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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    44 Novembro 2017  
 
 
ESCRITOS

À MEIA-NOITE EXPLODE O BIG BEN


CRISTINA BARCZINSKI[1]


Por isso você é um artista, como aqueles capazes de esculpir uma cena de
guerra em uma pequena pedra ou de pintar uma cidade com uma multidão de
pessoas, cães e uma torre de igreja em um pedaço de marfim do tamanho da
palma de uma mão. Porque o artista, apenas ele, consegue fazer explodir as
leis do espaço e tempo!

Jogo de cena em Bolzano,

Sándor Márai


Christian Marclay provoca este efeito com sua videoinstalação The Clock, em exibição no novo Instituto Moreira Salles, na Avenida Paulista. O poder que a imagem de um relógio representa no cinema e na vida lá está, em toda sua expressão. Os visitantes, embora teoricamente saibam do que se trata, no entanto não imaginam o efeito deste trabalho. Basicamente, são 24 horas de montagem de fragmentos de filmes, boa parte deles americanos, em que aparece a imagem ou referência a um relógio. Há sete anos este trabalho está em exibição pelo mundo, já passou pelo Centro Georges Pompidou, Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e o Guggenheim Bilbao, e recebeu o Leão de Ouro na 54ª Bienal de Veneza.

Marclay começou colecionando, desde criança, objetos, selos, e adorava fazer colagens, atividade que resulta atualmente na busca de integrar estes fragmentos num projeto artístico. O artista estava procurando imagens de relógio para um outro projeto e deu-se conta de que existe uma infinidade delas, o que o fez encarar o desafio de achar tantas imagens ou referências quantos fossem os minutos contidos em 24 horas (por sinal, são 1440 minutos). Embora as imagens sejam predominantes, por vezes as horas são ditas ou escritas pelos personagens, o que certamente exigiu um trabalho detetivesco para encontrar este material. O humor está sempre presente, como quando surge na tela um relógio marcando uma hora errada, segundo a sequência; a plateia se espanta, o personagem acerta o relógio e todos rimos, encantados: a ordem está restaurada!

O trabalho congrega poesia, humor, filosofia, contando sobre o quanto somos governados por aqueles instrumentos, que nos fazem lembrar permanentemente que nosso tempo na terra é finito. Quando o mostrador de um relógio aparece na tela, há uma emoção presente, alguém que não chega... As horas avançam, implacáveis, alguém olha ao redor, suspira - ele não vai chegar? Boa parte das cenas diz respeito à espera, a um tempo em suspensão, à angústia diante da indiferença – mecânica ou eletrônica - dos relógios.

Uma das condições do artista para a mostra da videoinstalação é que a sala de exibição fique aberta 24 horas algumas vezes, portanto o Instituto Moreira Salles mantém aos finais de semana o espaço aberto continuamente das 10 da manhã de sábado às 10 da noite de domingo. Para a adequada fruição da obra, a sala não tem fileiras de poltronas mas sim pequenos sofás, que facilitam a entrada e saída dos espectadores e criam uma atmosfera aconchegante para aqueles que chegam acompanhados. No entanto, alguns espectadores sozinhos mantêm-se tesos em seus assentos, evitando esbarrões involuntários. Outros, um pouco mais espaçosos, já noite adentro, chegam a se deitar caseiramente no sofá. Alguns comentam baixinho com seus companheiros, tentando identificar filmes ou atores, um jogo à parte para os cinéfilos de plantão.

O artista brinca com o espectador, como quando faz uma mulher responder de um outro tempo à pergunta gerada décadas antes. Ou quando um casacão feminino dos anos 20 se reapresenta quarenta anos depois, repaginado, no minuto seguinte, numa espécie de associação livre produzida pelo artista. Somos desafiados a imaginar o que se passa, quando surgem sem legendas filmes suecos ou japoneses, buscando interpretar a cena unicamente através das imagens. A partir delas, na forma de uma espécie de quebra-cabeças que se assemelha às cenas de um sonho, o artista propõe paralelamente uma história de um século de cinema. A passagem do tempo se manifesta nas roupas e filmagens, no envelhecimento ou rejuvenescimento dos artistas e, sobretudo, através dos diferentes estilos e tecnologias dos relógios que surgem em cena.

A experiência de assistir a este filme é paradoxal, pois apesar da repetição a cada minuto das imagens do relógio, o tempo é inteiramente subvertido pela sequência dos fragmentos de filmes. A obra continuamente nos surpreende e comove, sobretudo com a mistura dos tempos, escolha dos filmes e o uso da música como elemento de ligação. Assim que começamos a nos ligar a um trecho - por vezes um filme querido da infância - e desejamos continuar a vê-lo, o artista nos frustra, interrompendo a cena, tal como um despertador que nos acorda de um sonho prazeroso.

Os filmes conversam com as horas dos dias a que se referem: a madrugada é povoada por personagens insones, ataques às geladeiras e telefonemas inesperados. O final do dia gera tensão e sobressaltos, conforme explica uma personagem, “porque é assim, sempre acontece alguma coisa à meia-noite” – especialmente nos filmes.

O jogo proposto pelo artista é fascinante e nos desafia. Quando a colunista da Folha de São Paulo, Lucia Monteiro, revelou ao artista que pretendia passar várias horas assistindo à obra, ele lhe pediu que não ficasse as 24 horas, pois não estava propondo uma maratona: “É seu tempo, use-o como achar melhor”[2]. Muitas vezes nos lembramos de filmes onde o relógio tem um papel determinante, como por exemplo, em Feitiço do Tempo, marcando as 6 horas da manhã que aprisionaram Phil Connors. Nesta exposição, a única maneira de descobrir se Marclay o selecionou seria sacrificar o tão precioso sono do domingo...

Em “Escritores criativos e devaneio”(1907)[3], Freud compara a escrita criativa - ou a atividade imaginativa de um modo geral - à brincadeira da criança. Este brincar tem uma importante função psíquica pois possibilita a elaboração de diversos momentos na vida, como o clássico exemplo da brincadeira do fort-da torna suportável[4] para o menino a ausência da mãe. Certamente a fantasia de que podemos controlar o tempo, regulá-lo, fazê-lo parar, avançar e recuar, presente em tantos filmes e romances, está por trás do prazer que esta obra provoca na plateia. Tal o artista que cria um mundo próprio através do reajuste de seus elementos, como afirma Freud, Christian Marclay joga seu carretel (ou relógio?) e convida cada um de nós a partilhar deste jogo - nele podemos lidar com as sérias questões da vida adulta, inclusive com a falta de tempo, com a mesma leveza e humor das brincadeiras infantis.

No folheto distribuído na entrada, havia um delicioso ensaio da escritora inglesa Zadie Smith, sobre sua experiência com The Clock: “Olhei as paredes da galeria à minha volta, onde estavam sentados todos os jovens: hipsters, sem filhos, traziam sanduíches nas bolsas e uma vontade de ficar lá até as três da madrugada. Invejei-os; odiei-os, até. Pareciam ter todo o tempo do mundo.”


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[1] Psicanalista, membro de Departamento de Psicanálise e da equipe editorial deste Boletim, integrante dos grupos de trabalho Medicações psiquiátricas em análise e Sexta Clínica.
[2] Luciana Monteiro, “Em busca do tempo expandido”. Ilustríssima, Folha de São Paulo, 1º de outubro de 2017.
[3] Sigmund Freud, “Escritores criativos e devaneios” (1907). Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. IX.
[4] S. Freud, “Além do princípio de prazer” (1920). Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. XVIII.




 
 
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