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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    44 Novembro 2017  
 
 
ESCRITOS DOS CURSOS

ENTRE A DECIFRAÇÃO E A IMAGINAÇÃO:
A INTERPRETAÇÃO COMO CRIAÇÃO NA CLÍNICA PSICANALÍTICA


ALICE WILMERS BEI [1]


Lenga-lenga! Não devia de. O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse comigo mesmo. Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala?


Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas


Sim, Riobaldo bem elucida a que talvez seja a maior peculiaridade de uma relação analítica: a premissa do íntimo e do estranho que se colocam, simultaneamente, na relação transferencial, possibilitando que o analisando construa e reconstrua novos solilóquios de si e para si, na passageira presença de alguém, para quiçá se reinventar.

Sem lenga-lenga, mas em grande parte na maior lenga-lenga, como esse alguém que é de fora, meu amigo mas meu estranho (...) faz do jeito que eu falasse comigo mesmo?

A essa pergunta, múltiplos canais teóricos poderiam ser desenrolados no campo da clínica psicanalítica; aqui, escolheremos o da interpretação, ou melhor, o da construção, como conceito e método de trabalho, para se refletir sobre a forma de intervenção por excelência da clínica psicanalítica, bem como alguns de seus limites e variações.

Em Construções em análise (2006/1937), Freud aponta como tarefa do analista completar fragmentos da história psíquica do paciente, num trabalho de tornar consciente o material reprimido. Trata-se de um trabalho de construção por parte do analista, para além da interpretação, no sentido de que este, a partir da relação transferencial:

(...) completa um fragmento da construção e o comunica ao sujeito da análise, de maneira a que possa agir sobre ele; constrói então outro fragmento a partir do novo material que sobre ele se derrama, lida com este da mesma maneira e prossegue, desse modo alternado, até o fim (p.279).

O conceito de construção, diferentemente da compreensão tradicional de interpretação, pautada na decifração, implica a produção de um saber que não estava ali, a “colocação” de um sentido, para o conhecimento de conteúdos até então inconscientes.

Nesse texto, Freud faz a famosa comparação do trabalho do analista ao de um arqueólogo: ambos fazem uma “escavação” em busca de um material soterrado, na tentativa de reerguer as paredes e colunas de uma certa morada, mas com a diferença de que o analista dispõe de material intacto, não destruído, e sim transformado e distorcido que, por repetições, associações, sonhos e atos falhos, pode ser reconstruído.

Mas ainda que Freud, com essa proposta de construção ou mesmo de reconstrução (que só pôde ser elaborada com o aparato da segunda tópica, que contempla o desenvolvimento do campo não representável), tenha extrapolado o método interpretativo clássico, no sentido de nomeação de um material isolado e estritamente ligado à linguagem, reteve-se à proposta de uma análise como um trabalho de exploração arqueológica, que visa ao preenchimento de certas lacunas, pela recuperação de material inconsciente, no campo nas representações.

De acordo com Uchitel (1997), em Construções em análise, Freud abre espaço para o método interpretativo que implica a relação transferencial, a comunicação entre paciente e analista em uma espécie de parceria para a construção de fragmentos históricos que façam sentido para o paciente, e que inclui o campo do não representável. Mas, ainda assim, segundo a autora:

A busca da realidade histórica (factual ou fantasiada), recordada pela via da interpretação, ou recriada pela via da reconstrução ou construção, nunca deixará de ocupar um primeiro plano no processo terapêutico (p.51).

Se Freud convida-nos a fazer um trabalho quase de decifração, outros autores a ele posteriores, com uma ampliação desse espectro, puderam pensar no método interpretativo para além da decifração. Um tema vasto na pesquisa psicanalítica, trabalhado por inúmeros autores, mas dos quais escolheremos apenas, e brevemente, Winnicott, Thomas Ogden e Serge Viderman, pela confluência de sentido no que tange à possibilidade de pensar a interpretação como criação do analista.

Winnicott, com uma clínica atenta à comunicação e ao tempo de maturação dos processos de desenvolvimento, no texto A interpretação na psicanálise (1995/1968) apresenta sua compreensão da interpretação psicanalítica como sendo comunicação.

Trata-se de um trabalho de comunicar ao paciente o que este lhe comunicou, e que só pode acontecer na área da transferência. Tal comunicação implica a reflexão para o paciente de um material que este apresentou, contribuindo para o processo de elaboração psíquica, o que é parte de uma construção de insight, diz o autor (p.63).

Winnicott reconhece que se trata de um trabalho que implica o campo não verbal:

Gradualmente os analistas descobriram-se interpretando silêncios e movimentos e um grande número de detalhes comportamentais que se achavam fora do domínio da verbalização (p.61).

Como em um sonho, a interpretação vai além da linguagem verbal, e visa ampliar o material apresentado, contribuindo não só para a tomada de consciência, mas para que o paciente passe por uma espécie de liberação emocional que o permita ir adiante em seu processo de construção de novos simbolismos para suas experiências. Mas o autor ressalta que o analista precisa considerar o fator temporal em suas interpretações, de modo a realizá-las em um estágio de desenvolvimento emocional que o paciente já atingiu pois, caso contrário, as interpretações serviriam para enaltecer o analista, podendo inclusive transformar-se em ameaças ao paciente.

Apoiado na teoria winnicottiana, Ogden (1996) propõe o termo ações interpretativas, também na aposta no campo intersubjetivo entre analista e paciente, considerando que o analista, por meio de suas ações, comunica ao paciente aspectos de sua compreensão acerca do significando transferencial/contratransferencial do processo analítico, o que extrapola a comunicação verbal.

E, para além de comunicar, e talvez esta seja a principal novidade pensada por esse autor, a interpretação é por si só uma ação, capaz de desestabilizar um campo e produzir transformações.

Ora, podemos pensar que se trata de um trabalho de extrema sensibilidade e criatividade, atrelado à condição de função imaginativa do homem. Assim, a interpretação é intrínseca à função imaginativa, de modo que, como sugere Viderman (1990) em uma análise, o inconsciente não é algo a ser decodificado, mas sim “adivinhado”, no sentido de criado e imaginado, de acordo com as histórias que o próprio paciente inventa para si. Para o autor, em uma análise:

(...) o inconsciente não é uma mensagem codificada onde o inconsciente do analista, ajustado no mesmo número, leria como uma partitura aberta na mesma clave. Quando visa as camadas mais profundas do inconsciente, a interpretação nunca faz nada mais que imaginar, de acordo com o que o próprio analisado adivinha de seu inconsciente fora de qualquer prova possível, a face oculta da coisa inconsciente que nenhum dos dois jamais verá (p.63).

Em um trabalho de conhecimento e construção sobre qual a verdade é a verdade do desejo, e não em busca de provas para o fechamento de um quebra cabeça, a interpretação do analista, na condição de “instrumento imaginário”, cria um texto inédito, não esboçado até então em lugar algum.

Nas palavras de Viderman (1990):

O psicanalista não é um técnico, suspeitava-se disso. Regras técnicas aprendem-se, não são nem difíceis nem em grande número. Pode-se saber tudo sobre as cores, sua mistura, a tela, o óleo, a água e o carvão para desenho: isso nunca fez um quadro. Nós todos sabemos falar: isso não faz um poema (p.47).

Bem além de produzir um discurso que faça sentido e teça ligações, o analista precisa considerar o estado afetivo do paciente, o campo transferencial, as resistências, o avanço ou não do processo e o momento de interpretar, a fim de que o paciente torne suas as palavras do analista. No campo do sensível, dos afetos e emoções, o trabalho do analista não se resume a descobrir vestígio de uma coluna, mas se constitui de um trabalho criativo, mais do que interpretativo.

Representações esboçadas, vagas, obscuras; pulsões e desejos inominados que a palavra do analista nem traz à luz nem descobre, mas, sim, dando-lhes um nome, colocando-as em forma, as cria (Viderman, 1990, p.58).

Retomando nossa citação inicial do Grande Sertão, da decrifração à imaginação, seja como construção, comunicação ou ação, a interpretação clínica, na qualidade de trabalho criativo, contribui para que nossos Riobaldos mirem, vejam, dentro de si, aquilo que lhes é ruim, pervertendo-se menos, podendo conceber, sem bem entender, que o Diadorim é também a Diadorim, e que Riobaldo será eternamente um jagunço, cujas batalhas sempre serão, mas nunca serão a mesmas.

Referências Bibliográficas

FREUD, S. 2006/1937. Construções em análise. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.

OGDEN, Thomas. 1996. O conceito de ação interpretativa. In: OGDEN, Thomas. Os sujeitos da psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo.

UCHITEL, Myriam. 1997. Além dos limites da interpretação; indagações sobre a técnica psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo.

VIDERMAN, Serge. 1990. A construção do espaço analítico. São Paulo: Escuta.

WINNICOTT, D.W. 1995/1968. A interpretação na psicanálise. In: Giovacchini, Peter L. (org.). Táticas e técnicas psicanalíticas. D. W. Winnicott. Porto Alegre: Artes Médicas.

ROSA, Guimarães. 2001. Grande sertão Veredas. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, p. 55.

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[1] Psicanalista, mestre em Psicologia Social pela PUC/SP, aluna do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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