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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    38 Junho 2016  
 
 
HOMENAGEM

AO JEITO DE TAPERA


EQUIPE DE CONTRATADOS DA CLÍNICA DO SEDES [1]





Em novembro de 2014, ao lamentar a morte de Manoel de Barros, Maria Angela Santa Cruz disse: “ele fez poemas ao longo de toda a sua vida!”. Sabia que o nosso tempo de vida é contado pelo que nos constitui. Sabia também que em breve deixaria de viver e, quando a morte se anunciou inexoravelmente, disse: “quando as pessoas sabem que têm pouco tempo de vida, mudam de vida, param de trabalhar, fazem viagens. Mas eu quis continuar trabalhando, pois é essa a vida que eu quis viver”.

Em sua última carta a nós, equipe da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae, escreve: “Entre os processos vivos, há este trabalho de inestimável valor para mim que é o trabalho na Clínica do Sedes. Clínica em que investi 21 anos da minha vida e que foi minha escola. Os terapeutas do NURAAJ [2] e da Equipe Clínica me deram vários retornos de que sua experiência nessas equipes foi um divisor de águas em sua prática clínica. Para mim também! Aprendi, em um processo interminável, a fazer clínica na Clínica do Sedes, processo possibilitado por um projeto coletivo que nos instava a experimentar, a inventar, a criar”.

Angela tinha esse dom de fazer uso da palavra e da ação, elevando-as à categoria de coisa, num permanente processo de criação. Para ela, para nós e para muitos outros - estagiários, aprimorandos, professores parceiros, terapeutas parceiros, equipe de funcionários de apoio -, a Clínica pulsa em quem por ela se deixa tocar e imprime uma escuta singular.

Mas, que Clínica é essa a que Angela se refere? Não seria uma Clínica da desconstrução?

Uma Clínica que se alinha com a desconstrução das práticas cristalizadas e mortíferas, do conformismo com o instituído, da desigualdade das condições de vida, da clausura e da violência que silencia? Uma Clínica que desconstrói o abandono? Uma Clínica que, como a Angela, se marca pela permanente luta pelo direito à vida em seus processos de expansão?

Talvez nossa Clínica seja uma clínica ao jeito de tapera, como a ruína de um poema de Manoel de Barros. Nele, um monge descabelado lhe diz: “Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas de um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo...”.

A Clínica a que a Angela se refere é essa tapera em permanente construção e que guarda a marca da desconstrução. Que ela, como a ruína, figure e nos lembre sempre da desconstrução. Lugar de acolhimento dos excluídos, dos despatriados, dos que perderam a palavra, dos que se encontram sem tempo ou lugar. É essa clínica que Angela sempre fez.

No fim do poema, o monge se calou descabelado, assim como nós diante da morte de uma parte querida de nós, nesse abandono inerente ao humano.



CONSTRUÇÕES COLETIVAS



EQUIPE DE CONTRATADOS DA CLÍNICA DO SEDES



O Boletim do Departamento, muito gentilmente, nos solicitou um testemunho logo após a partida da Angela. Não pudemos fazê-lo naquele momento, tomados que estávamos pela dor da perda, pela falta de palavras que pudessem materializar o que sentíamos. Fazemos agora, quando o passar do tempo, os ritos e a continuidade da vida nos permitem a elaboração pela palavra escrita.

Para nós, escrever sobre a Angela nos remete à Clínica Psicológica do Sedes. Sabemos dos muitos outros espaços nos quais ela atuou, militou e contribuiu para instituir, sabemos de seus grupos de transmissão, cercados de empenho e competência. Mas nos atemos aqui ao privilégio de ter partilhado com ela o trabalho na Clínica do Sedes, lócus de intensa criação coletiva, no qual a busca da transformação social por meio da práxis clínica é leme para a formulação de pensamentos e de ações, prática da qual o movimento contínuo de formação é decorrência.

Já se vão 20 anos de realização do Projeto Clínico-Ético-Político. Angela foi uma das proponentes e participantes aguerridas. Projeto alicerce de diretrizes e de pensamentos inovadores nas práticas em Saúde Mental. Projeto que considera que a clínica requer ampliação, soma de olhares, rede de ações. Projeto que acredita na inseparabilidade entre clínica e gestão. Projeto que aposta na potência dos espaços grupais. Projeto que agora é ação, é pratica. Vários profissionais contribuíram para sua implantação ao longo desse período. Um se foram, outros chegaram.

E o trabalho continua vivo e pulsante.

Trabalho como possibilidade de transformar ideias e princípios em ações, o privilégio de, com nosso instrumental teórico-técnico acompanhar a emergência da fala em vidas silenciadas. A constante luta em busca da igualdade de direitos, de ampliação de possibilidades vitais. Busca da afirmação de cada sujeito em sua singularidade. Aposta na potência transformadora dos encontros grupais. Promoção do pensamento, do conhecimento do mundo e de nós. Enfim, trabalho como ferramenta para o aprimoramento de cada um.

Angela não está mais entre nós, não podemos mais ouvir suas gargalhadas, suas pontuações precisas, seus questionamentos, suas compreensões clínicas e institucionais, sua posição política. Mas muito da Angela permanece entre nós: na excelência de nosso fazer clínico, no compromisso ético e na crença, apesar de tudo, de que podemos transformar, nos transformar. Afetarmo-nos mutuamente.

Angela, sempre única e singular, construiu inúmeras redes. Estas, firmes, persistem.



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[1] Andréa Paes Favalli, Cláudia Justi Monti Schönberger, Dirle Portella Bezerra, Elisa Maria de Mesquita, Elisabeth Dentello Camolesi, Lindilene Toshie Shimabukuro, Maíra Maciel Campomizzi, Márcia Mendes, Maria Antonieta Whately, Norka Bonetti, Sandro Andrade, Sylvia Ribeiro Fernandes.
[2] Núcleo de Referência em Atenção à Adolescência e Juventude.




 
 
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