cricoteka, instituição que fica na Cracóvia e reúne o maior número de obras de Kantor. Aquilo já era um cenário por si só, uma espécie de making of da exposição. Nas paredes, um grande painel fotográfico das ruínas do gueto de Varsóvia. No meio destas ruínas, minúsculas imagens dos horrores da 2ª Guerra, que levavam o visitante a se aproximar para enxergá-las melhor e, quase imediatamente, a se afastar. Este foi o cenário da juventude de Kantor, que, nascido em 1915, passou a primeira infância durante a 1ª Guerra e tinha por volta de 24 anos quando a Polônia foi invadida por Hitler.

Em meio ao horror, Kantor partiu para o combate usando sua arma mais poderosa - era um artista militante - e sua causa, a própria arte. No teatro, para lidar com a dor e a morte, recorre ao burlesco e à ironia, aliados ao gestual exagerado e cômico de seus atores. Frequentou por quatro anos a Escola de Belas Artes da Cracóvia e transitou por várias expressões artísticas com igual paixão e liberdade - pintura, escultura, cenografia, fotografia, performance e o próprio teatro – inspirando-se no construtivismo, dadaísmo e surrealismo[2] .  Nos documentários exibidos nesta exposição, seus amigos atores falam de seu tremendo rigor ao montar os espetáculos ou performances. Buscava com tanta obsessividade a concentração e dedicação de sua companhia que chegava a proibir seus atores, durante a participação em festivais, de confraternizarem com os demais colegas. Este comportamento ditatorial lhe causava problemas com o grupo, mas a consciência de que estavam produzindo algo muito profundo e revolucionário mantinha unido o trabalho desta companhia. Depois de começar a fazer teatro clandestinamente, ainda durante a guerra, tendo como atores um grupo de pintores em apartamentos em ruínas, Kantor concebe mais algumas propostas teatrais e, finalmente, o Teatro da Morte, ao descobrir que nada expressa melhor a vida do que a ausência da vida. Assim a morte se torna o tema central de seus últimos espetáculos, entre eles A classe morta, Wielopole-Wielopole e Hoje é meu aniversário [3] .

No outro espaço, encontramos uma ocupação impressionante numa montagem de andaimes. Na parte de baixo, estava em cena um espetáculo teatral com cenas propostas pela atriz Ludmila Ryba, que trabalhou com Kantor, e Tiago Vasconcelos, diretor da Cia Antropofágica. Eram quatro atrizes que, sentadas, enquanto trocavam perucas, chapéus e adereços, simulavam uma palestra sobre a língua polonesa, cheia de humor e poesia. No andar de cima, uma exposição com 130 objetos feitos por Kantor, entre pinturas a óleo, gravuras, colagens, objetos cênicos como as embalagens, esculturas e seus famosos e melancólicos bonecos, que fizeram parte de sua peça mais conhecida, A classe morta, de 1975, na qual atores interagem com bonecos que os representam quando crianças, falando sobre a infância e as guerras.

Freud, grande admirador das artes, falava destas como um instrumento possível frente à renúncia pulsional exigida aos homens para a vida em sociedade, certamente atribuindo-lhes um papel civilizatório. A arte teria uma função nobre e pacificadora, deste ponto de vista. Talvez um dos textos presentes de Kantor na exposição proponha um lugar também muito valorizado, porém mais desconstruído, para a expressão artística: “A obra de arte que não emana, que não exprime nada, que não comunica, que não é um testemunho ou uma reprodução, que não se refere à realidade, ao espectador, nem ao autor, que é impermeável à penetração e à interpenetração pelo outro, que é direcionada a lugar nenhum, ao desconhecido, que é um vácuo, um buraco na realidade; que não tem destino ou localização, é como a vida em si mesma, transitória, passageira, evanescente, impossível de fixar e de reter; a arte abandonou o solo sagrado reservado e deixado exclusivamente para si, ela não depende de argumentos de utilidade ou de defesa, ela simplesmente É!”

 

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[1]Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste Boletim e do grupo Sexta Clínica.
[2]A interessante tese de doutorado, de Wagner Araújo Carvalho Cintra - No limiar do desconhecido: reflexões sobre o objeto na obra de Tadeusz Kantor - traz muitas informações sobre a vida e a produção deste polonês genial. www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27156/tde...232314/.../1955182.pdf
[3]http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/teatro/teatro-contemporaneo/tadeusz-kantor-fases-teatro-da-morte.html
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/07/1650249-em-centenario-do-diretor-exposicao-sobre-tadeusz-kantor-chega-ao-brasil.shtml




 
 
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