PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    44 Novembro 2017  
 
 
PSICANÁLISE NA POLÍTICA

CONTRA REGULAMENTAÇÃO DA PSICANÁLISE, MOVIMENTO ARTICULAÇÃO LUTA PARA DIFERENCIÁ-LA DAS TERAPIAS NATURISTAS


ANA MARIA SIGAL[1]


No dia 8 de outubro se realizou, no Rio de Janeiro, uma reunião do Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.

O movimento atualmente está representado por 17 Instituições Psicanalíticas cuja característica é serem todas instituições de formação de psicanalistas. Muitas destas instituições têm múltiplas representações em diferentes estados, o que faz com que o número de membros representados seja muito grande. Por exemplo a Febrapsi, que toma parte das reuniões, representa a todas as instituições de Sociedades Psicanalíticas que, no Brasil, estão associadas à IPA (International Psychoanalytical Association). Assim ocorre também com os Fóruns do Campo Lacaniano, o Círculo Brasileiro de Psicanálise, e outras que têm filiais em todo o país.

Eu represento o nosso Departamento desde a primeira reunião, no ano 2000, assim como vários outros representantes que participam da Articulação desde essa época, como forma de manter viva tanto a transmissão quanto a luta e a história deste Movimento. No decorrer destes anos, vários membros do Departamento têm me acompanhado nesta representação, colaborando com a sustentação de nosso lugar neste espaço. Em geral todas as instituições têm dois representantes, se bem que cada instituição tenha direito a um voto, independentemente do número de representantes ou de afiliados de cada instituição. Temos travado várias lutas e defendido o lugar da psicanálise em diferentes ações.

A luta de que nos incumbimos neste momento é tentar retirar o nome da Psicanálise da proposta de lei no senado, PL 174, representada pelo senador Temário Mota, que tenta regulamentar nosso ofício junto à proposta de regulamentar as terapias chamadas naturistas.

Temos desenvolvido um árduo trabalho junto ao CFP e aos Conselhos Regionais de vários estados, o qual redundou no apoio massivo de todos à nossa proposta. Também estamos desenvolvendo uma ação no Senado para conversar com os diferentes senadores para que apóiem nossa causa. Através de nossas instituições, temos igualmente pedido assinaturas dos colegas contra o projeto e, recentemente, já contávamos com quase 2.000 assinaturas a mais contra a aprovação do projeto.

A primeira relatora da PL 174 foi a Senadora Fatima Bezerra, que se desligou rapidamente desta função. Tentamos encontrar um senador que pudesse assumir essa representação e que fosse a favor de nossa proposta. Conseguimos finalmente que o deputado Randolfe Rodrigues aceitasse este lugar e estamos em contato com ele. Mandamos todo o material que possuímos em relação às diversas tentativas de regulamentação da psicanálise feitas pelos deputados evangélicos, que foram vetadas, e ele receberá no Senado em Brasília uma comissão da Articulação para conhecer nossos argumentos.

Nesta última reunião da Articulação, depois de uma árdua discussão, articulamos todas as ações a serem empreendidas. Entre as questões propostas está a de fazer conhecer ao máximo, nas nossas instituições, a necessidade de não regulamentar a psicanálise, questão fundamental a ser compartilhada por todos os psicanalistas, já que a regulamentação atinge a própria ética da psicanálise. Foi proposto que se comunicasse o desejo de que este tema seja discutido dentro das instituições e nos programas de formação. O argumento de referência mais forte está baseado no trabalho de Freud de 1926, A questão da análise leiga. Foi pedida a divulgação da carta enviada ao CFP e ao CRM junto aos grupos de formação e entre os membros da instituição, e se recomendou a leitura de vários materiais produzidos pelo Movimento Articulação. Com este objetivo sugiro a visita, no site do Departamento, ao material da Articulação que figura na página inicial (http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?mpg=09.04.00), assim como adjuntamos a carta ao CPF (leia a seguir) e meu artigo apresentado na Federação Brasileira de Associações Psicanalíticas, muito bem vindo pelo coletivo, como representante de nosso pensamento. Decidiu-se por enquanto a não publicação da carta que foi enviada ao Senado, porque deveria primeiro ser respondida pelo senador, uma vez que receba a nossa comissão. Por enquanto fica mantida a postura de que cada instituição se responsabilize, individualmente, pela divulgação das ações do movimento. Existe uma difícil discussão interna sobre como não institucionalizar o Movimento Articulação, ao lhe atribuir o papel de verdadeiro porta-voz do que é o psicanalítico, porque isto já implicaria uma primeira tentativa de regulamentação; por outro lado, precisamos saber a o que nos opomos. Pode-se dizer o que não é psicanalítico? Como combatemos a apropriação do psicanalítico pelos evangélicos se não podemos dizer que não fazem psicanálise?... Qual o piso comum que nos permite trabalhar juntos dentro deste grupo? Árdua discussão que implica teoria e política no campo da psicanálise.

Também se propôs investir na difusão nas mídias sociais, pedindo a cada membro que distribua a carta ao CFP em seus próprios espaços, e encontrar na grande mídia espaços de difusão para fazer conhecer nossa posição. É de se notar que nossos próprios parceiros às vezes não entendem bem por que não é bom regulamentar a Psicanálise.

Temos a proposta de retomar, a partir das apresentações para o livro, um novo aprofundamento teórico sobre o que nos permite ter um piso comum de trabalho que, apesar das grandes divergências de escola, nos faz reconhecermo-nos mutuamente como psicanalistas, e trabalhar comunitariamente frente aos problemas que se nos apresentam.

Na segunda parte da reunião se elaborou o esboço para um próximo livro que desejamos publicar.

Esquema do livro:
Aspecto principal: defender a não regulamentação da psicanálise.

  • Introdução, renovando as argumentações de por que não regulamentar
  • História da regulamentação no Brasil
  • História da Articulação (legislação e atos políticos)
  • Psicanálise e religião.

Creio desta forma passar aos membros do Departamento um informe completo sobre a tarefa que me é delegada.

 




CARTA AO CFP


MOVIMENTO ARTICULAÇÃO
DAS ENTIDADES PSICANALÍTICAS BRASILEIRAS


Caros Colegas do Conselho Federal de Psicologia, Como deve ser do conhecimento de vocês, desde o ano 2000, o Conselho Federal de Psicologia, inicialmente junto com o Conselho Federal de Medicina, desenvolve uma parceria com a Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras no que tange à luta contra eventuais projetos de lei no Congresso Nacional destinados a promover uma regulamentação de práticas psicoterápicas ou mesmo psicanalíticas, orientadas ideologica e religiosamente por interesses que nem de longe tangenciam aqueles proclamados pela ética profissional do exercício da psicologia ou da medicina. A Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras se reúne ininterruptamente desde então e acaba de receber a notícia de que novo projeto de Lei foi inscrito no Senado, Projeto de Lei do Senado n° 174, de 2017, visando, novamente, uma regulamentação do exercício de algumas práticas – dentre elas as psicoterápicas e psicanalíticas – sem qualquer relação com o que a comunidade profissional, de formação científica, julga ser de garante para essa mesma prática. O projeto está publicado no site: http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/129523 e é de autoria de um Senador de Roraima, Telmário Mota – que recentemente mudou para o PTB –, visando regulamentar “a profissão de Terapeuta Naturista, nas modalidades medicina oriental, terapia ayurvédica, outras terapias naturais, e terapias psicanalíticas e psicopedagógicas” (sic, grifo nosso).

Essa não é a primeira tentativa da Bancada Evangélica no Senado Federal buscar uma regulamentação da psicoterapia e da psicanálise para que os membros dessas comunidades se apropriem de uma prática, um saber e uma clínica que, há mais de um século, exige uma formação fundamentalmente laica, que imprime uma necessária neutralidade no exercício da profissão. A tentativa anterior se deu com um projeto de lei impetrado pelo Deputado Simão Sessim, em 2003, e pode ser barrada pela ação conjunta dos Conselhos Federais de Psicologia, de Medicina e do movimento da Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, razão de tomarmos a liberdade de lhes escrever no momento, solicitando a retomada de ações conjuntas no sentido de, novamente, unirmos forças junto ao Congresso Nacional para impedir que esse novo projeto siga adiante. Como das outras vezes, é de absoluta clareza para todos os participantes de nosso movimento da Articulação que, qualquer que seja a tentativa de uma regulamentação do trabalho do psicanalista, os únicos que teriam a ganhar com isso seriam aqueles que nós, psicanalistas brasileiros das mais diferentes instituições psicanalíticas – que nem sempre estão de acordo entre si, mas quanto a isso são unânimes –, não consideram psicanalistas com formação suficiente para o exercício dessa prática cujas regras são exclusivamente aquelas adotadas por Sigmund Freud, criador da psicanálise: a da associação livre daquele que nos vem consultar e a da abstinência do psicanalista. Qualquer outra regra, regulamentação, é contrária à prática psicanalítica.

Na expectativa de podermos contar novamente com a presença e participação desse Conselho em nossa luta para fazer prevalecer uma psicanálise nos moldes como a queria Sigmund Freud e que hoje somos nós a defender,

Rio de Janeiro, 13 de setembro de 2017.

Cordialmente,

pela Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras:

 


Entidade Representante [1] CRP ou CRM e-mail
Aleph-Escola de Psicanálise Gêisa de Carvalho Silva Ferreira CRP 04/1507 ferreirageisa@gmail.com
Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA Rosane Ramalho
Maria Ida Fontenelle
CRP: 05/37937 rosaneram@gmail.com
mifontenelle@uol.com.br
Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEPdePA). Gustavo Antonio de Paiva Soares CRM: 12871/CREMERS gpsoares@terra.com.br
Círculo Brasileiro de Psicanálise Anchyses Jobim Lopes CRM 52 33.538-8 anchyses@terra.com.br
Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro Edson Soares Lannes CRM 16343 RJ adm_cprj@cprj.com.br
Corpo Freudiano Denise Maurano Mello
Patrick Werner dos Anjos
CRP 05/4182
CRP 05/41492
dmaurano@corpofreudiano.com.br
patrick.clinica@gmail.com
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Ana Maria Sigal CRP 06/13702 anasigal@terra.com.br
Escola Brasileira de Psicanálise Samyra Assad CRP 04/6085 samyra@uai.com.br
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Sonia Alberti CRP 05/2486 sonialberti@gmail.com
Escola Lacaniana de Psicanálise Maria Teresa Saraiva Melloni CRP 05/2313 mtsmelloni@gmail.com
Escola Letra Freudiana Mauricio de Andrade Lessa
Patricia Sá
CRP05/20365
CRP 02/29411
mauriciolessa2@gmail.com
patriciasa13@gmail.com
Federação Brasileira de Psicanálise - FEBRAPSI Rosane Müller Costa CRP 11/0169 rosanemullerbr@gmail.com
Formação Psicanalítica Instituto Sedes Sapientiae Maria Helena Saleme CRP 06/4241 sa-leme@uol.com.br
Laço Analítico Escola de Psicanálise Francisca Mariana Abreu Mayerhoffer AMT-RJ: 412-1 mariana0307@hotmail.com
Práxis Lacaniana/Formação em Escola Antônia da Conceição Portela Magalhães CRP 05/5808 antonipmagalhaes@gmail.com
Sigmund Freud Associação Psicanalítica Bárbara Conte CRP 07/1004 barbara.conte@globo.com
Tempo Freudiano Associação Psicanalítica Fernanda Theophilo da Costa-Moura CRP 05-11426 costamouraf@gmail.com

________________________________
[1] Representante da Entidade no Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras




FALA PARA O ENCONTRO NA SOCIEDADE DE PSICANÁLISE - 30/10/2015 MOVIMENTO ARTICULAÇÃO E A REGULAMENTAÇÃO DA PSICANÁLISE


Ana Maria Sigal [2]


Bom dia, é um prazer poder estar aqui para conversar sobre um tema que, sem dúvida, é essencial ao campo psicanalítico. Agradecemos o convite que nos foi feito por Ana Paula Terra Machado, da Febrapsi e membro da Articulação, para apresentar as questões que nos ocupam e abrir um diálogo que permita alavancar questões e dar informações sobre os temas que estamos discutindo há 15 anos no movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.

Este movimento é composto hoje por aproximadamente 18 instituições que, por sua vez, têm suas filiais, e representam um amplo espectro do campo psicanalítico. Proponho-me a falar uns 20 minutos, levantar questões polêmicas com as quais nos vemos o tempo todo confrontados, e apresentar as razões pelas quais se organizou este movimento no ano 2000. Este espaço tem uma característica fundamental: é formado por instituições que se reúnem para discutir e defender a psicanálise das tentativas de regulamentação, são instituições de diversas formações teóricas e escolas que, em um espaço único, no Brasil e no exterior, se encontram dividindo um alicerce mínimo comum para poder trabalhar em um coletivo, que se baseia no respeito às diferenças. Formam parte deste movimento a Febrapsi, ligada à IPA, diversas instituições lacanianas como Corpo Freudiano, Escola Brasileira de Psicanálise, Aleph, APPOA , Escola Letra Freudiana, Laço Analítico, Escola Lacaniana de Psicanálise.R.J, Escola Psicanalítica dos Fóruns do Campo Lacaniano e Tempo Freudiano, que respondem a duas internacionais diferentes e alguns grupos brasileiros independentes, como o Sedes, com seus dois grupos de formação, Departamento de Psicanálise e Formação em Psicanálise, dois grupos de Porto Alegre, Sigmund Freud Associação Psicanalítica e CEPdePA, o Círculo Brasileiro de Psicanálise e o Círculo Psicanalítico de R.J. cuja característica necessária e comum é que ofereçam formação.

Articulação é um espaço que faz questão de não se constituir enquanto uma associação, mas sim como um movimento, que se organiza a cada encontro e no qual não existe nenhuma sociedade hegemônica. A participação e votação não dependem do número de associados ou membros, é na presença e na argumentação que se trabalham as ideias. A cada reunião uma instituição organiza e preside a reunião, consolidando um espaço democrático.

No meu entender, o que nos permite fazer esta aproximação tem a ver com a modalidade com que trabalhamos a diferença. Entendo, seguindo o pensamento de Derrida, que a diferença não é necessariamente oposicional. O sistema binário, que oferece uma verdade positiva frente a uma não verdade na diferença, não é a modalidade instituída. Numa entrevista a Elizabeth Roudinesco, intitulada políticas da diferença, Derrida, ao falar sobre o que tem de universal na différance, diz que essa noção “[...] não é uma distinção, uma essência ou uma oposição, mas um movimento de espaçamento, um ‘devir-espaço’ do tempo, um ‘devir-tempo’ de espaço, uma referência à alteridade, a uma heterogeneidade que não é primordialmente oposicional”. (DERRIDA & ROUDINESCO, 2004, p. 34). É uma relação com o outro, sem que seja necessário, para que ela exista, congelá-la ou fixá-la numa distinção. A différance é cunhada por Derrida para dar conta da temporalização e do espaçamento, pois as oposições não podem ser pensadas num binário, visto que esse não encerra o campo semântico da diferença, sendo possível pensá-la como relação, apenas no movimento, no jogo, até porque o a da différance lembra espaçamento e temporização, desvio, retardo.

O que nos sustenta como grupo que dialoga e produz é o conceito de diversidade. Este conceito vem ganhando um amplo desenvolvimento na teoria psicanalítica. Cada associação tem suas regras e seus conceitos teóricos enunciados desde dentro do campo da própria psicanálise e que dizem respeito a como cada um entende a formação subjetiva e também a formação de um psicanalista, que é diversa e interminável. Uma instituição pode dar um suporte e uma rede para transitar na formação, mas nunca poderá dar conta dela na sua totalidade.

Dentro do próprio campo existem grandes divergências na forma de organização e reconhecimento, seja por razões institucionais ou teóricas; passe, análise didática, reconhecimento pelo coletivo, etc., são formas que cada instituição utiliza para avalizar o percurso do devir analista. Podemos discutir e discordar sobre as modalidades, mas a decisão é de cada instituição e não é isto o que impediria a convivência.

O importante é que existe um enunciado comum: a psicanálise não é um saber teórico desengajado da prática e sua transmissão se funda essencialmente na análise pessoal, condição do conhecimento do próprio desejo inconsciente. A formação complementa-se com a prática clínica supervisionada e o conhecimento teórico. Justamente estas são as condições éticas que impedem que a psicanálise seja regulamentada por uma lei externa a si própria, uma lei jurídica ou de Estado, ou uma deontologia profissionalizante elaborada por um conselho profissional, CRP ou CRM, que diga quem é ou não um psicanalista. O texto de Freud, A questão da análise leiga (1926), inaugura uma problemática fundamental no campo da formação e damos a ele um espaço singular. Neste texto, Freud defende Theodor Reik, destacado membro de sua comunidade, que foi denunciado como charlatão e perseguido pelo Estado por conduzir tratamentos sem um título que o habilitasse para isso. Aqui Freud dá uma resposta ao Estado e à comunidade médica, defendendo a ferro e fogo a ideia de que o psicanalista se forma a partir de sua própria experiência de analisando, e que o saber médico não contribui com base alguma para este ofício, como justamente nos mostram determinadas paralisias histéricas, que não seguem as bases neurológicas que lhes dariam sentido. Pelo contrário, nos casos de histeria nas quais a paralisia é uma conversão, o saber médico impede a escuta do recalcado, porque impõe um saber científico que não considera as determinações que afetam o corpo a partir dos fantasmas, onde um sintoma orgânico explicita um conflito psíquico e não segue as vias neurológicas esperadas. O ataque a Reik é um ataque à própria Psicanálise e à sua descoberta fundamental - o conceito de inconsciente - e ao valor da fantasia e palavra na produção do sintoma. Freud nos diz que, como profissão, a Psicanálise é uma profissão impossível. Preferimos entendê-la como um ofício.

Na Psicanálise se trata do encontro com uma verdade, a verdade do sujeito, que não segue as leis da lógica cartesiana e sim as que regem o inconsciente. Dito isto, vemos que tanto a terapia quanto a formação têm suas leis e ética próprias, que decorrem do próprio saber. As leis externas a ela pertencem a um esquema burocratizante que enuncia normas a se cumprir. Como pode se regulamentar um tratamento psicanalítico? Que lei pode determinar uma alta, qual é o conhecimento teórico que responde à verdadeira psicanálise? Há uma escola teórica que seja mais psicanalítica que outra? Há uma instituição que seja a legítima representante da psicanálise? Definitivamente não. Lembremos que mesmo se Freud nos diz que a Psicanálise é uma psicoterapia, ela tem diferenças contundentes em relação ao que as associações de psicoterapias definem como seu fazer. Esta questão levanta uma grande polêmica na França quando se tenta regulamentar a lei de saúde mental, o que nos põe em contato com as grandes questões políticas e de poder que circundam esta problemática, já que se ligam aos planos de saúde, aos laboratórios que propagam os remédios psi, e aos DMS 4 e 5, que acabam expulsando as patologias psicanalíticas, para impor as síndromes como nomenclaturas para a classificação das doenças mentais.

Com frequência se escuta dizer que regulamentar a psicanálise seria uma forma de proteger este saber, já que impediria que fosse exercido por qualquer um. No entanto, pensamos exatamente o contrário - cumprir leis enunciadas externamente torna estes enunciados vazios, se estes não são enunciados desde um pensamento ético-político interno ao próprio saber. Esta ética nos diz que a Psicanálise é um saber subversivo que enfrenta o sujeito com sua verdade e que o caminho que se percorre, tanto no tratamento quanto na formação, é singular e único.

Sobre a burocratização destes elementos se apoiam os grupos que desejam lucrar ou se apropriar do prestígio que a Psicanálise tem alcançado em mais de 100 anos de prática.

As instituições que querem se apropriar desta prática por meio da regulamentação formam até 2000 psicanalistas por ano e respondem ao tripé propondo 50 sessões de análise via internet, propondo um conhecimento teórico no qual a teoria está totalmente misturada a elementos religiosos, no qual o supereu e o diabo formam uma unidade moralizante, e em cuja prática clínica incluem mandatos a serem cumpridos para obter a saúde. O poder da sugestão e a obediência funcionam como elementos sobre os quais se apoia a transferência, dando aos pastores o poder de providenciar a saúde magicamente, contrariando toda ética interna do pensamento analítico. Com o tempo, estas instituições vão se aprimorando e escondendo cada vez mais as inaceitáveis evidências de que respondem a uma moral que tem por objetivo o submetimento de seus fregueses, e o aproveitamento econômico do dízimo. Hoje em dia existe o sindicato de psicanalistas que oferece formação e titulação, nada os impede, já que qualquer profissão pode ser sindicalizada, desde podólogo até encanador, e formar um sindicato. A psicanálise não escapa desta situação e permite, através desta, pagar contribuição e impostos. Existem numerosos agrupamentos que escondem sua ideologia e se utilizam do tripé como elemento formal para oferecer uma suposta formação.

No decorrer da história da Psicanálise houve numerosas tentativas de regulamentar a mesma, inclusive a Sociedade de Psicanálise apresentou alguns projetos que não vingaram, seja porque desistiram da tentativa, seja porque o surgimento de numerosas instituições que não se alinhavam com seu pensamento foram crescendo e se apropriando do campo local e internacional, disputando espaços. Entendo que acirrar a luta interna do campo psicanalítico acaba enfraquecendo-o e permitindo que seja cada vez mais atacado e assediado pelas instituições e movimentos que se beneficiariam de sua desaparição. Por esta razão, penso e insisto na importância da Articulação como espaço coletivo que permite manter as diferenças junto a um diálogo fecundo e produtivo que dê mais solidez a nosso saber.

Mas a última tentativa vinda de fora do campo psicanalítico, aquela que dá origem a nosso movimento, acontece no ano 2000, quando o deputado da bancada evangélica, Eber Silva, apresenta uma lei no congresso para transformar a psicanálise numa profissão.

Este projeto apoia uma sociedade chamada Sociedade Psicanalítica Ortodoxa Brasileira (SPOB), que promete um título profissionalizante; ao término do curso, que exige poucas horas de análise, uma supervisão on line, e o estudo de algumas apostilas que distorcem o saber psicanalítico, respondendo de forma espúria ao tripé freudiano.

O movimento Articulação abriu uma luta intensa, esteve no Congresso, encontrou deputados aliados, explicitou os motivos pelos quais nos opúnhamos a esta regulamentação e conseguimos que a lei fosse arquivada. Finalmente, anos depois, em função deste arquivamento o TRF negou permissão à SPOB para desempenhar atividades profissionais de psicanálise no país. O tribunal chegou a um entendimento unânime após julgar a apelação da instituição e considerou improcedente seu pedido de ministrar cursos, realizar debates e conferências sobre psicanálise, e praticá-la como profissão em todo o território nacional. Apoiou-se na ideia de que a formação em psicanálise não integra ainda o elenco dos currículos de graduação aprovados na legislação atual. Nenhuma universidade dá o título de psicanalista, e esperamos que assim se mantenha. Isto abre outra discussão sobre psicanálise e universidade. Entendemos a universidade como um aliado importante para a pesquisa e sua relação com outros saberes, acreditamos na importância que a Psicanálise se inclua na graduação e na pós-graduação como saber teórico, mas discordamos que na universidade possa haver formação de analistas, já que aquela não poderá atender aos outros elementos do tripé. Somos contra que esta regulamente a psicanálise como profissão ou dê titulação de analista. Por enquanto inexiste uma lei que regulamente a profissão de psicanalista e batalhamos para que a situação permaneça desta forma.

Outras lutas fomos desenvolvendo no decorrer destes anos, sempre ligadas ao problema da regulamentação da psicanálise. Pronunciamo-nos contra o “ato médico”, enviamos cartas ao Congresso e conseguimos, junto a outras instância que lutaram por isto, que não se transformasse em lei. Um confronto importante se desenvolveu em relação às instituições que regulamentavam as psicoterapias, em especial a ABRAP. Entendemos que as psicoterapias se regem por uma forma diferente de entender os pilares que regem a psicanálise e não temos nada contra sua regulamentação, mas pretendemos que a psicanálise fique fora destas tentativas, não porque seja o ouro puro, mas porque seus objetivos e princípios éticos são diferentes. A lei que se apresentou para a regulamentação inclui desde florais da Bach e cromoterapias a outras. Nada temos a dizer sobre sua validade, mas, sim, sabemos que nada têm a ver com o modo em que se conduz a cura, se compreende o sintoma e se trabalha a transferência em psicanálise. Nada temos contra a regulamentação das psicoterapias gestálticas, cognitivistas comportamentalistas, apenas pretendemos que a psicanálise não esteja incluída nesta regulamentação, já que seu objetivo e ética são diferentes. Na psicanálise se parte da condição conflitante da própria constituição cindida do sujeito e o que está em jogo numa análise é se confrontar com esta condição. O sintoma se entende como uma fala, como algo que o sujeito tem a dizer, e o objetivo não é apagar a fala, e sim aproveitá-la para encontrar os deslocamentos, as condensações, os recalques que nos permitem aceder ao estrangeiro em nós.

Todo este complexo campo de nosso saber nos depara com a impossibilidade de ter uma regulamentação que nos dê garantias, já que um título de psicanalista pretenderia dar-nos certezas sobre um saber que sempre escapa, que se descentra permanentemente, abrindo novos enigmas e novas angústias.

Esta é a condição que nos mantem unidos na Articulação e faz com que instituições tão diversas se manifestem e lutem, para que nenhuma instância legal possa se atribuir a função de ser a verdadeira autorizadora deste saber.


________________________________
[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, ao qual representa no Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras. Professora do Curso de Psicanálise e co-coordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.
[2] Agradeço à psicanalista Cristina Ribeiro Barczinski a revisão do texto em português.




 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/