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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    44 Novembro 2017  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

UMA PRIMEIRA MANHÃ


THIAGO P. MAJOLO [1]


O evento de lançamento do livro O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise[2], ocorrido no dia 16 de setembro de 2017, no Instituto Sedes Sapientiae, precisa ser celebrado na mesma medida e intensidade da sua importância histórica.

A mesa de debatedores foi composta por duas das três organizadoras da publicação, Noemi Moritz Kon e Maria Lúcia da Silva (a terceira é Cristiane Curi Abud), acompanhadas pela socióloga e psicanalista Caterina Koltai e pela psicóloga e psicanalista Eliane Costa. Ao final, foram as palavras desta última debatedora que definiram o contorno histórico do dia: tratava-se do primeiro evento público organizado por uma instituição de psicanálise a abordar o tema do racismo contra negros no Brasil.

A plateia, como apontou Maria Lúcia, era diferente do que costumeiramente vemos nos eventos do Sedes Sapientiae e também de outras instituições psicanalíticas. Era uma plateia mais colorida, mais diversa, mais representativa do povo brasileiro. Na mesa de debatedores havia duas mulheres negras, a própria Maria Lúcia e Eliane Costa. Esses dados, por si só, precisam ganhar destaque e ser celebrados. Ali, naquela manhã, em um auditório tão pequeno para tão grande questão, avistávamos uma terra ainda distante porém desejada, onde a psicanálise coloca à prova teoria e clínica e abre sua escuta, quiçá de modo irreversível, para as especificidades das marcas da história do Brasil.

A violência destitui as alianças entre pares, como frisou Eliane Costa; a solidão e o isolamento fazem da experiência de vida algo impossível de ser testemunhado e compartilhado, como enfatizou Maria Lúcia; a escolha do estrangeiro a ser temido e excluído nasce de um discurso cujas raízes xenófobas estão presentes em todos nós, teorizou Caterina Koltai; e todos esses aspectos (violência, isolamento e medo) estiveram presentes na abertura dos debates, na fala de Noemi Kon, que costurou acontecimentos recentes em que o racismo histórico e o atual foram explicitados: o lançamento do livro do ator Lázaro Ramos, os escritos macunaímicos de Mário de Andrade, a fala emotiva da professora Diva Guimarães na FLIP (Festa Literária de Paraty) e o terrível confronto em Charlottesville-EUA.

No lugar da violência, do isolamento e do medo, o lançamento da publicação foi um bem vindo convite à fala e à reflexão compartilhadas. Contudo, mesmo dentro desse clima celebrativo, a história agora reivindica ação.

Encarregado de zelar por e de perpetuar uma trajetória política combativa, o Instituto Sedes Sapientiae, na figura de seus membros, aspirantes, colaboradores e alunos atuais, precisa caminhar no sentido de que o racismo, dentre outras questões nacionais marginalizadas pela psicanálise, ganhe espaço nos cursos de formação e extensão, nas discussões clínicas e nos corredores. A história do povo brasileiro e da formação da nação precisa ser conhecida e reconhecida pela psicanálise, ela clama por ganhar escuta, testemunho e exige trabalho renovador de nosso meio; sua singularidade não se dobra à universalização totalizante, pois há latente toda uma mitologia própria e formas diversas de constituição subjetivas nas culturas que ficaram perdidas no Atlântico, em antigos navios negreiros ou nas florestas dizimadas juntamente com seus povos indígenas. A psicanálise feita no Brasil tem muito o que descobrir sobre o ser humano nas culturas que a formação nacional escondeu.

Que esse marco histórico não seja apenas uma celebração descolada dos horrores cotidianos de nossa sociedade. Que o evento não seja somente uma data solta no tempo, mas se configure urgentemente como a inauguração de um processo de transformação social. A partir do lugar de poder e privilégio que ocupa o Sedes Sapientiae e a imensa maioria de seus membros e alunos, precisamos encontrar meios de formar mais, muito mais, analistas negros, de inseri-los em nossas redes de convívio e debate, de promover a eles lugares cativos nas mesas de debates e nas plateias dos eventos futuros. A psicanálise nos ensina que a tomada de consciência e a capacidade de pensamento abrem o campo das escolhas. Que escolhamos bem nossos próximos passos.


Para assistir ao vídeo do evento: https://youtu.be/WfUb_tTOmko

 


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[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e Mestre em História Social pela USP, membro da comissão de Debates da Revista Percurso. E-mail: tmajolo@gmail.com.
[2] Noemi Moritz Kon, Cristina Curi Abud, Maria Lúcia da Silva (orgs.), O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017.




 
 
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