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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    43 Setembro 2017  
 
 
HOMENAGEM

PARA SILVANA RABELLO QUE, COM SEU TALENTO ESPECIAL PARA CONSTRUIR AMIZADES, LOGO SE TORNAVA “SIL”


JANETE FROCHTENGARTEN[1]


Sil viveu 57 anos e bem pouco a mais.

Em torno dela, em seus últimos tempos, formou-se o grupo das Doroteias e Doroteios, assim nomeado através de uma brincadeira. Sil gostou e adotou; era seu grupo de referência. Este grupo conseguiu festejá-la em seu aniversário. Dois meses e 4 dias depois, Sil morreu.

Na comemoração, em um clima de muito emoção, Sil se propôs a reter o choro, e abraçou, papeou e riu. Só pediu para que não se cantasse o
Parabéns a você. Insuportável ouvir, entoado, o “muitos anos de vida”. Sabia que era seu último.

Morreu querendo muito viver. Sofria e lutava. Doente, internada, seguia os noticiários e discursava, veemente, em protestos contra os rumos que o Brasil tomava. Sofreu com a invasão truculenta da Cracolândia. Sofreu por não poder ir receber o prêmio
Carrano de Luta Antimanicomial e Direitos Humanos, atribuído pela sua importante participação no Projeto Sampa —Saúde Mental Paulistana. Sofria com vibrações, vibrações de vida.

E aconteceu a missa, no dia três de julho. No gradil da capela da PUC, fitas estendidas formavam um varal com muitas fotos de Sil com amigos. Um convite à vista:
quem quiser, pode escolher uma foto e levar. Dentro, entremeados com as preces litúrgicas, soavam, lindos, os sons do violão de uma Doroteia e a voz nos cantos de outra Doroteia. E aconteceram as falas. Falas simples, de quem quis, em nome de muitos. Falas-abraços, para quem, como ela, sempre abraçava abrindo o sorriso e os braços em amplidão.

Aqui estão:



COMO EU OLHAVA PARA ELA


DE SILVINHA MEIRELLES


Tive um jardineiro que gostava de me mostrar cada coisa que fazia, me chamava muito seguido.

Um dia, saí várias vezes para ver um broto, um canteiro afofado, uma poda, uma praga ou a grama recém cortada, e não tinha mais o que comentar e soltei a pérola:

"Você gosta muito do que faz, não gosta?!"

Ele me devolveu de bandeja:

"Acho que a vida em si é meio sem graça pra todo mundo, o truque é como a gente olha pra ela."

Definitivamente, a Sil sabia esse truque.

Saboreava o pão de leite, o acontecido com um “pacientezinho” (como ela dizia), o tom do piano, a orquídea que o Thiago deu, a França...

Se indignava com o mal feito, com a desonestidade e, sobretudo, com a falta de gentileza e educação.

Pra escrever esse texto, primeiro rascunhei palavras que poderiam sintetizar o que ela fez por aqui:

Ela alastrou, multiplicou, contagiou, proliferou, irradiou, disseminou...

Depois fui ao dicionário atrás de cada uma dessas palavras e descobri que são todas sinônimos da feia: PROPAGAR!

Então, a Sil era uma propagadora!

Quando entrava, irradiava presença, sempre vaidosa e elegante!

Quando falava, contagiava com seu entusiasmo e maneira pessoal de contar as coisas.

Criou lastros, multiplicou afetos.

Determinada e dura na queda, às vezes dava muito trabalho, mas era bastante delicada e inteligente para saber a hora de parar ou como nos recuperar depois de um tempo.

No varejo, me deixou indicação de massagista, analista e bons livros. Receitas de geleias e molhos.

No atacado, me deixou uma nova família, um grupo de amigos de diferentes lados que nem sei dizer como ela foi nos juntando e nos costurando uns aos outros.

Muitas vezes, ela nos pedia silêncio. Mandava por WhatsApp:

- “Prefiro ficar quietinha" (coração, florzinha e beijinhos).
- “Ok, descanse, qualquer coisa estamos por perto” (coração, florzinha, gifs, estrelas e beijinhos), respondíamos.

Mas não desgrudávamos os olhos do WhatsApp até que ela ressurgisse para nos resgatar!

Ando bastante impressionada com a quantidade e qualidade dos depoimentos que tenho ouvido e lido sobre ela.

Como me disse a Janete: "Silvana plantou brisas e colhe lindos frutos que não cessam de chegar”.



DE JANETE FROCHTENGARTEN


Em uma amizade cabem muitas coisas. Cabem quantidades insuspeitáveis de amor. Cabe muita alegria, cabe o prazer único de compartilhar risos, dores, visões de mundo, músicas, cinema... compartilhar vidas. E cabem, também, pequenas cenas de intimidade. Quero contar, hoje, aqui, duas cenas.

A primeira, em maio, em um domingo à noite. Estávamos, em poucos amigos, reunidos em casa de Silvana. Os pés da amiga, por conta da doença, estavam bem inchados. E ela nos diz: “Eu estou bem, gostaria tanto de ir trabalhar, de ir atender meus pacientes de amanhã, mas não há sapato para estes pés, não dá...”.

E todos nós, afoitos: “Tênis?” ... “Não, não dá!” ... “Hum... e Havaianas??”...“Não, não dá!”.

Silêncio. Que desalento!

Aí, hesitante, lembro de um sapato meu, bem flexível, número bem maior do que o que Silvana calçava e digo:

“Sil, e se eu deixasse, na portaria do teu prédio, amanhã cedo, esse sapato que tenho, pra você tentar usar? ”.

Oferta aceita, assim foi feito.

Segunda feira, meio da manhã, em um intervalo em meu trabalho, vejo mensagem de WhatsApp, foto com legenda. A foto: Silvana mostrando seus pés calçados com os meus sapatos. A legenda: “Tô contente, tô feliz, tô no consultório atendendo!!”

Que alegria boa!

Contente, continuo a trabalhar também.

Mas, aí, Sil quis comprar sapato igual para me dar, para que ela pudesse continuar a usar. Eu não tinha pressa alguma, mas a amiga não tinha sossego.

Eu disse que iria procurar e - ufa! - consegui encontrar e comprei. “É igual?”, Sil pergunta. Mando foto. Tudo tranquilo.

Mas... aí, Sil continuava sem sossego. Queria pagar. E quando Sil queria ... Bem, pagou.

Como estávamos bem perto da data de meu aniversário, eu disse: “Então, este é o meu presente, eu gosto muito deste sapato!”. E ela: ”Não, teu presente vai vir depois!!!” E quando Sil queria...

Segunda cena. Mês de junho. Silvana, já mais doente, no hospital. Falávamos, de tudo e de nada. Juntas chorávamos e juntas ríamos. Tantas coisas! De repente, Sil me diz “Tô devendo teu presente de aniversário...”. E eu, comovida: “Tudo bem, Sil, tudo bem, você vai me dar, tá tudo bem”.

Como estávamos, olho no olho, mudando de conversa, digo: “Acho tão lindo o jeito que você pinta os olhos. Eu não consigo pintar assim, fica tudo borrado”.

“Kajal, diz a Sil, lapiseira de Kajal, aí faz este risco bem fácil; mas precisa ser de uma marca boa”. E me diz a marca e o nome da loja onde posso encontrar o Kajal bom.

“Ah, legal”, digo eu, “E a tua lapiseira, ainda tem bastante?”. E ela: “Sabe que não? Tá acabando...”. “Feito!”, digo eu. “Vou e compro pra nós duas!”.

Não deu tempo. No sábado, 24 de junho, Silvana morreu. Fiquei devendo. Será ??

De verdade, Sil não me deve nada. Na verdade, não devo nada a ela. Nos demos tudo o que em nosso imenso afeto pudemos nos dar. Nosso grupo querido, as Doroteias e os Doroteios, unido com ela, deu e recebeu da Sil tudo que é possível em uma intensa relação amorosa como a nossa.

Mas, amigos, de verdade mesmo, Silvana nos deve: devia ter vivido muito mais!

Obrigada.



DE ADRIANA BARBOSA PEREIRA e CHRISTIANE MERY COSTA


Há coisas que só podem ser ditas depois, se ditas antes o dizer precipita a despedida, antecipa o que ainda não chegou, faz o fim de um tempo antes de seu verdadeiro fim, faz morrer vivendo. A Silvana se foi antes de envelhecer, antes que o desejo de ser e fazer outra coisa tivesse esmaecido. Foi agarrada à vida e cheia de projetos.

A Sil encheu de afeto e energia o grupo que constituímos, colocando seriedade e doçura no Projeto Rede Sampa. Insistia em divulgar a competência dos trabalhos desenvolvidos pelos profissionais do SUS durante os cursos que coordenava, em priorizar a escuta e o acolhimento às famílias atendidas, em olhar para as vulnerabilidades dos territórios e organizar o trabalho sem que isso causasse sofrimentos aos trabalhadores. E esse estilo chegava até eles. Era meiga, firme e enérgica. Sorriso estampado no rosto e nos olhos.

Agora, transitamos entre lamentar pelos projetos que não se realizaram, pelas músicas que não cantamos e agradecer pela escuta serena e transformadora do sofrimento psíquico e dos traumas sociais das crianças, jovens e suas famílias, na Saúde Pública. A Sil tecia uma rede entre as pessoas de quem ela gostava e com quem queria trabalhar. Sentiremos a sua falta, sentiremos muitas e muitas vezes sua falta, sentiremos falta dessa mistura rara de energia e leveza.

Serão inesquecíveis as reuniões em seu apartamento amarelo, cheio de plantas, com cheiro de chá. O piano, nunca tocado nesses dias, se fazia presente para quem pudesse ouvir. Vamos estar atentas às músicas ainda não tocadas, Sil. Você foi embora num dia brilhante de sol, cuidada por seus amigos mais queridos e nos detalhes mais íntimos. Sua certeza na transformação e na força de uma rede de afeto é a nossa mais cara e permanente herança.

E, em grande sintonia com estas falas, seguem, para terminar esta homenagem, estas palavras de alunos, em grata e sofrida emoção.



DE BRUNO MANGOLINI, TOMÁS BONOMI e BRUNO ESPÓSITO


Neste fim de semana perdemos uma pessoa muito querida. Silvana Rabello, além de ser uma referência no meio psicanalítico e clínico, tinha uma grande importância em nossa história; tanto de nós, do Conexões Clínicas, como de outros colegas da psicologia. Me lembro bem quando tivemos nosso primeiro contato, quando ela apareceu para dar o último semestre de psicanálise, ainda na graduação. Ela foi cativante desde o início: uma mulher linda, serena, delicada, extremamente cuidadosa ao se dirigir ao outro, escutava atentamente a todos. Não demorou para criarmos uma boa afinidade com ela, e logo estávamos planejando fazer um grupo de estudos que ela coordenaria, com amigos próximos.

Foram deliciosos encontros, que se estenderam por sete anos; íamos em seu consultório, às vezes em sua casa, onde ela nos ajudava generosamente. Ela conseguia fazer o estudo de Lacan ser algo leve, talvez por poder nos conduzir por atalhos, dando muita coisa “mastigada” para nós, como uma mãe faz; ou talvez fosse por conseguir extrapolar a teoria, nos brindando com exemplos de sua vasta experiência clínica. Ela falava com tanto entusiasmo de seus pacientes autistas, sensível aos menores sinais de evolução da criança. Isto sem mencionar as articulações que fazia com o I Ching, que ela tanto gostava e conhecia, falando sobre a importância da respiração, da meditação, do acaso e da impermanência, sempre em um tom de voz baixo, humilde e preciso. Quando levávamos as ideias da esquizoanálise para o grupo de estudos, Silvana nos estimulava a pensar ainda mais, a ir mais a fundo; chegou até a organizar uma palestra para nos ajudar no assunto. Ao longo desse período, pudemos estreitar os laços e compartilhar muitas histórias de vida. Um carinho enorme que nutríamos por ela e vice-versa.

Silvana foi também nossa supervisora. Era aquela espécie de mestre a quem se recorre, alguém que está disponível para lhe ajudar de modo ético, generoso e alegre. Não é possível dizer da sua importância com palavras. Não estaríamos aqui se não fosse por ela. Silvana acompanhava todos os momentos especiais de nossas vidas, desde a entrega do diploma em psicologia, no casamento de um de nós, na banca da dissertação do mestrado, até o nascimento de um filho; pedíamos conselhos, e ela nos incentivava a ser sempre melhores. Silvana nos acolheu como estudantes, amigos, parceiros, filhos, tudo meio misturado. Uma luz que passou por nós e que servirá de inspiração para seguirmos nossas vidas.

Vai ser muito difícil não tê-la mais por perto. Sua presença será muito sentida, e deixa uma sensação ambivalente de que aproveitamos muito de sua companhia, mas que ainda tínhamos muito o que desfrutar…



Muito obrigado por tudo, Sil!

 

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[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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