DANIEL LIRIO [1]

Waterbearer, Lorna Simpson, 1986
Quando eu era criança, por volta dos cinco anos, em uma situação cotidiana,
alguém que, espero, seja parente de algum parente distante, algum primo de
oitavo ou nono grau, proferiu a seguinte frase: “Aquele funcionário novo é
bem limpinho, mesmo quando não tem sabonete, ele diz: ‘Doutor, me dá um
sabão de coco pra eu tomar banho’”. A banalidade da situação, a
familiaridade com que essa frase foi proferida e recebida pelas pessoas fez
com que essas palavras – terríveis – entrassem em minha mente como normais.
Ou quase, porque ao longo dos anos essa frase se manteve apartada das
outras associações, não se misturava com as outras, mas ficava protegida e,
eventualmente, insistia em mim como a memória de uma pessoa limpinha que
tomava banho com sabão de coco.
Recentemente, eu estava dando banho no meu filho enquanto ele lavava seus
brinquedos com sabão de coco. Eu ensaboava suas costas e ele não estava
achando o seu sabão, então me perguntou: “Papai, você tá me lavando com o
sabão de lavar coisa?”. Ao que respondi: “Não, filho, estou te lavando com
o sabão de lavar gen....te”. Foi só nesse momento que a frase de infância
se confrontou com o restante do meu mundo simbólico e sua dimensão
terrivelmente preconceituosa pôde transparecer para mim em termos da
coisificação do sujeito operada por quem está em condição de supremacia
social e econômica, revelada no momento em que, supostamente, pretende
elogiar.
Essa ressignificação foi surpreendente: como eu, depois de tantos anos de
psicanálise, poderia ter mantido aquela frase intocada? Erroneamente se
pensa que nós falamos as palavras, frases e ideias. Ao contrário, as
palavras que nos habitam é que nos falam. Deste modo, eu era falado e
existia naquela frase que me habitava.
Somos habitados por frases que dizem mais do que supomos em uma escuta
ingênua. Ao longo da vida, as discussões, as reflexões, o aprendizado e o
processo analítico podem metabolizar, transformar essas frases em outras
mais complexas, mais interessantes, mais ricas. Contudo, nunca podemos ter
certeza de termos limpado todo o terreno dessas frases terríveis que
continuam a nos falar. Fiz então uma imagem de um campo minado: discussões,
reflexões e a psicanálise podem desarmar essas minas, mas nunca se sabe se
sobrou alguma e quando ela explodirá sobre nossos pés.
Recentemente uma bomba dessas explodiu e levou pelos ares o jornalista
William Waack, da TV Globo. Quando tornou-se público o vídeo em que ele
proferia a criminosa expressão “coisa de preto”, sua imagem tornou-se
incompatível com a moralidade que a empresa na qual trabalhava alega
defender. Assim, a emissora viu-se obrigada a tentar se separar de seu
funcionário, como se ela mesma não seguisse uma agenda conservadora.
Muito além de uma questão específica, este episódio criou a oportunidade
para que o público em geral pudesse estranhar aquela fala. Não basta que as
expressões “coisa de preto” ou “pessoa limpinha” sejam caladas, elas devem
ser desnaturalizadas, isto é, devem sofrer um desmonte interno que as
desestabilize enquanto verdade subjetiva.
Parte desse processo consiste, por exemplo, em discutir como os derivados
das palavras “preto”, “pobre”, “sujeira”, ”perigoso”, “doença”, “burrice”,
“preguiça” etc. foram associados historicamente para garantir determinadas
relações de poder, e como repeti-las é reforçar esse desequilíbrio. Este
processo transcorre coletivamente, uma vez que os diversos atores podem
discutir e refletir sobre a sociedade a fim de criticar seus modos de
opressão e violência. Aqui estamos no campo da racionalidade e da
moralidade e, por conseguinte, no registro da consciência.
Infelizmente, essa tarefa é mais difícil do que seria de se esperar. Minha
proposta com esse texto é sugerir mecanismos inconscientes que atrapalham a
apropriação da história por parte dos cidadãos, a saber, a articulação
entre a história de uma sociedade e a história pessoal dos sujeitos. Há,
por conseguinte, uma parte individualizada do processo de superação dos
preconceitos, na qual cada um precisa se haver com o fato de estar
pessoalmente sustentado por associações estereotipadas.
Eliminar uma sentença verbal que esteja entranhada na vida afetiva de um
sujeito é, portanto, uma tarefa complicada. Ao contrário de uma cirurgia,
em que apenas um tecido específico sofre a intervenção, o complexo de
relações que sustentam os ditos também demandam reformulação. Revisitar
ditos infantis implica revisar idealizações de pessoas tidas como
portadoras de saber e exemplo de moralidade, cujos ditos também foram
fundamentais para a constituição de um saber sobre si mesmo. Em suma,
dificilmente conseguimos desvencilhar esses “ditos podres” daqueles ditos
criadores de uma primeira identidade, por meio dos quais éramos falados na
infância. Esses ditos estão entrelaçados à forma como o mundo nos era
apresentado na infância e sustentam a memória de pessoas importantes em
nossa história, com suas vestes de sabedoria e proteção.
Revisitar esses ditos implica, portanto, perturbar imagens idealizadas de
uma infância pacífica, amorosa, quando as cores do mundo eram mais nítidas,
quando bem e mal eram facilmente discerníveis desde que segurássemos as
mãos das pessoas sábias que nos guiavam. Essa romantização explica a
nostalgia com a qual as pessoas frequentemente se lembram do passado:
“antigamente era muito melhor”, “o mundo era mais alegre”, “era possível
confiar nas pessoas”, etc. Ironicamente, essa nostalgia também acometia as
pessoas do passado.
Enfim, olhar criticamente para o passado implica uma perda narcísica – é um
pedaço do sujeito que se vai cada vez que um dito cai. Colocado dessa
forma, o percurso de cada um para se desvencilhar de seus preconceitos se
aparenta com um percurso analítico individual. O que é uma análise se não
um processo para superar visões preconceituosas e estereotipadas de si
mesmo? Em análise, somos impelidos a estranhar desejos infantis, formas de
satisfação, idealizações de bem e mal.
O combate ao preconceito, portanto, está muito além do âmbito da
racionalidade, da moralidade. Em parte ele pode ser feito no âmbito
coletivo, mas em parte se insere na luta íntima de cada um.
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.