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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    46 Junho 2018  
 
 
NOTÍCIAS DO SEDES

CONTRA A DESAUTORIZAÇÃO, O RECONHECIMENTO [i]



Maria Elisa Pessoa Labaki [ii]

Em primeiro lugar, gostaria de parabenizar a diretoria do Instituto pela iniciativa de organizar este evento sobre Diversidade sexual e Cidadania, e parabenizar também todos os participantes.

E, na qualidade de representante do Departamento de Psicossomática Psicanalítica, junto com Sônia e Helen, agradeço imensamente a oportunidade de estar aqui falando com meus pares sobre um assunto tão atual. Mantendo sua tradição no ativismo, o Instituto Sedes se alinha a outras iniciativas institucionais e movimentos políticos, num contraponto ao avanço de ações ultraconservadoras que temos assistido retornar no Brasil e no mundo. Nesse sentido, me parece que esse evento tem muito a contribuir com um processo de revisão e renovação de valores humanos universais.

Como psicanalista, me sinto no dever de externalizar e tornar públicas reflexões que tenho elaborado sobre a questão da diversidade sexual e da cidadania, a partir do lugar privilegiado que eu ocupo - e que muitos dos que aqui estão ocupam -, que é o lugar de escuta clínica de uma multiplicidade de vozes. Hoje, minhas reflexões serão conduzidas por uma inspiração mais clínica, ainda que municiada por leituras e pela observação do cotidiano da cidade, com sua realidade plural de tipos, gêneros, estilos, etc. E vou focar na questão da cidadania, tendo como cenário ou pano de fundo alguns aspectos sociais emergentes no campo da diversidade sexual na contemporaneidade. Pretendendo, para isso, discorrer e refletir sobre as expressões da recusa como o ódio e a intolerância que têm se manifestado no meio social através da exclusão, marginalização, agressão, humilhação e assassinato em reação às transformações da subjetividade, tendo por alvo preferencial a população LGBTT. Escolhi para esta reflexão duas chaves que me têm sido muito úteis no exercício da clínica. Então, vejamos.

Neo-sexualidades, o inédito e a tolerância

A primeira delas foi cunhada por Joyce Mc Dougall (1999) como neo-sexualidades que, longe de um conceito, designa “um modo de escutar nossos analisandos, quando eles nos descrevem e exploram suas vidas sexuais” (p. 20) carregadas de inovação e intensidade em relação aos investimentos envolvidos. Atentem que o prefixo neo, aqui, não põe em destaque apenas a capacidade de inovar presente nas “novas” sexualidades emergentes. Mas vai além e aponta para uma figura da ética da psicanálise. Diz respeito a uma forma de acolher, sem julgar, aspectos da sexualidade do analisando que possam parecer diferentes ou estranhos aos nossos olhos, compreendendo-os como parte de uma solução necessária à conservação de sua vida como um todo, assim como de seus investimentos eróticos. Sustenta o exercício de uma escuta aberta e receptiva ao que se mostra surpreendente, inédito, novo e autêntico, não se pautando pelo preconceito, nem acomodada sobre teorizações genéricas de amplo espectro.

Aproximo tal abertura ao outro, contemplada na ética desta clínica, a uma condição próxima à curiosidade infantil. Nela, é desejável que a criança no analista possa existir e se deixar levar por uma certa ignorância operativa, quase ingênua, que saiba perguntar quando sabe que não sabe e por isso deseja conhecer, acreditando sem condição prévia que o sujeito ali tem sempre razão. Do ponto de vista da clínica, resulta numa escuta mais criativa e sensível aos aspectos da singularidade, assim como mais generosa e favorável às estratégias e medidas de sobrevivência encontradas pelo analisando. Do ponto de vista macro, esta posição ética poderá se prestar como modelo de tolerância ao que se apresenta como inédito e singular, ampliando o guarda-chuva social, ao abrigo do qual será permitido uma multiplicidade de cores, corpos e sexos. Seria utopia?

Novas complexidades, entrelaçamentos e fragmentações

Desde a fundação da psicanálise com Freud, que concebeu a sexualidade infantil com seu polimorfismo e polissemia, o campo de pesquisas e os esforços de teorização sobre a diversidade sexual têm se desenvolvido rapidamente, na mesma velocidade com que estão se dando as transformações de comportamento neste campo. Assim, na interface entre sociologia e psicanálise, as teorizações sobre gênero avançaram muito. Inicialmente com Stoller, que fez uma distinção radical entre sexo biológico e gênero definindo o primeiro enquanto “diferença sexual inscrita no corpo (macho-fêmea)” (Alonso, 2016, p. 17) e gênero como o correspondente das “significações atribuídas pela sociedade (masculino-feminino)” (idem); até as mais recentes concepções de Judith Butler, para quem as identidades de gênero não existem enquanto substâncias ontológicas, nem tampouco existem as categorias binárias de homem-mulher. Sendo o gênero uma criação discursiva que depende de enunciação e/ou repetição num continuum de ações comportamentais públicas, que por sua vez irão pouco a pouco materializar e sedimentar determinadas verdades. “O gênero é uma reiteração de atos” (Porchat, 2014, p. 41) que cria uma unidade ficcional. “É nesse sentido que Buttler define como performativo qualquer discurso que possua efeitos ontológicos” (Silva Jr., 2016, p. 160).

De fato, temos assistido a uma efervescência de manifestações e experimentações variadas no campo da sexualidade e do gênero nunca antes observadas, e que tem produzido, inclusive, efeitos em outros campos, como o da medicina e do direito. Todos sabem que já é possível mudar o nome e o gênero na carteira de identidade sem que para isso seja necessário proceder a cirurgia de alteração dos genitais, nem tampouco depender de um aval médico, ainda que se mantenha a indicação para o interessado se submeter a acompanhamento médico e psicológico. Essa novidade significa não só que o sujeito não está mais obrigado perante a lei a se identificar com o mesmo gênero que lhe foi atribuído ao nascer, bem como ele pode sentir-se e autodenominar-se homem, portando uma vagina, ou sentir-se e autodenominar-se mulher, portando um pênis. Autodenominação de gênero que, de fato, significa uma grande conquista para as pessoas trans e para a sociedade como um todo do ponto de vista comportamental. Mas um passo gigantesco e sem precedentes que desmonta e subverte a ficção da unidade composta por corpo anatômico, funções biológicas, comportamento e prazer. Trata-se de uma transformação que marca uma ruptura no discurso vigente ocidental sobre a sexualidade.

Recebi numa ocasião para análise um adolescente que se autodenominava “gênero fluido”. Quando estava com as amigas pedia para seu nome ser articulado ao artigo “a” e quando em companhia dos meninos ao artigo “o”. Relatava sentir atração sexual por garotas, mas muita ternura pelos rapazes. Era um moço bonito, viril e ao mesmo tempo delicado que apresentava orientação homossexual em relação ao objeto, já que desejava mulheres quando se identificava com elas e amor pelos rapazes quando identificado a eles. Aqui, a experiência de identificação de gênero mostra-se binária, com trânsito tanto pelo masculino, quanto pela feminina, assim como a orientação sexual, circulante entre dois polos.

Do ponto de vista da imagem de gênero, cada vez mais percebo estar ficando difícil querer identificar recorrendo às aparências. Outro dia, na entrada para uma peça de teatro, vi duas pessoas cujo gênero não consegui identificar. Tinham uma imagem andrógina: uma delas de corpo mais feminino com rosto e indumentárias mais masculinas. A outra, o contrário: apresentava um corpo masculino com rosto e indumentárias femininas. Mas tudo dentro de um espectro de sutileza muito interessante, nada de mais, nada de menos. Imaginei que estivesse diante de pessoas para quem o gênero não produz as expressões tradicionalmente definidas nos últimos séculos com seus nítidos contornos. Mas sim uma realidade identitária que não se traduz por comportamentos, feições, roupas ou acessórios. Quais serão os novos signos da cultura a emergir com esta inovação sexual e comportamental?

Licenças poéticas são bem-vindas. Lembro-me de uma resposta célebre de Caetano Veloso à pergunta de um repórter que em sua argumentação afirmava, entre outras coisas, ser Caetano um homem branco. Para o qual Caetano respondeu suspeitando: “quem disse que eu sou homem? Quem disse que eu sou branco?” Mais do que uma simples provocação, a resposta do artista aqui parece visionária, apontando para uma radicalização da linguagem do corpo em sua função de significante.

Alguns podem estar boquiabertos, sentirem-se desentendidos ou até mesmo perturbados, mas é fato que está em xeque o padrão da heteronormatividade, bem como o modelo binário de identificação de gênero homem-mulher - tal como o conhecemos desde a queda da primazia do masculino com a Revolução Francesa. Hoje, combinados os atributos do sexo biológico, ou tipo de genitália, com as designações de gênero, orientação sexual e expressão performática, temos como resultado 50 ou mais variações de possíveis identidades.

Para concluir esta parte: somos seres sociais e nossa experiência é radicalmente intersubjetiva e dependente do outro, o que faz do preconceito e dos discursos de ódio uma arma que produz trauma à sociedade e cria falhas psíquicas nos que se sentem desqualificados pelos sistemas que conservam as tradições. Por isso, a condição de cidadania, para ser exercida como direito, depende de uma sociedade que escute e aceite o caráter inaugural, e muitas vezes disruptivo, daquilo que se apresenta como diferença. Não apenas às referidas ao campo do sexual, mas às diversidades entre religiões, raças, etnias, comportamentos, e por aí vai. Naturalmente, a única exceção à regra no que tange à sexualidade incide sobre predileções sexuais consideradas perversas, por não levarem em conta os direitos e desejos do parceiro, a saber: abuso sexual infantil, estupro, exibicionismo, voyeurismo e necrofilia, todas consideradas crimes no Ocidente.

Reconhecimento, ação reparatória

A segunda chave que eu escolhi para esta reflexão eu chamaria pela expressão ato de reconhecimento. Embora não se configure enquanto conceito da psicanálise, o reconhecimento tem se mostrado ferramenta bem útil para a clínica em geral. Mas especialmente com pessoas que apresentam um funcionamento psíquico regredido, em função de fragilidades e cisões do eu, tem se mostrado eficaz como cuidado e tratamento de marcas traumáticas que se enquistam na personalidade, não deixando o sujeito aderir e acreditar em suas percepções, pensamentos e afetos. Sejam psicoses, casos-limite, neuroses graves ou desorganizações psicossomáticas, nestas situações o analista se vê convocado a realizar atos de confirmação e validação a uma dada percepção que perdeu a “eficácia transitiva de um de seus elos” (Figueiredo, 2008, p. 59), tornando-se inapta a produzir sentidos e, por consequência, incapaz de substituir as tormentas do trauma por processos simbólicos.

Nomeado por Freud (1927) como recusa da percepção da imagem da castração causadora de horror, no quadro do fetichismo; e por Ferenczi (1932) chamado de desmentido, vou me deter nessa última acepção, muito sugestiva para nossa conversa hoje sobre cidadania.

No sentido etimológico do termo, desmentir é o mesmo que contradizer ou negar, e caracteriza um ato que pode desmascarar aquilo que foi considerado uma fabulação. Trata-se de uma ação de caráter violento por parte do outro que desqualifica e retira o valor de uma narrativa ou testemunho, desapropriando o sujeito de sua autoridade, e consequente respeitabilidade, assim como negando a ele a prevalência de sua autoria. Em Ferenczi o conceito de desmentido ganhou uma dimensão relacional e primordial no entendimento sobre o trauma, envolvendo partes em posições assimétricas, uma mais fraca e vulnerável que a outra. Ferenczi estava interessado em desvendar as condições sob as quais se instalam os traumas infantis na vigência dos cuidados da criança pelo adulto. E descobriu que o maldito do trauma tem seu epicentro na reação de descaso ou desqualificação de um outro ao pedido de ajuda de uma criança que, ao invés de socorro, recebe descrédito ou é considerada futilmente culpada pelo próprio sofrimento.

O conceito de desautorização, sugerido por Luis Cláudio Figueiredo (2008) e trabalhado por Kupermann (2017) como alternativa ao desmentido, me parece se aplicar bem à nossa reflexão sobre o mecanismo pelo qual as forças repressivas e conservadoras submetem grupos e populações ao lugar de marginalidade, mantendo-os anulados ou em posição de coisa abjeta. Equivalente a uma ação de esvaziamento, a desautorização desfalca a percepção da “autoridade para ensejar outras percepções e outros processos psíquicos, vale dizer, (que a percepção) é mantida isolada do processo perceptivo e das suas conexões naturais com os processos mnêmicos e de simbolização” (p. 60). Não metabolizadas e mantidas quase-coisas, tais percepções sucumbem ao estado de desautorização em um inconsciente invalidado e apartado das redes de simbolização. Não deixam de ter seu significado, mas perdem importância, relevância, significância. Pois bem. Se transferido ao âmbito do coletivo e aplicado ao sofrimento de nossas minorias – ou maiorias, depende do contexto -, tal anulação corresponderia a um processo de desalojamento social (no meu entendimento, análogo ao que Kupermann chamou de desapropriação subjetiva), que delas roubam o direito de viver e ser tratado como cidadão comum. Seria isso pedir muito?

Com efeito, se a dor da agressão foi imposta ao sujeito por parte do outro, caberá a esse mesmo outro promover ações reparatórias. E temos tido notícias nesse sentido. A Clínica do Testemunho é um dos dispositivos de cura pelo social para a tragédia da ditadura. É a oferta de escuta e reconhecimento; é a validação do sofrimento e da dor que está na base de recuperação da dignidade, outrora devastada pelas forças perversas que sustentavam os mecanismos da tortura moral e física, assim como os do assassinato. Trata-se de uma tentativa de restituir o pleno desenvolvimento da experiência subjetiva de cada um, corroída tantas vezes ao longo de nossa história, e de modo sutil, pelo poder que submete, violentando.

Por outro lado, temos também o que se conhece hoje por lugar de fala, que é um conceito forjado para sanar o déficit de reconhecimento a pessoas e coletivos tolhidos em seus direitos por questões de raça, classe ou gênero, tratando de tornar visível sua experiência. “Baseia-se em privilegiar a voz do sujeito que vive a dura realidade de ser mulher, transexual, negro ou pobre, entre outros, e é a direção política incontornável de quem se atreve a lutar pela democracia hoje” (Vera Iaconneli, Folha, cotidiano/B2, 3/4/18). E porque amplifica a voz dos que foram tolhidos, apresenta-se como conceito inclusivo, isto é, a serviço do “reconhecimento e da valorização de expressões vindas dos sujeitos com experiência direta e vivencial nas questões identitárias” (Francisco Bosco, 2017, p. 28). Porém - e aqui acompanho Bosco em sua ressalva -, seu caráter central no debate público nos dias atuais torna importante a vigilância para que não caia no perigo de “responder a uma exclusão original com uma exclusão corretiva” (Vieira apud Bosco, p.28), alijando do debate muitas vezes os próprios aliados que comungam das causas, mas não da identidade. Refiro-me aos linchamentos, digitais ou na mídia escrita, contra posicionamentos que exprimem diferenças e que são, por isso, desqualificados e desencorajados a participar do debate. Afinal, não se corrige um erro repetindo-o.

Para concluir, esta tensão entre participantes de um diálogo que tenham funções distintas, embora os mesmos objetivos, de certa forma também permeia os processos analíticos, já que o próprio profissional psi depende do reconhecimento daquele que o procura para que se instaure a transferência possibilitadora do processo. No fundo, somos todos um pouco Blanche Debois. Dependemos, se não da bondade, pelo menos do olhar alheio.

Referências:

Alonso, S. Sexualidade: destino ou busca de uma solução? In Alonso, S.; Breyton, D. M.. Albuquerque, H. M. F. M.; Cartocci, L. Corpos, sexualidade, diversidade. São Paulo, Escuta, 2016.

Bosco, F. A vítima tem sempre razão? Lutas identitárias e o novo espaço público brasileiro. Rio de Janeiro, Todavia, 2017.

Ferenczi, S. (1933) Confusão de línguas entre os adultos e a criança. In Psicanálise IV. São Paulo, Martins Fontes, 1992.

Iaconelli, V. Lugar de escuta, lugar de fala. Folha de São Paulo, caderno Cotidiano, 03/04/2018.

Kupermann, D. Estilos do cuidado. A psicanálise e o traumático. São Paulo, Zagodoni, 2017.

Mc Dougall, J. Teoria sexual e psicanálise. In Ceccarelli, P. (org.) Diferenças sexuais. São Paulo, Escuta, 1999.

Porchat, P. Ato performático e desconstrução: o gênero em Judith Butler. In Ambra, P. E. S., Silva Jr., N. (orgs.). Histeria e Gênero. São Paulo, nVersos, 2014.

Silva Jr., N. Diferença dos sexos, diferença sexual, gênero e inconsciente. In Alonso, S.; Breyton, D. M.. Albuquerque, H. M. F. M.; Cartocci, L. Corpos, sexualidade, diversidade. São Paulo, Escuta, 2016.





[i] Esse texto foi apresentado no evento Diversidade sexual e cidadania, organizado pela diretoria do Instituto Sedes Sapientiae, no dia 07 de abril de 2018. A autora participou representando o Departamento de Psicossomática Psicanalítica, do qual é membro, além de participante da equipe de professores do curso de especialização de Psicossomática Psicanalítica.

[ii] Psicanalista, membro dos Departamentos de Psicanálise e de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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