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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    44 Novembro 2017  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

DE GAMBIARRAS E GERINGONÇAS – ERA O HOTEL CAMBRIDGE:
O FILME, O EVENTO, A OCUPAÇÃO


FÁTIMA VICENTE [1]

A gambiarra - Ver: Amor

Na escuridão molhada, assombrada pelos fios verdes, vermelhos, azuis e amarelos, recentes amigos, outrora improváveis, se revezam. Entre chacotas e risos eles tentam fazer a luz voltar. São autodenominados engenheiros se fazendo de eletricistas. São retirantes, exilados, refugiados. Fugidos, saídos de onde não dá mais pra ficar. Daí chega outro, mais um, a lanterna iluminando a cabeça, assim como em uma mina, como aquelas do Congo, em que houve minério, mas que para os congoleses já não há. Surpresa! É bem vindo um pouco de uma luz inesperada. Tensão, um pouco de medo. Um fio aqui cortado, outros ali reunidos, e Fiat lux? Nem tanto. Entre sustos e risos, está feita a gambiarra.

Era o hotel Cambridge, outra vez. Acordado e revivido pelas vidas que se salvaram nas rotas desviadas do mundo. Os nordestinos, os palestinos, os nortistas, as mulheres sozinhas com seus filhos, a velha com seu delírio-elefante. É gente, gente que não acaba mais. São vozes e línguas, encontros, desencontros e reencontros, em árabes, em portugueses variados, em diversos franceses, em espanhol e em castelhanos e outros tantos sons e algaravias por vir. Cantos e danças de distantes lugares. Comidas partilhadas e comidas interditadas, arroz, porco, também peixe, comida que se come e comida da qual se fala, mas que não está lá. Também mandioca, pão e café. Permissões e interditos. E ainda semidizeres. Só se pode pegar na mão depois de namorar. Você quer carinho? - pergunta ele. Você quer dar? - ela responde. A energia volta a circular. Da ocupação para o mundo e do mundo para a ocupação. Os ligados no Skype poderão continuar a se falar e o filme voltará a rodar.

Nós também estamos chegando. Os cineastas, os psicanalistas, os escritores e artistas (também há atores no filme). Querendo sair da bolha. Vamos até lá. Saímos. Mas sem conseguir jamais (não) ter estado nela. Afinal, para escapar ao próprio destino é sempre muito tarde. Vai com a gente a própria marca. A que exige o esforço de pôr em palavras para poder dizer. Só nos resta buscar fazê-lo.

Em obras: fios soltos, fios enovelados, fios desencapados, fios desnovelados...

O sábado amanhece chuvoso e um pouco frio. Mas, como estamos em São Paulo, é possível que tudo isso mude até a hora do almoço. Ou antes. Ou depois. À incerteza do clima se agregam minhas dúvidas sobre aonde ir. Soma-se a isso a contrariedade de ter que escolher entre coisas que eu queria muito. Tenho, quase ao mesmo tempo, dois eventos, o do Departamento, a ocorrer em um cinema da Rua Augusta e uma Conferência, que desejaria assistir, na USP, no Butantã, com pouca diferença de horários entre ambos. As distâncias são grandes e, mesmo aos sábados, o trânsito pode ser ruim. Penso que se a conferência fosse um pouco mais cedo eu poderia fazer ambas as coisas, pois já vi o filme e posso participar apenas da discussão. Mas, justamente quando penso isso, é que sei que já decidi pra onde irei. Vou ao cinema.

Já vi o filme (duas vezes), mas nunca junto com meus amigos e/ou colegas psicanalistas; mais que isso, nunca com meus colegas de pertencimento ao Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes, em um evento para isso organizado. Pois, justamente isso, estarmos juntos em outro lugar, é uma parte do que é novo desta vez. Não se trata, portanto, de mais uma vez realizar discussões, mas sim de estarmos lá, assistindo a um filme e participando, como um jeito atual de fazer mais uma marca de nossa presença na cidade. Trata-se de nos descobrirmos em algum modo novo de vínculo, em que seja possível, juntos, fazer parte de uma instituição e se deixar atravessar pelo acontecimento.

Vou pra lá e, estando lá, entre descubro e reconheço que também nós, o Departamento de Psicanálise, somos uma gambiarra, uma gambiarra na História da Psicanálise. Uma gambiarra que junta improváveis fios da psicanálise, do marxismo e de outros saberes, que fez e que faz resistência às ditaduras, que dá testemunho contra o esquecimento das violências e contra a violência dos esquecimentos, que cuida da morte do irmão sem sepultura. Fazemos parcerias, inventamos geringonças – Convênio, Clínica Social do Departamento, Setor de Saúde mental, Grupos e Instituições, Eventos e livros sobre o Racismo, sobre a Ditadura Civil-Militar, Entretantos I e Entretantos II – Psicanálise e Política! Tantos nomes, tantos dispositivos! Operaram os fluxos. Fizeram seus tempos. Deram lugar aos que se tornaram necessários. Outros virão. Quando o filme acaba e as luzes do cinema se acendem, lá estamos nós. Psicanalistas, cineastas, escritores, fotógrafos, psicanalista e cineasta, psicanalista e fotógrafa/o, psicanalista e escritor/escritora, psicanalista e psicodramatista, psicanalistas andarilhos e andarilhas da Cidade, e outros mais. Psicanalistas nas bordas dos contatos e das trocas com o vizinho e com o estrangeiro.

As trocas entre os vizinhos, que Pedro Mascarenhas nos sugere como início de conversa, ocorrem muito timidamente. Logo, a cessão da palavra ao público, que Heidi Tabacof e ele conduzem começa a operar, embora isso ainda ocorra na nossa velha forma: pedimos a palavra, damos nossa opinião ou nosso parecer. Ainda não conversamos entre nós.

Começamos a falar lentamente, com hesitação e com angústia. As primeiras palavras não são fáceis. Trazem à tona a permanente tensão de sermos - também entre nós, assim como no filme – vizinhos e estrangeiros, na singularidade, às vezes no isolamento, de nossas experiências de dor, de exílio, de exclusão. Corremos o risco de ficarmos ásperos. Ouvimos, hesitamos, esperamos, ponderamos, em silêncio. Não desencadearemos conflitos desnecessários, não desta vez. Árabes e judeus não são o foco do filme, nem do evento. Os nacionalismos podem esperar. Esperamos. Afinal, o Sedes é uma espécie de Hotel Cambridge em Perdizes.

Ouvimos com atenção e interesse as palavras das irmãs Caffé. Eliane, uma das roteiristas e a diretora do filme, nos fala de sua opção pelo épico, em fazer o filme falar por meio da construção das ações e não por meio da construção das personagens; nos fala sobre o modo como roteiro e direção de arte criaram as situações; sobre como a ficção e a realidade das histórias foram sendo misturadas pelas imagens; de como a criação coletiva juntou, por um lado, o olhar da câmera do cinema e, por outro, a oferta de filmar a conversa por Skype que os refugiados mantêm com os familiares que ficaram para trás; de como foram montadas as cenas dos atores junto com os moradores e também como as experiências dos moradores viraram cenas. A diretora de arte, Carla Caffé, se comove falando da impermanência e da ameaça de não se ter um teto, do viver à deriva, dores que descobriu com esse filme, junto aos moradores da ocupação. Ouvimos delas a experiência de chegar para testemunhar e não ter mais como sair. De não querer mais sair, porque aquilo que se testemunha continua ocorrendo. E ficamos sabendo que – contrariando o que já se disse em outros tempos, sobre outros lugares – aqui tudo parece ruína, mas já é construção[2] . Construção que convoca ao deslocamento das antigas posições e à implicação, que convoca a fazer o novo, a fazer de novo, a saber-fazer junto, compondo jeitos. É o que também nos conta o escritor Julián Fuks. Ele diz que está sendo ocupado pela Ocupação, que a literatura está sendo ocupada, que algo deve advir disso, que ele espera. Que isso é bem vindo. Conta que já perdeu suas anotações e gravações de entrevistas, várias vezes; que renunciou a vir saber da história prévia dos ocupantes, quando eles não querem falar disso. Que enquanto espera o que virá, trabalha. Algumas das colegas psicanalistas que estão ou estiveram na Ocupação fazendo rodas de conversa com os moradores, contam o que foram fazer lá; que a proposta delas é escutar a Cidade. Que elas não foram para oferecer a psicanálise como modo de tratamento às pessoas. Alessandra Sapoznik conta que se sentem deslocadas, que se perguntam o que têm / o que temos de próprio e específico a oferecer e/ou a realizar. São reflexões em voz alta, dialogam com as realizadoras do filme, especialmente com Eliane Caffé, que se empenha em demonstrar a pertinência da presença dessas psicanalistas na Ocupação. Miriam Chnaiderman esclarece que, se o coletivo não atende na Ocupação, faz encaminhamentos a psicanalistas que se disponham a atender os moradores.

Nós, que estamos na plateia, prosseguimos dando vozes às perguntas e às reflexões que tentamos desenvolver. Retoma-se a tensão das divisões que fazem presença na ocupação, fala-se de árabe e de judeus, de estrangeiros e de brasileiros, de refugiados e de migrantes. Das condições políticas pelas quais passamos no Brasil, da impermanência como condição mais própria a um povo do que a outro. Penso – e, num ato de precipitação - falo: relembro que a impermanência é a nossa condição, tão compartilhada quanto o desamparo, além disso, me ofereço como psicanalista, para atender crianças da ocupação. Tenho a sensação da fala ter caído em um certo vazio. Posteriormente, colegas me cumprimentarão por ela e outras pessoas me interpelarão sobre a oferta do atendimento, o que me fez pensar que algo do que disse foi escutado. Entretanto, sinto que, ainda assim, essa fala, assim como as demais, mesmo compartilhadas e comentadas, estão um pouco em suspenso, ainda em busca de uma inédita articulação para este contexto. Articulação que segue demorando a acontecer. Entrementes, há uma discreta expectativa no ar. Estamos silenciosamente à espera daquela que ainda não chegou: Carmen, a líder da ocupação. Que de repente chega. Ou melhor, chegam juntas, em duas, quando nós esperávamos uma só.

...Algumas amarrações

Elas confirmam que chegaram apenas agora porque estavam cuidando de um velório. O de uma criança angolana que caiu – não se sabe bem de onde nem onde, menos ainda como ou por quê – mas caiu na Ocupação. Coube a ela(s) acompanhar. Cabe a ela(s) acompanhar. Com ênfase, Carmen convida e incentiva a que participemos do velório, um velório africano. Porque é diferente, porque há música, porque há festa e porque está aberto a nós. Passam o endereço. Podemos entrar, elas dizem. Brota em mim um mal-estar. A fala entusiasmada me soa mal. Não sei se nos convidam a assistir a um espetáculo das diferenças culturais, se nos convidam a que prestemos assistência aos enlutados ou se nos convidam a dar testemunho do acontecido. Mas sei que não irei - não agora, não hoje – ao velório de uma criança. Menos ainda se o velório for alegre. Por enquanto, eu não tenho como participar disso. As diferenças são muito gritantes e, por enquanto, me chocam.

Perguntas e comentários começam a ser feitas a Carmen. Eliane lhe conta que falávamos, antes dela chegar, sobre sua solidão, conforme aparece no filme. Pergunta-lhe sobre isso, sobre como ela se sente. Ela começa a falar. O discurso é emotivo, parece responder sobre a solidão, mas logo se encadeia de tal forma que se desvela como um discurso que já está há muito consolidado. Ela fala de chegar a São Paulo. De perder as esperanças. De lutar. De nascer no movimento. Uma retórica que se assenta no roteiro do herói e no mito da redenção. Uma retórica que é útil a alguns objetivos da política, mas da qual não gosto, acho feia. E me pergunto – um pouco culpada por minha atitude interna de censura – pelo peso da estética na política. Qual seria ele? O que a estética diz da política e pode fazer pela política? Penso também que, independentemente de meu gosto e da estética, a narrativa de “nascida no movimento” se impõe sobre as lembranças subjetivas e consolida aquele mito, o do herói, necessário à liderança. A história pessoal, prévia, fica desaparecida ou esquecida, subsumida nessas falas, aparece apenas na solidão em que a vimos em uma cena do filme. Seria por isso que os moradores não querem falar das histórias passadas? Penso que estou justificada a pensar sobre isso pois, para um(a) psicanalista, essas coisas contam. Acumula-se em mim o mal-estar, que cresce, e uma sensação de estranhamento.

Entretanto, uma surpresa aparece pois, ainda que tenha sido talhada pelo mito para ocupar a liderança única, contrariando essa designação de exclusividade e de isolamento, Carmen convida a companheira de movimento a falar para nós, convite feito sem condescendência e sem tutoria. Eu não esperava por isso e quando a segunda começa a falar, algo se insinua como diferente. O roteiro é o mesmo, a retórica e a veemência também, mas a fala é um pouco hesitante. Ela se empenha em dizer que o movimento congrega trabalhadores e trabalhadoras de baixa renda; ela não fala, mas fica dito dessa forma que no movimento não tem lugar para vagabundos, para vadiagem, para malandragem. Como sua fala é mais solta, minha atenção fica mais ou menos a flutuar. Então, enquanto ela fala, ressurgem para mim certas cenas do filme, por exemplo, aquelas em que uma moça e sua criança são proibidas de continuar na Ocupação.

A moça está vestida, quase despida, do modo como muitas garotas da bolha vão à balada. Mas aqui, a moda é outra. A imagem joga com a luz e a escuridão, o que não nos permite ver-lhes os traços – ela permanece anônima – mas a silhueta dessas roupas nesse lugar sugere a maquiagem forte das trabalhadoras da noite. Prostitutas, travestis, gays e lésbicas... Será que cabem no movimento? A cachaça com certeza não cabe e, das drogas, apenas esta comparece na narrativa do filme. Aparece na malandragem dos homens, reunidos, que bebem escondidos. São filmados e o que eles fazem é sabido, portanto. Terão sido expulsos depois disso? Ao que consta, não. Sexo, gêneros, drogas, como esses assuntos são tratados na Ocupação? A arte e a política. A retórica e os clichês. Que destinos têm nesse movimento? Terão lugar? São esses alguns fragmentos do que penso enquanto ouço.

As perguntas e comentários prosseguem, as militantes respondem algumas, outras são respondidas por outros dos participantes. Estamos nos aproximando de um final assintótico, ainda que a reunião tenha sido produtiva, quando algo acontece e opera, efetivamente, uma desconstrução de sentido. Nesse final do encontro que ali se realiza Carmen toma a palavra para esclarecer, com firmeza e clareza, que “ocupação não é invasão”.

Invasão havia sido um termo isolado, quase perdido, presente em um comentário de uma colega. Termo que poderia ter ficado por isso mesmo, passar despercebido ou ser encoberto por nossa usual polidez, às vezes condescendente, não fosse o ouvido de Carmen, ouvido atento à desqualificação que as palavras efetivam, o que seria de se esperar de um(a) líder de um movimento minoritário. Entretanto, os modos de expressão com que ela o faz apontam para algo mais que isso, ou apontam para outro momento do movimento que não o da delimitação de seus territórios semânticos.

A fala de Carmen sustenta, nessa hora, uma posição construída na luta e destinada a proteger a luta. É a afirmação de uma verdade necessária para isso e, ainda assim ou devido a isso, ainda que veemente, não se contrapõe a quem daquele modo se expressara; não antagoniza e não apresenta vestígio de tentativa de humilhar o interlocutor. Aquele que, ao que parece, pensa diferente. Diferentemente do que acontece em debates entre intelectuais ou mesmo nas Assembleias nos movimentos político-partidários e outros, sua fala apenas aponta para a diferença. E, se aquele que se manifestara, e que é indiretamente referido, ignorava o sentido e a implicação do que diz, por ignorância, por ingenuidade ou por não saber, ficará esclarecido; se, entretanto, ignora por má fé ou devido à posição intrinsecamente antagônica ao movimento, ficará advertido.

Advertido de que ali não se trata de externar opinião ou de dar um parecer, mas de estar na luta, em uma das posições possíveis. Se partilhar das razões para estar nessa luta, por pertencimento de origem ou por escolha, deverá assumi-la. Se não partilha daquelas razões, não tem o que fazer ali. Surpreendo-me advertida, mesmo sem má fé, sem antagonismo ou sem poder alegar ignorância. Advertência que me leva a pensar de modo novo sobre a expulsão daquela moça e também sobre a insistente cobrança que o movimento faz, no filme, ao primo recém-chegado do antigo morador árabe: que ele participe das reuniões da base.

Um pouco envergonhada, penso entender o sentido da advertência, o de tornar meus choques anteriores ridiculamente irrelevantes. Pois me recordo do final do filme, quando a tropa de choque invade a ocupação e a expressão tão repetida por Carmen – Só não luta quem está morto – assume o sentido de grito de guerra que tem e cobra toda sua extensão no contexto de conflagração social em que estamos. Haverá lugar para a psicanálise, para a literatura e para as artes nessa guerra?

A geringonça: objeto ou construção artesanal pra virar o sentido no avesso

Em Portugal, contou-me uma amiga, a nova experiência política – que tem sido exitosa, tanto em termos econômicos como, principalmente, em termos de um projeto de sociedade próprio, que faz resistência ao modelo Merkel de mercado – é nomeada como geringonça. Um artefato, que não pretende totalizar nada nem ser definitivo e, diferentemente do sentido que tem em português brasileiro, não é mal feito nem está mal acabado. Serve ao que se destina e não se eterniza.

Proponho que reconheçamos no filme, no evento do Departamento e na ocupação uma sorte de geringonças, cuja operação é a de virar o sentido estabelecido no avesso: o sentido do entretenimento, da arte, da psicanálise, o sentido da realidade, o sentido da propriedade privada.

Para dar encaminhamento preliminar à proposta volto ao filme, focalizando-o por meio de um recorte bastante sucinto das críticas que recebeu.

A maior parte das críticas e comentários sobre o filme Era o Hotel Cambridge na mídia, escritas quando de seu lançamento ou logo após, quando de algumas das premiações que obteve, considera que a questão dos refugiados e dos sem teto da cidade é a temática do filme. Tenho uma apreciação diferente dessa, assim como também difiro das opiniões expressas pela roteirista e diretora Eliane Caffé sobre o sentido de seu filme. Segundo alguns críticos, ela teria afirmado – em entrevista à revista da área – que o filme, além de ser uma criação coletiva e produto de aliança com a Frente de Luta por Moradia, teria o intuito de difundir a luta daquela população. Os comentaristas assinalam que, ainda assim, o filme deve ser visto “pelo que é”, ou seja, um bom filme e - quase dizem -, apesar da proposta política da diretora. Diferentemente desses críticos, penso que é um bom filme também devido à proposta política da diretora. Reconheço que ele cumpre bem a tarefa de apresentar ao público, de defender frente a este a estratégia de Ocupação como um modo de exercício político legítimo. Um modo daquelas populações, daquele povo, ter existência social e política na Cidade.

Mas, ainda que essas afirmações permitam que nos situemos perante o filme, elas reduzem a apreciação que se possa fazer de suas consequências. Pois, se o roteiro parte daquelas premissas e as desenvolve, a realização da obra, no que isso comporta de revelações na ação, promove outras aberturas e remete a questões que não apenas essas. De um modo que é mais familiar aos psicanalistas, poderíamos comparar a questão dos refugiados, dos sem teto e da moradia com o conteúdo manifesto de um sonho, tornando filme e sonho análogos entre si. Com certeza, há no filme, como em qualquer produção humana, pensamentos de desejo inconscientes que lhe dão os fundamentos e a sustentação da trama, que são, no caso, levados à figurabilidade das cenas, o que aproximaria ainda mais filme e sonho. Encontrar aqueles pensamentos de desejo e chegar a explicitar parte deles e de suas relações, seria, talvez, uma das possibilidades de encaminhamento psicanalítico para a análise das questões que ele comporta. Entretanto, também esse modo resultaria pior ainda que reduzí-lo à política pois, neste caso, se um filme não é sonho, o que impõe limitações à analogia, este em particular opera bem ao contrário daquele.

Diferentemente do sonho – que realiza o desejo de dormir – o trabalho de criação que este filme realiza contraria aquele desejo e induz ao acordar. Ainda que acordar seja doloroso e insustentável por muito tempo.

Ao trabalhar com a ficção e com o viés de documentário simultaneamente, sem distinção entre eles, em continuidade da experiência, o filme vira a ‘realidade’ pelo avesso. Como sabemos, o para além da realidade, o desvelamento de seu núcleo duro real, é uma das formas do acordar.

O filme aponta o ‘núcleo duro’ das questões da realidade da moradia, o para além dela. Sabemos que o permanente deslocamento ao qual a ocupação responde e o filme evidencia, comporta – para todos – os riscos de expulsão, de desvalimento e de vulnerabilidade no desabrigo e, ainda mais, para alguns, anuncia o risco de deportação imediata com tudo que isso possa significar, não apenas de desamparo, mas de morte certa, por razões políticas. Podemos dizer que esses movimentos são a encarnação contemporânea da impermanência a que todos estamos sujeitos e ao desamparo constitutivo, que é o fundamento real último da impermanência e da transitoriedade. Desamparo face aos elementos da natureza, face às nossas mais profundas exigências de amor e de sobrevivência, mas fundamentalmente, face aos desígnios do Outro, particularmente aquele Outro que detenha, na sociedade, o poder da vida, da morte e do sentido da experiência. Na sociedade globalizada, este Outro, do discurso social, detém o poder de vida e de morte por meio da imposição dos sentidos que invalidam ou degradam os atos políticos de atores sociais, como por exemplo, chamar de invasores os ocupantes e de terroristas os refugiados.[3]

Também o Outro e o desamparo necessitam ser situados na História, para virem a ser integrados como a parte obscura da história de cada um e para que isso seja transformado em força de luta e de encontro no laço social.

Assim, por exemplo, quando no filme a velha senhora pede para ser fecundada pelo jovem palestino, para poder gerar e fazer renascer sua elefanta, ela é consolada por ele, que lhe canta suas próprias canções de ninar. O sentido vira no avesso por meio da subversão das posições etárias e também por meio das continuidades entre realidade e ficção, continuidade que se realiza no desempenho da atriz e na participação do refugiado ao evocar sua terra e sua infância por meio daquelas canções. Tal virada traz em si as mesmas consequências que comparecem quando Carmen, no evento do Departamento, opera a diferenciação entre ocupação e invasão: os diversos sentidos, a pluralidade deles e seus avessos, fazem resistência à dominação pelo sentido.

Quando desconstruímos o sentido, seja por meio da implosão da unilateralidade de uma palavra, seja por meio da problematização dos lugares adscritos – aos jovens, aos velhos, aos delirantes, aos sensatos, aos nacionais e aos estrangeiros – seja por meio do trânsito entre fantasia e realidade, nós, os artistas, os psicanalistas, os escritores, os atores, os cineastas, os fotógrafos e tantos mais, fazemos resistência ao Outro social hegemônico, retirando-lhe o poder de impor o sentido à experiência corriqueira. Inventar novos modos de fazê-lo, modos coletivos e compartilhados, criar geringonças que possam operar novos vínculos, é o que temos a realizar.


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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise.
[2] Referência ao escrito de Julián Fuks – Parece ruína e já é construção, disponível em: http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/arquivos_comunicacao/Ilustrissima%20-%20Parece%20ruina%20e%20ja%20e%20construcao.pdf
[3] Cabe lembrar que já se chamou de terroristas aos guerrilheiros, em tempos recentes da História deste país, e que nem de longe está afastado o risco de retornos desses sentidos revisionistas.




 
 
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