PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    44 Novembro 2017  
 
 
CINEMA

AS DUAS IRENES, “UM FILME SEM ÓDIO”


NAYRA GANHITO [1]


“Uma pequena jóia brasileira”, anuncia o letreiro no trailer oficial de As duas Irenes, longa de estréia do goiano Fabio Meira. É pelo efeito do pequeno e do particular que se extrai a grandeza e a preciosidade de seu filme.

Somos levados pelo olhar da menina Irene em suas descobertas de si e do mundo à sua volta no momento em que a questão de tornar-se mulher começa a colocar-se para ela. Está com 13 anos, filha do meio apagada no olhar de sua mãe, entre a primogênita debutante superinvestida e a graça de criança da caçula. Seu corpo e aparência encarnam esse limbo da adolescência feminina que ainda não desabrochou e os meninos não a percebem ainda. Na fotografia delicada do filme, suas roupas em tom pastel, o cabelo castanho nem claro nem escuro quase mimetizam sua figura com o fundo de tonalidades das paredes e paisagens.

Neste contexto que anuncia descobertas, ela descobre que o pai tem outra família e uma filha com seu mesmo nome e idade, a outra Irene. Uma das grandes qualidades do filme é o modo como a câmera explora o espelhamento das meninas, que comporta de início uma imagem invertida, pois a segunda Irene já ostenta as formas e a libido da puberdade e se move com exuberância em suas relações. Mas o espelhamento não se dá apenas através de suas figuras e movimentos, também se multiplica em pequenos detalhes como o som em eco do chamado: “Irene!”, em uma cena no campo ou na sobremesa favorita do pai, a ambrosia, servida com esmero em ambas as casas.

As duas meninas poderão criar um jogo no qual a rivalidade, a inveja e os ciúmes aos poucos darão lugar a identificações e a uma parceria nas descobertas da idade e no confronto com sua história compartilhada. Jogo cheio de angústia mas que não exclui a criação de uma cumplicidade que irá determinar o desfecho em aberto do filme, que relança à geração dos pais sua verdade. Ambas irão se transformar através dessa estranha fratria.

A narrativa se desenrola neste ritmo do pequeno – um tempo comprido que lembra a lassidão das tardes da infância e primeira adolescência e que nem mesmo os momentos de revelação chegam a acelerar. Os acontecimentos não quebram a continuidade cotidiana em sua lentidão, que tem sua monotonia mas também lugar para o sensível, o mistério e o erotismo lúdico ligado ao final da fase de latência.

É um filme feito de latências, lacunas e silêncios. A câmera insiste nos olhares e na gestualidade dos corpos captando expressões e movimentos da alma que se mostram mais por seus não ditos do que pela palavra. Pouco interessado nas explicações, o diretor foca angústias que não se traduzem, sem cair no psicologismo, e o faz com graça, leveza e simplicidade - nunca simplismo. “Isso tem a ver com o tipo de filme que me interessa, permitindo uma lacuna que o espectador pode completar. Gosto de aportar o filme sem dar respostas: ele continua vivendo em você depois de um tempo”. Lembrando Tchecov, enfatiza que são as coisas não ditas que fazem os tabus se perpetuarem.

O filme não localiza a história precisamente no tempo e no espaço: algum ponto dos anos 70 (?), em alguma pequena cidade interiorana brasileira (Minas? Goiás?), atrasada em relação às metrópoles. Desta forma escapa do enquadre de um filme de época, promovendo certo distanciamento que lhe empresta um alcance atemporal que pode nos devolver ao presente. O contexto sócio-histórico é apenas sugerido na cuidada caracterização dos interiores, na música primorosa, nas roupas e sobretudo nas subjetividades em suas relações na trama. Os elementos que remetem ao patriarcado e à sociedade classista aparecem de forma sutil e sem julgamentos, deixando ao expectador a possível reflexão sobre aquilo que ficou em aberto. Por exemplo, no contraste entre as casas da esposa e da amante. Nas cenas em que as filhas tiram as botas de seu pai ao chegar em casa. Ou no modo como a mãe-esposa controla as roupas da sua Irene em contraste com a presença maternal de Madalena, a empregada, que propicia confidências e de quem Irene irá emprestar o nome para se aproximar incógnita da meia irmã e de sua mãe. “Eu busquei essa condição por dois motivos. Primeiro, porque para mim a história é uma fábula. E também porque eu acho que essa sociedade patriarcal da qual nós ainda somos cúmplices é algo tão ultrapassado que o espaço dela é esse lugar anacrônico, um fim de mundo com costumes fora de época”, diz Meira.

O pai das duas Irenes se divide entre a família burguesa e uma vida aparentemente mais prazerosa e espontânea com “a outra” mulher e sua outra Irene na cidade vizinha, em um ambiente mais modesto. Apesar da conduta marcada por seus pecados de patriarca, não deixa de ser, ao seu modo, amoroso para com ambas as filhas. Daí a ambivalência das duas meninas frente à descoberta. Entretanto, o lugar de cada Irene não é o mesmo no olhar do pai – de acordo com os hábitos burgueses, se mostra mais severo com a primeira; com a segunda pode se deixar encantar por suas graças de mocinha. Mas ao longo do filme não deixa de perceber o pedido do olhar feito pela menina Irene, por exemplo quando a surpreende no espelho com a blusa frente única que encomendou escondida da mãe, costurada aliás pela mãe de sua meia-irmã.

A atmosfera do filme é singela, sem dramatismos. Tudo é delicado, inclusive no que tange ao registro do humor, que apenas nos sugere sorrisos. A outra mulher, Neusa, decerto sofre seu lugar não-dito mas não se confina na amargura, é amorosa e capaz de uma “alegria solar” que transmite à filha e não deixa de influenciar a outra Irene, diz sua intérprete, Inês Peixoto. Alegria e doçura presentes no som de seu acordeão e no prazer que encontra na costura ou preparar os pratos que serve. A atriz conta um momento no Festival de Gramado no qual um ator mirim, impactado com o filme, constatou desconcertado que este é “um filme sem ódio”. “Embora seja uma situação que transparece o machismo e a submissão das mulheres, todos ali têm seus motivos e não são julgados por eles”.

Num ambiente que se mostra como anterior ao discurso feminista manifesto, à cultura do abuso e outras percepções ideológicas, o amor e o sexo, seja nas famílias, seja nas pesquisas das adolescentes com os meninos no cinema local, aparecem com uma espécie de inocência que aparentemente perdemos. Cada época e lugar tem seu mal-estar, conquistas e avanços não são unívocos em seus efeitos.

O filme mostra e faz trabalhar em nós os paradoxos de uma sociedade classista e patriarcal sem excluir o que se perde também do lado dominante. Mandatos e coerções de classe são sofridos também pelo suposto opressor, apesar da enorme promoção social de que desfruta. Lugar de aparências, contenção de afetos, cansaços e tédio. O homem pai de família, em sua domesticação, excluído das atenções da esposa, ao chegar em casa frequentemente cai de sono largado no sofá. Quem o acorda é Irene, com provocações que o desconcertam mas também o enternecem. A esposa e mãe burguesa sacrifica sua sensualidade, presa nas preocupações de sustentar o status da família na cidadezinha - as roupas, a casa, os modos das filhas. A condição de uma certa “felicidade” parece, ao contrário, estar afinal mais do lado dos oprimidos e clandestinos, menos contidos, mais vitalizados e capazes de amor que os supostos favorecidos.

Fabio Meira escreveu o roteiro baseado em uma história familiar que ele descobriu aos 13 anos - seu avô teve duas filhas com duas mulheres diferentes e deu a elas o mesmo nome; sua tia nunca quis conhecer a meia-irmã. A história nunca deixou de intrigá-lo e, há 8 anos, aos 30, ele começou a escrever o roteiro. Seu trabalho comporta portanto uma dimensão de elaboração pessoal, embora com certeza a ultrapasse. “Interessante, algumas pessoas da minha família que estão vendo o filme agora não sabiam”.

Embora tenha afirmado que seu filme “é feminista, mas (...) sem querer ser panfleto”, é mais o registro do feminino que sua obra realiza, no sentido profundo que a psicanálise deu ao termo a partir de Freud. O pai, Marco Ricca, é o único personagem masculino relevante do filme e, curiosamente, foi premiado com o Kikito de melhor ator coadjuvante embora indicado pela produção do filme como ator principal. Além das protagonistas e das muitas coadjuvantes, o filme contou com uma diretora de fotografia, uma montadora e uma figurinista: o diretor viu-se cercado de mulheres: “Não foi intencional. Fui criado em uma família de mulheres muito fortes e interessantes, sempre convivi com mais mulheres do que homens. Isso é muito orgânico.”

Se em seu conteúdo manifesto o filme trata do confronto e da identificação entre mulheres frente ao amor masculino, seu efeito vai além deste registro para falar, de modo atemporal, do valor das descobertas, mesmo as mais traumáticas, em seu potencial de reordenação criativa, de transformação e crescimento, a partir da elaboração e escolhas possíveis para cada um. Podemos ver-nos não em uma ou outra Irene, mas em ambas ao mesmo tempo, em suas diferenças e complementaridades. “Desde a infância, a gente se transforma muito, acho que isso acontece com todo mundo. Então, a Irene que vai em busca da irmã pode ser, ao mesmo tempo, várias Irenes, porque ela vai se transformar, e está se transformando intensamente naquele momento da vida”, diz Meira. Na cena final, elas literalmente irão trocar de lugar. Assim mesmo, podemos nos perguntar se a escolha pela aliança seria possível em um mundo anterior ao feminismo.

Em um momento em que a imediatez e velocidade de notícias aterradoras nos convocam em nossos afetos mais primários e nos levam a responder em nossas formas mais engajadas de expressão, esse filme vem lembrar que a linguagem propriamente artística, justamente por seus implícitos, pela inclusão dos paradoxos no nível das subjetividades, pode nos afetar em outros registros e alimentar um outro tipo de reflexão. Importância da arte nos tempos difíceis, não como escapismo mas alimento para elaborações e criação de linhas de fuga.
…............

Referências

http://cinemaemcena.cartacapital.com.br/coluna/ler/2343/as-duas-irenes

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/09/1918274-filme-as-duas-irenes-mostra-as-descobertas-da-adolescencia.shtml

http://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,as-duas-irenes-que-venceu-o-premio-da-critica-em-gramado-fala-de-familias-multiplas,70001994045

https://oglobo.globo.com/rioshow/critica-as-duas-irenes-21818860


________________________________
[1] Psiquiatra e psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora no curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea e membro da equipe editorial deste Boletim.




 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/