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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    50 Junho 2019  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

PROBLEMÁTICAS ALIMENTARES: ABRANGÊNCIAS E ESPECIFICIDADES


CAMILA JUNQUEIRA [i]



O Projeto, que foi fundado no ano 2000, numa intersecção entre o Departamento de Psicanálise e a Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae como Projeto para investigação e intervenção na clínica das anorexias e bulimias ’ já continha em sua nominação as diversidades implicadas nos casos atendidos e estudados. No entanto, em 2018, o grupo amadureceu uma mudança e passou a chamá-lo Projeto de pesquisa e clínica psicanalítica das problemáticas alimentares, anunciando a ampliação do espectro de interesses do grupo, não apenas para a inclusão do estudo das compulsões, mas também para a reflexão dessas questões para além das patologias propriamente ditas.

Ao longo desses (quase) 20 anos de clínica e estudo, o Projeto foi transformando sua configuração, tanto de integrantes como de propostas de trabalho, acompanhando e refletindo o interesse do grupo. Foram incluídas as terapias de família e vincular em paralelo aos atendimentos individuais, foram buscadas parcerias que contribuíssem para a elaboração de questões aquém do verbal: no campo das artes e do acompanhamento terapêutico, e também parcerias com ambulatórios médicos que pudessem nos dar retaguarda diante do agravamento do quadro orgânico durante o processo analítico. Mais recentemente, foi formado um grupo de escuta de mães e outro de adolescentes; este último já passa por algumas reformulações. Experiências e reflexões foram partilhadas em diversos textos publicados em livros e apresentados em eventos.

No entanto, ao longo desses anos, encontramos dificuldade em estabelecer algumas dessas parcerias e formar redes de sustentação ao tratamento, devido principalmente à escassez de profissionais das áreas de saúde que se ocupem dessas problemáticas e dialoguem com a psicanálise. A compreensão biologizante e medicalizante prevalece em diversos setores de atendimento à saúde. Raramente se atém aos aspectos psíquicos e sociais envolvidos na constituição dessas problemáticas, dando ênfase ao sintoma físico, bem como buscando sua remissão através de medicações e terapias cognitivo-comportamentais. Observamos que essa tendência favorece a recidiva e a cronificação dessas problemáticas ao deixar de lado os aspectos inconscientes e as dinâmicas familiares e sociais envolvidas.

Nesse sentido, também em 2018, começamos a dar corpo a um desejo já antigo de transmitir nossa experiência para profissionais das áreas da saúde, da educação e do serviço social, com o intuito de estreitar parcerias com profissionais abertos ao diálogo com a psicanálise. Assim, foi proposto ao Instituto Sedes um curso de expansão para o 1º semestre de 2019 denominado Introdução à abordagem psicanalítica das problemáticas alimentares, por membros e ex-membros do Projeto. Nesse primeiro ano de curso, grande parte dos alunos foi composta por psicólogos que buscam uma aproximação com o pensamento psicanalítico, mas também contamos com a participação de uma nutricionista, uma professora e artista plástica e duas jornalistas. Para o próximo ano pensamos em reforçar a divulgação junto a profissionais da rede básica de saúde, bem como em outros veículos de informação, a fim de ampliar a diversidade de profissionais participantes do curso. A experiência de transmissão do pensamento psicanalítico tem sido gratificante e parece estar proporcionando aos alunos uma reflexão mais ampla sobre os comportamentos alimentares a partir de sua dimensão inconsciente.

A partir da divulgação do curso, surgiu o convite do grupo Roda de Psicanálise de Maringá, intermediado pelo GTEP (Grupo de Transmissão e Estudos de Psicanálise) do Departamento de Psicanálise, para a apresentação de duas falas e realização de discussão clínica acerca das problemáticas alimentares. As conferências serão realizadas nos dias 14 de Junho de 2019 no evento intitulado Um olhar psicanalítico sobre as problemáticas alimentares. O texto que se segue foi composto para atender a este convite, mas também possui algumas das ideias elaboradas durante a preparação do curso que está acontecendo no Sedes neste momento.


* * *


Não bastasse a fome que vem das entranhas diariamente. Também comemos com os olhos, empanturrados por anúncios de comida, de restaurantes, de serviços de entrega... Há canais onde se pode ver programas de receitas 24 por dia, há realities e disputas: o melhor cozinheiro, confeiteiro, padeiro... há os pop-ups nas mídias sociais e os aplicativos que têm a receita certa para cada ocasião... Há hotéis all-inclusive que, para os mais abonados, são uma espécie de paraíso na Terra, não fosse o fantasma da preocupação com os muitos quilos que se pode ganhar em poucos dias... pois, de outro lado, não somos menos expostos às notícias sobre saúde e sobre as formas e medidas ideais do corpo. Seja pelo viés da saúde, ou pelo da estética, estamos em constante conflito entre esses parâmetros e a oferta de comida! Mas para esse conflito também há receitas e comidinhas especiais, funcionais, fit e light... Às vezes parece até que respiramos comida!

Exagero meu? Quem nunca esteve de dieta, que atire a primeira pedra!

Assim como a comida parece estar em quase todos os cantos do cotidiano, as problemáticas alimentares, ao olhar da psicanálise, são bastante abrangentes, e é desta largueza de espectro que eu vou começar falando hoje. Ao olhar da psicanálise, a alimentação deixa marcas que estão para além da formação do paladar; ao olhar psicanalítico, a alimentação deixa marcas importantes na constituição do psiquismo, na capacidade de simbolização e na relação com o mundo externo. Além disso, veremos hoje também que as anorexias, bulimias e compulsões alimentares apresentam um caráter transnosográfico, não se reduzindo a uma única categoria nosológica da psicanálise. Porém, ainda sim, possuem algumas, ainda que poucas, especificidades que as agrupam, e falarei disso também.

A alimentação tem um lugar especial na psicanálise, pois a fome é tomada como necessidade primeira sobre a qual se apoiará o nascimento do desejo e das formações psíquicas. Para Freud, a amamentação é o protótipo da primeira experiência de satisfação que consiste no fundamento do aparelho psíquico. Como Freud começa a explicitar no Projeto (1895) e segue no texto do Inconsciente (1915), o caminho sensorial percorrido entre a fome, sua saciedade, o registro sensorial e imagético dessa experiência, sua alucinação quando do reaparecimento da fome, a ativação da motricidade diante da não saciedade pela alucinação e o retorno para si mesmo quando da frustração, cria as vias facilitadas. As marcas mnêmicas deixadas por essas experiências, que serão repetidas inúmeras vezes, serão as representações de coisa que condensam e se ligam a representações palavras enquanto a linguagem é gradativamente introduzida pelo banho de palavras da mãe (Anzieu, 1989). Esse processo dá a ver como as necessidades corporais, e a fome primeiramente, se transformam a partir do contato com o outro em desejo e em tramas psíquicas que têm a função primordial de adiar a descarga e promover um acervo de traços que permitem os deslocamentos e são a matéria prima da fantasia.

Winnicott segue por um caminho um pouco diferente, mas dá às primeiras experiências de alimentação uma importância tão central quando Freud. Winnicott não pensa em termos de desenvolvimento psíquico ou libidinal, embora não negue sua existência (Winnicott, 1990, p. 54). Ele pensa em termos do que denomina de desenvolvimento emocional que vai da não-integração primária à integração e que inclui etapas como: a integração (do tempo e do espaço), a personalização (da psique no soma) e a realização (que implica a capacidade de estar só na presença do outro), e nesse processo Winnicott valoriza a alimentação como experiência fundamental. Denomina de primeira mamada teórica uma série de experiências repetidas que apoiadas na alimentação propriamente dita, vão muito além dela. De acordo com Winnicott, o fenômeno mais importante que deve ocorrer durante a primeira mamada teórica é a sustentação da experiência de ilusão. Porém, é importante não confundir a alucinação do objeto de Freud com a ilusão de Winnicott. A ilusão a que Winnicott se refere é a ilusão de onipotência, a ilusão para o bebê de que o objeto encontrado foi criado por ele. A sustentação do paradoxo achado/criado nesse momento de indiferenciação mãe-bebê é fundamental para o processo de integração do self. Uma ruptura precoce desse paradoxo estaria na base da retração do verdadeiro self, a parte criativa do ser, que daria lugar ao falso self, a parte do ser adaptada ao ambiente e empobrecida em sua criatividade. O que garante que a ilusão seja mantida pelo tempo necessário é a suficientemente boa adaptação da mãe ao ritmo de mamadas do bebê.

Para os preferem seguir os caminhos delineados por Lacan, a experiência da amamentação não tem caminhos menos importantes para a estruturação do psiquismo (Carvalho, Â. S.; Lima, M. C. P. & Martins, K. P. H., 2013). Lacan enfatiza a importância da frustração nesse processo para que a necessidade se transforme em demanda e em seguida em desejo. Enfatiza também a importância de que o bebê seja interditado pela introdução do terceiro que liberte a criança do engodo de ser o falo da mãe, permitindo que tenha desejo, ainda o que o desejo seja, para Lacan, desejo do Outro. A mãe frustra a criança com sua ausência, isso a torna mais real e detentora da possibilidade de satisfazer ou não a criança; assim, receber o seio passa a ser uma expressão do amor da mãe, a necessidade (a fome) vai se transformando em demanda de amor. Mas é pela interdição dessa relação incestuosa que a demanda de amor da mãe se transforma de desejo, desejo do Outro. A recusa alimentar nessa fase, a recusa em sair do aleitamento e ampliar o paladar para outros alimentos é compreendida como uma recusa a deixar de ser o falo da mãe e depende da dinâmica da dupla, incluindo não apenas os movimentos do bebê mas, em grande medida, a forma como a mãe viveu e lida com a própria castração, que determina como ela agirá diante da recusa alimentar de seu bebê.

Sabemos, também, que a alimentação vai muito além da amamentação; ela se expande pouco a pouco para outros sabores, texturas e temperaturas. Todavia, a alimentação é sempre uma experiência que tem como marca a entrada do externo, do outro, que poderá ser mastigado, engolido, cuspido, digerido, vomitado, impedido, ora tóxico, ora alimento nutriente para o corpo e para o psiquismo. Assim como a introdução dos alimentos não tem apenas relação com a ampliação do paladar, e está no cerne do sujeito, como apontei através de Freud, Winnicott e Lacan, as problemáticas alimentares durante a vida também não vão se reduzir à comida propriamente ou aos efeitos orgânicos desta no corpo. A comida e o comportamento alimentar ficam desde cedo enlaçados de tal forma no psiquismo que servem de suporte tanto para as formações do inconsciente, como para as evacuações de tensões pulsionais não simbolizadas.

Certa vez atendi uma menina de cerca de 8 anos que não comia nada além de leite e massa de panqueca. A família (mãe a avó materna) gostaria que ela ampliasse o cardápio gastronômico, mas ‘não viam sentido’ (na realidade se sentiam muito ameaçadas) em que ela tivesse uma cama própria para dormir, que brincasse na casa das amigas, que passasse o final de semana na casa do pai, ‘não viam sentido’ em ela ampliar o cardápio de relações. E assim, a pequena se mantinha pequena, se alimentava e se comportava como uma bebê. O atendimento não foi adiante... para além da grande distância que percorriam para chegar às sessões, razão utilizada para a interrupção, ficou claro (também para a mãe) a relação entre a restrição alimentar e o espaço restrito que a menina tinha para crescer na família.

O prazer de comer deve ser datado de muito antes do controle do fogo pelo homem, quando a culinária propriamente começa a existir! O prazer de comer já estava no alívio da fome, mas evidentemente foi se sofisticando com sabores e texturas. Porém, esse prazer parece ter tido um upgrade com a descoberta do glutamato! A partir dos anos 2000 a comunidade científica reconheceu o que já vinha sendo proposto desde 1908 pelo Prof. Kikunea Ikeda; a existência de um lugar da língua que é ativado pelo glutamato gerando prazer. Umami (junção de duas palavras japonesas: gosto + delicioso) denomina a sensação percebida por essa parte específica da língua, que existe ao lado de outras partes sensíveis ao doce, salgado, azedo e amargo. Quando o Umami é ativado, a experiência com o alimento é ainda mais prazerosa, sustentando, entre outras coisas, a possibilidade de dependência química de comidas industrializadas que levam glutamato na sua composição. A dependência química do açúcar, que altera o mecanismo orgânico de controle entre a fome e a saciedade através das alterações dos níveis de insulina no sangue, também tem sido objeto de estudos científicos e não pode ser ignorada. Mesmo sabendo que o cérebro não tem receptores nem para o glutamato nem para o açúcar, como tem para outras substancias psicoativas, entende-se que, na medida que esses geram uma sensação prazer, entram num circuito que se situa numa zona de fronteira entre o psíquico e o somático, pois sabemos que a sensação de prazer não é somente ‘egóica’ e produz a liberação de substâncias no organismo que são, num segundo tempo, psicoativas. De outro lado, a partir de um olhar psicanalítico, compreendemos o psiquismo como uma rede que tem seus alicerces nos circuitos de prazer e desprazer. Mas, antes de voltar à psicanálise, também cabe lembrar que a alimentação, a saúde e a estética são mercados milionários e me pareceria ingênuo esperar que houvesse escrúpulos em nos empanturrar de ofertas. A sociedade do consumo e do desempenho, tal como definida pelo filósofo coreano radicado na Alemanha, Byung-Chul Han (2017), tem como lema: ‘Yes, we can’. Assim, poderíamos então comer tudo e quanto desejarmos? Ter toda a saúde que a medicina pode nos proporcionar? E ao mesmo tempo o formato do corpo idealizado?

Não. A castração se apresenta dia-a-dia nessa equação corpo-comida. A partir de um olhar psicanalítico vamos expandir a noção de prazer para além das sensações físicas e circuitos orgânicos, e vamos nos dispor a pensar os prazeres subjetivos que, por vezes, são conflituosos entre si. Em O ego e o id, Freud (1923) vai dizer: ‘prazer num sistema, desprazer no outro’. Quando a conta não fecha, somos levados de volta à mesa de negociação egóica que inclui o princípio de realidade e nos oferece alguns deslocamentos e, por sorte, algumas sublimações para desejos contraditórios e frustrações eminentes, porém, muitas vezes nos deparamos com algo da ordem, ‘eu sei que não deveria, mas... ’. Lacan vai sofisticar essa percepção freudiana com a noção de gozo, como um ‘para além do prazer’ (Lacan, 1959-60) que nos adere a certas repetições e nos remetem a pensar no que há de inconsciente, e o que há de gozo, nos comportamentos alimentares que se impõem a nós produzindo ambivalências enraizadas.

Hermann & Minerbo (1998) num texto bastante bem-humorado, chamado “Creme e Castigo”, nos apresentam como os complexos morais migraram do sexo para a comida nos últimos tempos. Os tabus alimentares baseados em novos ideais para o formato do corpo e para a saúde ganham espaço como organizadores do recalque e mantém as neuroses em seu lugar. Os pecados da gula e culpa por sair dos padrões do ideal do eu garantem um campo de problemáticas alimentares ligadas às neuroses. Desse modo, sempre que encontrarmos uma problemática alimentar, seja ela anorexia, bulimia, compulsão, ou ainda, restrições, fobias, etc., que consistir na expressão de uma pulsão recalcada, apresentando-se como formação de compromisso entre o desejo recalcado e as defesas, estaremos no campo da neurose. Sempre que encontrarmos uma adolescente se recusa a comer, purga ou come em excesso, alterando o formato do seu corpo para se esquivar da entrada na sexualidade adulta, estaremos no campo das neuroses. Ainda cabe dizer que, para essas, o tratamento analítico se dará através de seu dispositivo mais clássico: criação e interpretação da neurose de transferência a partir das associações livres e atenção flutuante.

Mas, como já anunciei no início, observamos na prática clínica que as problemáticas alimentares serão transnosográficas. Desse modo, não vão se reduzir às questões neuróticas, e serão bastante presentes em pacientes que apresentam falhas em sua constituição narcísica, que estão no cerne das organizações dos pacientes-limite, também chamados de borderline e, mais atualmente, de narcísico-identitários (Roussillon, 2012). Para esses pacientes as problemáticas alimentares também poderão por vezes ser organizadas pelas categorias descritivas das anorexias, bulimias e compulsões alimentares, contudo, a dinâmica dessa manifestação que toma forma no comportamento alimentar não encontrará sustentação num conflito pulsional recalcado; estas serão na realidade formas de manifestação das falhas narcísicas: de precária libidinização do sujeito por parte do objeto primário, por dificuldade de separação do objeto primário e consequente não desenvolvimento do duplo-limite (Green, 2008): eu/não-eu, interno/externo. Ou seja, de algumas das vicissitudes dos desencontros na relação mãe-bebê.

Quando o emagrecimento anoréxico não tem relação com o apagamento da sexualidade do corpo, como poderia ser numa neurose, e releva uma impossibilidade de investimento no externo, quando as crises bulímicas nos remetem a uma espécie de Fort-Da concreto e não ainda metafórico, onde fica evidente que não ocorreu a introjeção do objeto primário que poderia sustentar as separações, ou quando uma compulsão alimentar anuncia uma impossibilidade de viver a ausência como espaço, e se vive apenas a sensação de um vazio mortal, as problemáticas alimentares com as quais estaremos lidando vão nos remeter às questões narcísicas. Nesses quadros, as formações do inconsciente: associações livres, sonhos, lapsos e os próprios sintomas não poderão nos trazer elementos para a interpretação da repetição, pois justamente não se trata de questões da ordem do simbólico, nem do recalque. São quadros que apresentam (e não propriamente representam) evacuações nos atos e nos sintomas de excessos pulsionais não-ligados. Ao dispositivo analítico clássico precisa ser incorporado o trabalho com o enquadre e com o analista em posição de suplência de objeto primário (Junqueira, 2015, 2017).

Diante dessa multiplicidade de arranjos inconscientes, sintomáticos e evacuativos que o comportamento alimentar pode enlaçar, me parece um tanto pretensioso falar em especificidades que unam esses quadros. Talvez a mais clara e evidente especificidade seja o desafio ao método psicanalítico imposto por quadros que não raro apresentam uma gravidade orgânica que exige uma intervenção rápida e direta no sintoma alimentar. Como é bastante claro nos meios psicanalíticos, o processo analítico não visa à extinção do sintoma - que é compreendido seja como uma formação de compromisso necessária, ou como forma possível de evacuação de pulsões não simbolizadas. A retirada abrupta de um sintoma pode levar a deslocamentos ou a passagens ao ato, como pode ser observado nas tentativas de suicídio de anoréxicas que recebem realimentação forçada por conta do baixo peso extremo ou aos episódios de dumping promovidos por estratégias para burlar a dieta, a dependência ao álcool, e aumento de mortes por acidentes e suicídios em pacientes submetidos à cirurgia bariátrica. Por outro lado, os prejuízos orgânicos e o risco de morte apresentados pelo próprio quadro orgânico não raramente exigem tais intervenções. Ainda assim, compreendemos que a escuta analítica dos sintomas e das formas de evacuação, e as intervenções na transferência se constituem como aspecto fundamental para uma reorganização do funcionamento psíquico do paciente, que permite inclusive não apenas a redução do risco, mas a própria aderência ao tratamento orgânico, seja medicamentoso ou nutricional.

Outra especificidade que me parece possível apontar entre as mais diversas problemáticas alimentares é que elas se expressam num entrelaçamento do corpo com os atos. Seja de forma mais simbólica, conversiva, como nas neuroses, seja de forma menos simbólica, evacuativa, como nos pacientes-limite, corpo e ato expressam conjuntamente, através da relação com a comida e seus impactos no corpo, algo que é da ordem das marcas inconscientes deixadas pela relação com o outro.

Ainda procurando especificidades, cabe comentar que é extremamente frequente a morosidade do paciente e da família em perceber a gravidade dos quadros, mesmo quando a gravidade é orgânica. Se de um lado sabemos que a questão cultural que torna tanto as dietas restritivas como a comida em excesso em algo banal pode mascarar a questão, de outro estamos justamente apontando o quanto estas problemáticas apresentam as marcas inconscientes deixadas pela relação com o outro. As famílias e os inconscientes familiares estão assim intimamente implicados e resistem, utilizando-se de mecanismos de defesa muito primitivos como a recusa e alucinação negativa, necessitando que alguém de fora, seja analista, mas também médico, desmonte essa organização sintomática que apresenta costuras transgeracionais. Num documentário recente produzido pelo Netflix chamado I am Maris, ouvimos o relato da mãe de uma adolescente com anorexia contar que uma médica, ao constatar a gravidade orgânica do quadro de sua filha lhe diz que ela tem 4 horas para interná-la, ao que ela responde se não seria possível deixar a internação para segunda-feira, pois no final de semana a menina teria um campeonato esportivo. É apenas depois da recuperação da filha que a mãe consegue perceber a profundidade de sua dissociação.

Mas um texto que quer pensar as abrangências e as especificidades de algo é certamente um texto que não acaba quanto termina. É um texto que quer ser um convite a pensarmos quais mais abrangências e especificidades das problemáticas alimentares podemos encontrar sob um olhar psicanalítico...

Referências bibliográficas:

ANZIEU, Didier (1989). Eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo.

CARVALHO, Ângela Sousa de; LIMA, Maria Celina Peixoto & MARTINS, Karla Patrícia Holanda. (2013). As problemáticas alimentares e a desnutrição na infância: contribuições psicanalíticas. Estilos da Clinica, 18 (2), 372-386.

FREUD, Sigmund (1895). Projeto para uma psicologia científica. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 1). Rio de Janeiro: Imago, 1989.

_________ (1915a). O inconsciente, (Vol.14).

__________ (1923a). O ego e o id, (Vol.19).

GREEN, André. Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, 2008.

HAN, Byung-Chul (2017). Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Editora Vozes.

HERMANN, F. e MINERBO, M. (1998). Creme e castigo. Sobre a migração dos valores morais da sexualidade à comida, in CARONE, I. Psicanálise fim de século — ensaios críticos. São Paulo: Hacker. Pp.19-36.

JUNQUEIRA, C. (2015). Considerações sobre o enactment a partir de uma experiência clínica. Revista Brasileira de Psicanálise da SPPA , v. XXII, n. 2, pp.435-449.

___________ (2017). Transbordamentos do setting, transferência sobre o enquadre, IN: Ulhôa Cintra, Elisa; Tamburrino, Gina, Ribeiro, Marina (Orgs.), Para além da contratransferência: o analista implicado. São Paulo: Zagodoni.

LACAN, Jacques (1959-60). Seminário 7 - A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

ROUSSILLON, René (2012) As Condições da exploração psicanalítica das problemáticas narcísico-identitárias. ALTER – Revista de estudos psicanalíticos. v.30, n.1, pp.7-32.



[i] Psicanalista, doutora e pós-doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, terapeuta do Projeto de pesquisa e clínica psicanalítica das problemáticas alimentares do Departamento de Psicanálise e da Clínica Psicológica do Sedes Sapientiae, professora e coordenadora do curso de expansão de Introdução à abordagem psicanalítica das problemáticas alimentares.




 
 
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