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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    36 Novembro 2015  
 
 
ENTREVISTA

Ana Helena de Staal integra o Conselho Científico da revista Percurso, da qual é correspondente em Paris e foi coeditora do número 49/50, dedicado a André Green. Em torno de sua direção da coleção Psycanalyse, da editora Ithaque, a psicanalista concedeu interessante entrevista escrita a Elen Le Mée, do portal francês nonficction, que o Boletim difunde a seguir devido à rede de colaboração tecida com colegas de diferentes grupos do nosso Departamento, aos quais somos gratos.
 
 
ENTREVISTA COM ANA DE STAAL
 
 Tradução de CRISTINA BARCZINSKI[1]
 
Ana de Staal, diretora da coleção Psycanalyse das edições da Ithaque, também dirigida por ela, colocou-se à nossa disposição para responder algumas perguntas sobre a orientação dos livros controvertidos que compõem esta coleção. Isto levou ao texto que se segue, brilhantemente escrito, mas também bastante duro em relação aos psicanalistas franceses. Ela diz igualmente algumas palavras sobre o livro de Giuseppe Civiratese - O sonho necessário – por ela editado em junho.

Elen Le Mée: Qual a corrente da psicanálise que a coleção Psychanalyse das edições da Ithaque pretende difundir? Por quê?  

Ana de Staal: A psicanálise está realmente em crise, mas de Buenos Aires a Milão, passando por São Francisco, Nova Iorque, Montreal, Lisboa ou Paris, podem-se encontrar psicanalistas em plena criação, prontos a rever suas crenças fundamentais, na busca de compreender a humanidade do século XXI. Desta forma, para além dos confinamentos escolásticos, minha coleção se esforça em refletir, tão fielmente quanto possível, as ideias de uma psicanálise contemporânea em meio ao processo de difusão pelo mundo. Eu gostaria que esta coleção fosse uma lufada de ar fresco sobre a psicanálise francesa que, antes de mais nada, parece estar querendo se proteger dos ventos incertos de sua época.

Identificar, como escuto algumas vezes, esta coleção à dita escola anglo-saxã é um contrassenso, uma marca de incultura e anacronismo. Alguns de seus autores, de Bion a Bollas, passando por Green, Ferro, De Masi ou Odgen, não aceitariam uma classificação tão equivocada, mas sobretudo, tão reducionista. Portanto, seria mais exato dizer que os autores por mim publicados não pertencem a uma mesma “corrente”, nem mesmo a “correntes” diferentes, já que, por definição, eles não se concebem estritamente em tais termos.

É possível que, ao longo do processo ou no après coup, se possam identificar alguns pontos em comum entre eles, como uma espécie de base mínima implícita. Então se poderia talvez encontrar um estilo ou a marca de um determinado estado de espírito, como a imensa cultura psicanalítica destes autores, sua preocupação com a clínica contemporânea, o emprego eficaz – cada um à sua maneira - da literatura psicanalítica do pós-guerra (particularmente as obras de Winnicott, Bion e Lacan), a recusa de lutas internas, a busca de uma renovação radical da disciplina, o amor ao trabalho rigoroso e bem feito, o apego ao debate de ideias, um forte vínculo com a sociedade de sua época...

Dizemos destes autores que seus pés pisam o mesmo solo de maneira mais ou menos sincrônica, mas isto não configura uma manifestação Bastille-Nação[2] (ou São Francisco-Milão), e a fidelidade a este ou aquele mestre ou palavra de ordem é certamente a menor de suas preocupações. Eles não são nem glosadores nem exegetas, mas pensadores no processo de constituir uma obra original e que hoje trazem generosamente sua contribuição ao pote comum.

Com almas cosmopolitas, estão perfeitamente a par daquilo que se elabora atualmente no mundo psicanalítico. E quando digo “mundo”, é preciso que me entendam ao pé da letra: não falo de um mundo mental vaporoso, mas sim dos Estados Unidos, Canadá, Brasil, Chile, Itália, Portugal, Inglaterra, Alemanha, França... Neste sentido, eles estão muito mais atualizados sobre a produção dos autores franceses do que estes estão a respeito do trabalho de seus colegas.

Todos estes analistas, além de suas infindáveis razões regionais para alimentar lutos melancólicos e intermináveis, trabalham duro pelo futuro de sua disciplina. Para falar de um modo imagético, são crianças que bem ou mal digeriram a morte de seus pais - Freud, Lacan, Bion, Lacan, ou seja lá quem for - e que se inscrevem na geração fazendo seu  trabalho, beneficiando-se de sua imensa herança. Sem dúvida, alguns deles serão nossos Winnicott ou nossos Bion de amanhã, que, com simplicidade e paixão, escrevem sobre seu trabalho clínico, propõem esboços teóricos e extraem a partir daí consequências metapsicológicas ou técnicas, sem se indagarem sobre a pertença a esta ou aquela corrente. Seu trabalho está em constante elaboração, e é justamente deste processo que minha coleção pretende dar conta.

O caráter “contra a corrente” desta coleção faz com que ela se dirija sobretudo aos praticantes e pesquisadores atentos aos devires da psicanálise e às diferentes propostas teóricas que possam sustentá-los. Trata-se portanto de uma coleção inovadora, difícil, especializada, polêmica, sugestiva de rearranjos metapsicológicos; em consequência, ela comporta aspectos técnicos importantes, na medida em que a experiência do trabalho na sessão - entendo por isto as propostas concernentes à utilização do enquadre, da transferência/contratransferência, da interpretação, etc.- se encontra no cerne de seus questionamentos.

É também por esta razão que esta coleção, que não é a expressão de uma corrente, é antes um manifesto: um apelo para que haja uma atualização urgente da cultura psicanalítica na França, país onde cada um dificilmente se mostra interessado por aquilo que se passa além de suas fronteiras, para não dizer fora de seus pequenos grupos de trabalho. Digamos que, sob nossas latitudes, é uma coleção corajosa para leitores corajosos.
 
Elen Le Mée: Esta corrente é reconhecida pelos psicanalistas franceses/italianos? Dentro de quais associações ela é bem representada?

Anna de Staal: Como acabo de explicar, para mim é muito difícil pensar uma coleção destas em termos de correntes - mesmo que não possa negar sua existência. Mas os rótulos não me interessam, ao menos neste estágio do trabalho, quando se trata de viver sua história, e não ser historiador. Para esclarecer ainda mais minha posição, se existe uma corrente naquilo que proponho, é a das “pós-escolas”, como as nomeio provisoriamente. Eis os clínicos e pesquisadores que se esforçam em conciliar a abordagem geral do corpo teórico do século XX com as profundas mutações que o nascente século XXI anuncia. Como diz com muita exatidão Florence Guignard, em sua obra recém lançada, o funcionamento da sexualidade infantil no psiquismo humano não é mais o mesmo de 1905 e dos Três Ensaios de Freud. Ainda bem!, diria eu ... Além disso, e a partir de outros dados, O momento freudiano, de Christopher Bollas, livro que traduzi e publiquei em 2011, explicita bem as consequências teóricas e técnicas desta necessidade de evolução no seio da psicanálise. A obra de Bollas se dirige sobretudo aos kleinianos ingleses ou argentinos, que encerrados confortavelmente em seus grupúsculos e subgrupúsculos -  e tomados inteiramente por seus combates dogmáticos – esqueceram-se de seguir, debater, se indagar sobre as hipóteses psicanalíticas oriundas da clínica contemporânea. Uma crítica feitas aos kleinianos, no entanto, mas que poderia, sem exagero, se dirigir a um certo lacanismo francês. Todo mundo sabe que o gênio lacaniano pesa sobre a psicanálise francesa há meio século – assim como o gênio kleiniano pesou longamente sobre a psicanálise francesa. Mas se permanecemos paralisados, o que poderia ser uma contribuição sui generis ao pensamento psicanalítico como um todo se transforma numa ferida localizada  mas não cicatrizável, uma idiossincrasia mórbida, um jargão  produzido pela obediência cega a um mestre.
 
A acolhida dos franceses a esta coleção no momento é pequena. Alguns a ignoram, outros se entusiasmam e a sustentam, muitas a detestam. Os críticos vão de afirmações invejosas “seus livros são medíocres” aos dogmáticos “isto não é mais psicanálise”, além daqueles que a consideram simplesmente uma espécie de ovni ou uma intrusão nefasta (à imagem destes migrantes que atravessam hoje nossas fronteiras e que irão certamente desfrutar de nosso pão branco com sementes geneticamente modificadas). Estas reações são compreensíveis e, dado o atual estado de coisas, eu me surpreenderia se houvesse uma acolhida mais calorosa. A situação é cansativa, mas não desencorajadora: é uma questão de paciência, de trabalho, de convicção. Talvez não sobrevivamos à frieza ambiente, as vanguardas e o pensamento se aclimatam mal aos congelamentos. O isolacionismo da França, cultivado justamente na psicanálise que aqui se faz (mesmo que seja suposta de investigar nada menos do que a psique humana), é vivida sob o modelo da resistência. Ou inversamente, sua resistência se exprime ao modo isolacionista e imprecador: o conjunto do planeta seria capitalista, mundialista, comerciante, anglo-saxão, ultraliberal, fanático, adepto da psicologia do ego ou do relacionismo, tarado pela contratransferência, antifreudiano, intersubjetivista..., contudo, nós, os Franceses, degoladores de reis fortes da Lei do Pai, mas culpabilizados e melancólicos até a medula, nós instalamos uma linha Maginot ao invés de ir ao combate, de aceitar a confrontação, a mistura, a renovação e a transformação. E assim sob o fundamento de que estaríamos dentro da verdade, da verdadeira teoria, da verdadeira psicanálise, este lado franchouillard[3]  nacionalista, anticosmopolista, sectário, acaba se fixando por toda a sociedade. O resultado é consternador: eis os nacionalistas sociais e mentais, que têm o topete de se apresentar como campeões de uma luta heróica. A  renovação  necessária da psicanálise na França não é nem mais nem menos do que a renovação política, filosófica, cultural, sociológica, mental, sexual,  econômica necessárias à França dos dias de hoje. À custa de diabolizar nosso entendimento e nossos mais belos ideais, à custa de querer extinguir a razão, à custa de louvar a alma obscura, o indizível, o inefável, o impensável, e de mergulhar em lagos brumosos de um romantismo indigente, formamos hoje, psicanalistas ou não, seja qual for a borda onde estivermos, uma sociedade globalmente incompreensível e decididamente reacionária – e isto eu   lamento muito.

A meu ver, reduzir o debate psicanalítico à escolástica das correntes, distorcer o pensamento complexo de um autor para que ele se adeque às orientações de uma instituição ou, inversamente, secar o brotamento salutar das instituições para que elas correspondam ao pensamento deste ou daquele mestre me parece o método mais eficaz para fossilizar o todo - baixar grosseiramente o nível geral. Se me permitem a paráfrase violenta, mas tão pertinente de Pierce, seguiria dizendo: o homem é na essência um animal social; mas ser social é uma coisa, ser gregário é outra; recusamo-nos a servir de chefe da manada. Minha psicanálise é feita por pessoas que querem investigar; quanto àqueles que querem que a psicanálise lhes seja servida às colheradas, podem procurar em outro lugar. Graças a Deus, existem vendedores de sopa psicanalítica por todos os cantos.

Elen Le Mée: Por que escolher Civitarese? Qual o interesse deste livro, da obra deste autor?  Ele é referência para esta corrente?
     
Ana de Staal: O interesse do trabalho de Civitarese é que ele se propõe a pensar sobre o que seria uma estética psicanalítica (em oposição a uma aspiração psicanalítica cientificista); neste sentido ele radicaliza a reflexão epistemológica de Bion. Sabe-se que Bion, após suas incursões pelas matemáticas em busca de uma linguagem e de um ponto de observação de uma neutralidade absoluta, abandonou – um tantinho deprimido, é verdade – a pretensão a uma psicanálise científica, sem, no entanto, descurar o rigor exigido pela disciplina. Portanto ele, por assim dizer, propôs a exatidão do poeta no lugar da exatidão do científico; a arte (da psicanálise) ao invés da ciência (da psicanálise). Ou sendo a obra de arte única por definição, isto lhe permitiu passar de uma exatidão que busca a generalidade e a reprodutibilidade a uma exatidão que busca a singularidade e a pontualidade - haveria um melhor pano de fundo para a psicanálise? Inspirado por Paul Valéry, que ele cita nos seus seminários de Nova Iorque (1977), Bion promoveu uma prática, o exercício da interpretação na sessão, por exemplo, que estaria mais capacitada a “resistir à crítica estética”, do que se propor a passar pelo exame científico. “A operação do poeta”, escrevia Valéry, “se exerce em meio ao valor complexo das palavras, ou seja compondo ao mesmo tempo som e sentido, como a álgebra operando sobre números complexos. [...] É preciso não confundir, como se faz frequentemente, [o domínio da invenção poética]  com o da imaginação sem condições e sem matéria.” Em outras palavras, se passa de um modelo a outro, mas no entanto isto não é uma licença para identificar o domínio da invenção psicanalítica ao de um subjetivismo vazio,  de falta de informação e de cultura, de ausência de enquadre, de limite e de conteúdo.
    
Meltzer, com sua noção de “conflito estético”, já tinha começado a pensar nestes termos. Civitarese expande ainda mais as possibilidades teóricas e clínicas originadas por esta proposição fundamental bioniana. Obviamente, do ponto de vista dele, esta perspectiva depende e acompanha de perto outras noções – tais como o campo analítico ou o pensar/sonhar -, que ele tanto radicaliza.
   
De fato, como se quisesse lhes testar a resistência, Civitarese procede a uma extensão máxima dos conceitos, estirando-os até dois dedos de seu ponto de ruptura. Evidentemente, o resultado é surpreendente, semelhante a uma inversão brusca de corrente. Para falar de forma muito esquemática, em seguida às teorizações de Bion sobre os estados de sonho e de vigília, e sobre a rêverie, se chega hoje a dar às sessões um estatuto de sonho ou de quase sonho (o falar/sonhar). Civitarese, conciliando esta ideia à de campo, extrai-lhe então consequências extremas: se a sessão é um sonho, qual é o estatuto do relato do sonho dentro da sessão? Uma reviravolta que, se  obriga a anular atrevidamente a posição privilegiada do relato do sonho em relação aos outros conteúdos do discurso pdo paciente em sessão, transforma também completamente a própria noção de relato dentro do enquadre, atribuindo-lhe um lugar princeps que é, em si, uma valorização radical do próprio sonho . “E é assim”, escreve ele, “que se atribui ao paradigma do sonho um papel ainda mais central do que na teoria clássica.”

Sua obra, O sonho necessário, tem como subtítulo “Novas teorias e novas técnicas de interpretação em psicanálise”. Seu objetivo é o de oferecer um panorama das diferentes pesquisas psicanalíticas sobre a interpretação do sonho, mas a partir de um ponto de vista abertamente atual (não histórico), quer dizer, um ponto de vista já informado pelas teorias bionianas e pela noção de campo que ele utiliza – portanto, de alguma maneira, ali se pode encontrar sua (re)leitura dos trabalhos de seus antecessores e de seus contemporâneos. Ele passa em revista, na ordem e por capítulos, as abordagens de Freud, Klein, Bion, Meltzer (a quem critica duramente), Odgen, Ferro, Grotstein, etc. Ele cita profusamente os franceses: Merleau-Ponty, Foucault, Proust, Pontalis, Kristeva, Lacan e mesmo o cineasta Michel Gondry, pois utiliza frequentemente o cinema para fundamentar suas propostas, com exemplos tirados de Murnau a Spielberg, passando por Lynch ou Tarkovski. A meus olhos, trata-se de uma obra útil, fresca, cheia de intuições formidáveis e de aberturas na direção de novas interrogações.

Enfim, se considera por vezes este autor como discípulo de Ferro. Eles são muto próximos, realmente, e trabalham juntos, mas, a meu ver, Civitarese tem um discurso fortemente original e pessoal. Ele discute sobretudo com Thomas Odgen, a quem consagra várias páginas de seu livro.

Dada a natureza de suas proposições e a qualidade de seus interlocutores, seria a meu ver natural e necessário incluí-lo nesta coleção. Alguns o acusarão certamente de trazer a peste do relacionismo, do contratransferencismo, do pós-modernismo-que-não-compreendeu-o-VERDADEIRO-pós-modernismo e assim por diante. Mas, e daí? Afinal, o que é que se ganha mantendo o pensamento debaixo de uma redoma?
 
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[1]Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste Boletim e do grupo Sexta Clínica.
[2]Manifestações de esquerda em Paris, juntando dezenas de milhares de pessoas, ocorridas entre as estações de metro Bastille e Nation, em protesto contra o mercado finaceiro e a política de austeridade do governo de François Hollande.
[3]A expressão se refere ao indivíduo comum francês  e seus defeitos (fonte: Le Petit Robert 2011).



 
 
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