UMA REFLEXÃO PSICANALÍTICA ACERCA DO TRAUMA COLONIAL [1]
CAMILA MAKHOUL[2]
E quando a dor vem encostar-se a nós, enquanto um olho chora
o outro espia o tempo procurando a solução
Conceição Evaristo
A história do Brasil se pauta na violência. No verbo violentar. O Brasil
nasce sob o ato e o signo da violência. Herdeiro da maior sociedade
escravista moderna, o estado-nação brasileiro é recheado de contradições
violentas, entendidas como estágios necessários para o que veio a ser.
No livro Brasil: uma biografia as autoras Lilia M. Schwarcz e
Heloisa M. Starling narram a história do Brasil a partir de uma perspectiva
biográfica que não exclui as ambiguidades, contradições, avanços e recuos
de toda história. Elas apontam possíveis armadilhas no modo de narrar a
história do Brasil por professores nas escolas, que demonstram uma maneira
engessada e determinista de enxergar os acontecimentos.
Ao relatar sobre o sistema escravocrata e a naturalização da violência,
elas afirmam que a montagem do escravismo moderno é articulada entre a
criação de colônias e seu funcionamento sob formas de grandes unidades
produtoras voltadas para o mercado externo. A monocultura em larga escala
exigia uma quantidade grande de trabalhadores que deveriam se submeter a
uma rotina espinhosa, sem que houvesse qualquer tipo de troca entre quem
dava as ordens e quem as recebia. Por esse motivo essa relação, denominada
como escravidão, é a mão de obra compulsória caracterizada pela exigência
de trabalhadores alienados de sua origem, liberdade e produção.
A ideologia que se confrontava nessa época era o trabalho enquanto um fardo
a ser cumprido, uma pena para ambos os lados: senhores e escravizados. Os
discursos dominantes (da Igreja e dos proprietários de terra) entendiam o
trabalho árduo como uma atividade disciplinadora e civilizadora. Havia
inclusive manuais que ensinavam didaticamente como transformar o
escravizado em um trabalhador obediente, verdadeiros manuais de maus tratos
pedagógicos.
“A atividade produtiva, repetitiva, cansativa já em si violenta. Punições
públicas, tronco exemplar, utilização de açoite como forma de pena e
humilhação, os ganchos e pegas no pescoço para evitar as fugas nas matas,
as máscaras de flandres para inibir o hábito de comer terra e assim
provocar o suicídio lento e doloroso, as correntes prendendo ao chão;
construiu-se, no Brasil, uma arqueologia da violência que tinha por fito
constituir a figura do senhor como autoridade máxima, cujas marcas, e a
própria lei, ficavam registradas no corpo escravo. Quanto ao cativo, logo
depois da travessia tinha que aprender a negociar e agenciar a arte de
sobreviver a submissão ao senhor” (SCHWARCZ, STARLING, 2015, p. 92).
O sistema do escravismo moderno se instalou com o exercício sofisticado da
violência que permanece até hoje, tanto pelos costumes e palavras como pela
própria ação política. Temos como exemplo simbólico a nossa arquitetura dos
prédios e casas. Se a casa-grande delimita a fronteira entre área social e
a de serviços, a mesma arquitetura simbólica permanece presente nas casas e
edifícios, onde o elevador de serviço, usado não só para carga, mas também
e principalmente para os empregados. Quanto a ação política, uso como
exemplo a polícia e suas operações de segurança como uma continuidade da
violência instituída pelo escravismo.
No estado do Rio de Janeiro, o Instituto de Segurança Pública registrou
1249 mortes decorrentes de ação policial de janeiro a setembro de 2019, um
aumento de 16% em relação a 2018 [3]. De
acordo com as pesquisas do Laboratório de Análise da Violência,
especialistas sugerem que, quando a proporção de mortos pela polícia excede
10% do total de mortes, há fortes indícios de execuções e uso abusivo de
força.
A polícia foi criada para cuidar de uma mercadoria de uma forma específica.
Nos campos rurais havia muitas fugas de escravizados, as quais nem sempre
geraram a formação de quilombos. A fuga individual ou em grupos questionava
os limites de dominação, pois o escravizado que fugia afrontava o princípio
da propriedade. E assim, logo cedo percebeu que as punições aos fugitivos
não bastavam, era preciso criar outros mecanismos de controle e manutenção
da ordem escravista, a punição pública.
“Essa crença no castigo exemplar inclui diversas modalidades de pena:
mutilação do corpo escravo infrator, para que toda a sociedade, em qualquer
ocasião, ao ver a marca, ficasse ciente do crime por ele cometido; suplício
no pelourinho - coluna de pedra encimada com as armas e o brasão real,
símbolo da fidelidade ao rei, erguida sempre na praça principal da vila, e
em cujos lados pediam argolas onde costumavam ser acorrentados e açoitados
os escravos (...) “(SCHWARCZ, STARLING, 2015, p. 103).
No entanto, tudo isso ainda não era o suficiente. As autoridades coloniais
precisavam avançar nas buscas daqueles que continuavam fugindo. E assim
desenvolveu-se uma força especializada na perseguição do escravizado
fugido, uma espécie de tropa profissional autorizada para captura de negros
fugidos nos matos e nos quilombos, com ordem para matar, incendiar
e destruir os pontos de resistência dos povos africanos. Nesse
contexto, surge a figura do capitão do mato, muitas vezes ex-escravizados
que diziam conhecer melhor do que ninguém o comportamento do fugitivo.
Um capitão do mato recebia sua remuneração diretamente do proprietário de
escravizados que o contratara. O valor acordado era regulado pela distância
entre o local da fuga e o da captura: quanto maior a distância, maior o
valor. E o pagamento só acontecia depois da captura daquele que fugiu, vivo
ou morto com a cabeça degolada dentro do saco de couro que o capitão
carregava consigo.
No livro O medo na cidade do Rio de Janeiro, a autora Vera
Malaguti Batista escreve sobre o surgimento da polícia no Brasil,
relacionando-o com a manutenção da escravidão que marca a configuração de
toda sociedade brasileira.
Nessa pesquisa, Vera busca focar na difusão do medo do caos e da desordem
para aplicar estratégias de disciplina da população empobrecida através da
hegemonia conservadora. A partir das investigações históricas, a autora
analisa os discursos sobre segurança no Rio de Janeiro desde a época do
Império até a década de 90 do século XX, comparando o medo do levante Malê
de 1835 com o medo branco dos arrastões da década de 90.
Paralelamente, a autora nos apresenta, via discurso político,
jurídico-penal, médico e da imprensa, o medo generalizado no Império - de
tudo o que estava acontecendo e do que estava por vir em termos de mudanças
no quadro da escravidão no país. A polícia exercia o controle nas cidades,
no sentido de estancar as rebeliões que se estabeleceram, como a Revolta
dos Malês, na Bahia, ou a Cabanagem, no Pará. Esses discursos abriram
caminho para a política de segurança em que os inimigos construídos na
ficção do medo eram desumanizados e assim criou-se uma violência
naturalizada que se expande em diversos tipos de consequências como a
brutalização e criminalização da pobreza e do povo brasileiro.
“Digamos então que esses discursos impressos na década de 30 do século XIX
proclamam por soluções para os medos tangíveis; propõem uma certa ordem que
passa por classificações e hierarquizações, divide em raças e cores, exige
ritmos e rituais nas movimentações pela cidade, investe alguns de boas
qualidades ao mesmo tempo em que bestializa outros. A segurança neste mundo
só pode ser exercida por uma polícia que inspire confiança a uns e infunda
terror a outros. A ênfase neste conceito de polícia e de segurança produziu
políticas concretas de controle social, surpreendentemente presentes e
naturalizadas no Brasil contemporâneo” (MALAGUTI BATISTA, 2003, p.
193-194).
A polícia no Brasil foi criada para fazer esse controle, para tomar conta
dessa população. É o capitão do mato contemporâneo. Como dito
anteriormente, o capitão do mato tinha a função de perseguir e entregar os
fugitivos aos seus donos. Essa é a herança persecutória pautada nas
questões raciais, de gênero e de território que a polícia atua. A polícia
não toca o terror nos espaços de elite. Ela não invade o território da
elite branca. É a humanidade do subalterno que invade e destrói, no qual
não é evidente qual é a norma e a lei. A polícia vai ser sempre avaliada
depois da ação. Primeiro mata e depois pergunta quem é. E assim se
concretiza a chamada necropolítica.
Necropolítica é um conceito desenvolvido pelo filósofo, historiador,
teórico político e professor universitário camaronês Achille Mbembe que
escreveu um ensaio questionando os limites da soberania quando o Estado
escolhe quem deve viver e quem deve morrer. Ou seja, é o exercício de
controle sobre mortalidade e definição da vida como a implantação e
manifestação do poder.
A necropolítica portanto é a política da morte adaptada pelo Estado. Ela
não é um episódio, não é um fenômeno que foge a uma regra. Ela é a regra. E
Mbembe elabora esse conceito à luz do estado de exceção e do estado de
terror. Para explorar tal ideia o autor usa o conceito de biopolítica do
Michel Foucault e para isso ele inicia suas ideias com o entendimento de
que a modernidade esteve na origem de vários conceitos de soberania e,
portanto, da biopolítica. A partir do conceito foucaultiano ele diz que a materialização dessa política se dá pela expressão da morte.
E isso vai ter um desdobramento nas sociedades contemporâneas. A gente vê
hoje um Estado que adota a política da morte, o uso ilegítimo da força, o
extermínio e a política de inimizade. Que se divide entre amigo e inimigo.
Não há nenhum tipo de serviço de inteligência, de combate à criminalidade.
O que se tem é a perseguição daquele considerado perigoso. A necropolítica
reúne esses elementos, que são reflexíveis e desdobrados no que a gente
pode perceber no nosso cotidiano, na nossa chamada política de segurança.
Para entender melhor esse desdobramento, Mbembe diz sobre uma
instrumentalização de conduzir as pessoas a morte e a eliminação dos
inimigos do estado que vem desde os tempos do imperialismo colonial, do
período da escravidão.
“Qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisar tratar
da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da
experimentação biopolítica. Em muitos aspectos, a própria estrutura do
sistema de plantation e suas consequências manifesta a figura
emblemática e paradoxal do estado de exceção” (MBEMBE, 2003, p. 27)
Essa figura emblemática e paradoxal do estado de exceção é o que o sistema
de plantação faz com a figura do escravizado, o transforma em uma “sombra
personificada” e o coloca sob uma condição que implica em três perdas.
Perda de um lar, perda de direitos sobre seu corpo e perda de estatuto
político. Isto equivale a uma dominação absoluta, uma alienação de
nascimento e uma expulsão máxima da humanidade. Enquanto instrumento de
trabalho, o escravizado tem um preço, enquanto propriedade, ele tem um
valor. O sujeito é mantido vivo, mas em um estado mutilado, em um mundo
fantasmagórico de horrores e crueldade. Traz-se à tona para a discussão o
espetáculo dos sofrimentos infligidos ao corpo do escravizado. A violência
praticada contra o escravizado, capricho ou ato destruidor, tem o objetivo
de instigar o terror. A vida do escravizado em muitos aspectos é uma forma
de morte em vida. Há, portanto, uma desigualdade do poder sobre a vida: a
condição de escravo produz uma contradição entre a liberdade de propriedade
e a liberdade da pessoa; uma relação desigual é estabelecida ao mesmo tempo
em que se afirma uma desigualdade do poder sobre a vida. Este assume a
forma do comércio na qual a humanidade de uma pessoa é destruída ao ponto
em que se torna possível dizer que a vida do escravizado é propriedade do
senhor, o tornando como sombra personificada.
O escravizado é tratado como se não existisse, exceto como uma ferramenta e
instrumento de produção. No entanto, apesar disso, ele ou ela são capazes
de extrair de quase qualquer objeto uma representação e assim estilizá-lo.
Ou seja, o escravizado é tido como um instrumento que fala e é capaz de se
comunicar via corpo e música.
Em outros termos, o que se articula aqui é a relação entre a vida e a
morte, a política de crueldade e os símbolos do abuso que tendem a se
embaralhar no sistema de plantation. E o principal elemento dessa
formação de terror é o entrelaçamento entre biopoder, o estado de exceção e
estado de sítio. E é claro que a raça é o ingrediente crucial para esse
encadeamento.
Por isso, Mbembe diz que o que acontece na Segunda Guerra Mundial é a
extensão dos métodos anteriormente usados na época colonial. Entretanto, o
que importa para o autor é que a colônia representa um lugar em que a
soberania consiste principalmente no exercício de um poder à margem da lei
e no qual a paz tende a assumir uma espécie de guerra sem fim. Desse modo,
as colônias eram governadas pela ausência de lei originada da negação
racial de qualquer vínculo entre o colono e o colonizado. Aos olhos do
colono a vida do outro selvagem é apenas uma vida animal passível de ser
destruída sem ser considerado um ato criminoso. Dessa forma, a guerra
colonial tem suas especificidades pois não é uma guerra com leis, é uma
guerra caracterizada na sua expressão máxima de hostilidade que coloca o
colono face um inimigo absoluto, o inumano.
Do ponto de vista jurídico não somos mais colônias, apesar de nunca termos
deixado de ser no ponto de vista político. A colônia tinha uma expropriação
do corpo, o corpo escravizado, um corpo moeda, objeto. O que permanece é o
corpo que é matável. Não é mais estatuto jurídico da escravidão, mas
digamos que essa escravização se dá de outras formas. A partir de
imaginários, de políticas que definem o normal e o desviante, o bem e o
mal, o belo e o feio. A gente vai vendo essas hierarquias se mantendo, o
fantasma da escravidão e da colônia é uma presença muito forte, inclusive
orienta políticas contemporâneas.
Pensando no que aconteceu na favela da Maré no Rio de Janeiro em 2019:
foram 16 crianças baleadas e cinco morreram neste mesmo ano. No ano de 2020
a favela do Jacarezinho presenciou a ação mais letal da história carioca,
foram 28 mortos em decorrência da operação policial civil. O número de
policiais mortos no Rio de Janeiro é uma coisa absurda. Eles também estão
morrendo. Quando pegamos os índices, por exemplo, de morte de jovens
brancos de classe média, em cidades como São Paulo, vão aparecer acidentes
de carros e fatalidades. Mas a incidência de mortes por policiais se dá com
o jovem negro da periferia. Isso quer dizer que há uma incidência de morte
em que o Estado é o agente, o sujeito.
Em paralelo a isso, Mbembe recorre a Franz Fanon para explicar a lógica do
necropoder dizendo que há uma espacialização da ocupação colonial na qual
condiz fundamentalmente na divisão do espaço em compartimentos (periferia -
centro). Um espaço que envolve a definição de limites e fronteiras internas
representadas por quarteis e delegacias de polícia, pela linguagem da força
e violência operando no poder de fazer morrer:
“A cidade do colonizado (...) é um lugar de má fama, povoado por homens de
má reputação. Lá eles nascem, pouco importa onde ou como; morrem lá, não
importa onde ou como. É um mundo sem espaço; os homens vivem uns sobre os
outros. A cidade do colonizado é uma cidade com fome, fome de pão, de
carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma vila
agachada, uma cidade ajoelhada” (FANON, 1991 apud MBEMBE, 2003,
p.41).
Não precisamos ir tão longe para presenciar tal funcionamento. Os morros e
o asfalto na zona sul do Rio de Janeiro, o centro e as periferias da
metrópole paulistana, o mangue e a orla na cidade à beira-mar são traduções
territorialmente distintas da desigualdade de oportunidades urbanas que
define nossas cidades. E é nessa condição da soberania vertical e ocupação
colonial que conduzem a proliferação dos espaços de violência concretizados
no processo de militarização das favelas do Rio de Janeiro,
especificamente.
A dissertação de Marielle Franco, mais tarde publicada em forma de livro,
mostra como a implementação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora)
constitui-se como uma política de segurança pautada em um modelo de
controle e ocupação de território por armas oficiais.
Segundo ela, a ocupação das UPPs responde ao terror causado pelas incursões
policiais e não responde ao poder das armas territoriais. Isto é, o projeto
da diminuição da força armada dos grupos criminosos é arquitetado por uma
política que tira desses grupos o poder da circulação de armas e passa para
as mãos dos policiais. E então pode-se dizer que há um processo de
militarização que substitui a exibição das armas, antes nas mãos dos grupos
ditos criminosos e hoje nas mãos do braço armado e legal do Estado que
possui o absoluto uso da força autorizado pela política de segurança.
Para tanto, o que incorpora em tal política é o discurso de guerra contra
as drogas como um projeto de iniciativa de levar “a paz” aos territórios,
antes dominados pela “guerra”, sobretudo por meio de recursos ideológicos,
usados como principal ferramenta para conquistar a opinião pública e o
senso comum, a fim de sustentar as contradições desta política.
Lembrando o que Mbembe diz sobre a ocupação colonial como uma guerra sem
leis, Marielle ainda acrescenta que nesse processo da ocupação policial nas
favelas não há uma “guerra” a se evidenciar.
“O que de fato, existe, ou está indicado, é uma política de exclusão e
punição dos pobres, escondida por trás do projeto das UPPs”.
(p. 20)
Um dos pontos importantes que a autora traz são as constantes denúncias de
violação e abusos nas UPPs:
“são desacatos, xingamentos, utilização de chaves- mestras sem mandado
de busca e apreensão, agressões, abuso de autoridade”
(p. 99).
Marielle retoma que, em 2014, rememorou-se a ditadura imposta pelo golpe de
64. E aqui um exemplo vivo de que o passado se faz presente: na época da
ditadura havia a “Medalha de Bronze do Pacificador”, entregue aos oficiais
que se destacaram no combate aos guerrilheiros, enquanto que nas ações
militarizadas nas favelas cariocas utiliza-se o veículo da CORE chamado de
“paci fica dor”. Veículo conhecido pelos moradores como
Caveirão. E desse modo, manifesta-se a contradição de um modelo chamado
como pacificador mas que na sua essência é militarizado, tanto em
documentos oficiais como nas práticas na sociedade, uma organização interna
que nada se distanciou da ditadura militar e diria ainda do sistema
colonial - o Duque de Caxias é, até hoje, o grande pacificador brasileiro.
Diante desse cenário horroroso proponho a ideia de que o Brasil sofre de um
trauma não elaborado: o trauma colonial.
Segundo o Vocabulário de psicanálise de Laplanche e Pontalis, o
trauma é definido como um “
acontecimento na vida do sujeito que se define pela sua intensidade,
pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma
adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos e duradouros que
provoca na organização psíquica”
(LAPLANCHE e PONTALIS, 2001, p. 522).
A violência da escravização e do colonialismo contém o trauma de vários
eventos intensos para o qual a cultura -que recusa o passado escravocrata-
não fornece aparato simbólico e aos quais a própria sociedade é incapaz de
responder adequadamente pois a realidade da desumanização que o
colonialismo impôs ao povo negro (envolvendo o colono e o colonizado) é
algo que está aquém da simbolização.
Em “Além do Princípio do Prazer”, Freud fala de uma barreira protetora que
permite quantidades toleráveis de excitação externa. Se essa barreira sofre
uma espécie de ruptura, eis que resulta no trauma. Numa perspectiva
econômica do psiquismo, o trauma é caracterizado por fluxos de excitações
que excedem o limite do sujeito devido à imprevisibilidade da violência e
assim o aparato psíquico é incapaz de descarregar esse acúmulo de
excitação.
A violência das operações nas favelas cariocas não é um evento isolado na
história do Rio de Janeiro, mas sim um acúmulo de operações violentas que
nos revela um padrão histórico de abuso racial, que envolve não apenas as
assombrações da violência racista, mas também -como Grada Kilomba diz- as
memórias da plantação. Embora a autora use episódios do racismo cotidiano
como elemento principal para análise do trauma colonial, acredito que seja
possível fazer tal articulação via episódios violentos da necropolítica
aplicado nas favelas do Rio.
“A ideia da ‘plantação’ é, além disso, a lembrança de uma história coletiva
de opressão racial, insultos, humilhação e dor, uma história que é animada
através do que chamo de episódios de racismo cotidiano. A ideia de
‘esquecer’ o passado torna-se de fato, inatingível; pois cotidiana e
abruptamente, como um choque alarmante, ficamos presas/os a cenas que
evocam o passado, mas que, na verdade, são parte de um presente irracional.
Essa configuração entre passado e presente é capaz de retratar a
irracionalidade do racismo cotidiano como traumática”. (KILOMBA, p. 213).
O Brasil vive um conjunto de efeitos pós-traumáticos, composto por
dissociações entre o bem e o mal, rupturas de memória remetida ao passado
violento do colonialismo, um passado que não cessa de não passar e se
reatualiza nas incompreensões da política de segurança, no qual matamos uns
aos outros.
Muito se diz sobre um esquecimento da violência que vivemos, devido ao
trato que esse fenômeno recebe das mídias. Como se houvesse uma
desimportância seletiva sobre as situações de assassinatos e mortes
provocados pelas instâncias políticas de segurança ou as facções
criminosas. Isto é, a violência que acontece nas operações policiais acaba
por ser menos ruidosa quando tratada pela mídia, ao ponto de nos conduzir a
um esquecimento, uma banalização, como uma espécie de grande recalcado
coletivo. Um recalcado no sentido de tal esquecimento ser fruto de um
trabalho intenso de fazer esquecer. Por outro lado, acredito que esteja
havendo outro tipo de trabalho sobre o trauma colonial, uma espécie de
recusa da percepção do traumático - voltarei a esse ponto mais adiante. No
terceiro ensaio de “Moisés e o monoteísmo”, Freud postula dois tipos de
consequências que o trauma provoca. São os efeitos positivos pelos quais
repetimos o evento traumático, com fragmentação das imagens e afetos de que
decorrem os pesadelos, os esquecimentos e a invasão de imagens violentas
que, no seu conjunto, atualizam o ocorrido.
“Os efeitos do trauma são de dois tipos, positivos e negativos. Os
primeiros são tentativas de fazer novamente agir o trauma, ou seja, de
lembrar a vivência esquecida ou, melhor ainda, de torná-la real, de
vivenciar de novo uma repetição dela (...). Resumimos essas tentativas sob
o nome de fixações no trauma e de compulsão à repetição. (...) As reações
negativas perseguem a meta contrária: que nada dos traumas esquecidos deve
ser lembrado nem repetido. Podemos resumi-los sob o nome de reações de
defesa. Sua expressão maior são as assim chamadas evitações, que podem se
exacerbar tornando-se inibições e fobias. Também essas reações negativas
contribuem enormemente na criação do caráter; no fundo, são tanto fixação
no trauma como o oposto, mas fixações com tendência contrária” (FREUD, p.
108).
Esse outro efeito negativo são as manifestações de explosões inexplicáveis
de ódio e violência, reações de evitação e indiferença trazendo uma
fraqueza e suspensão no laço com o outro. São efeitos mais difíceis de
localizar pois se transmitem pelo silêncio reproduzido em ato. Isto é,
diante da dor da qual se tem pressa de fugir, ao negar o trauma fazemos
acontecer de novo aquilo que tentamos evitar ao máximo. As violências
praticadas na escravidão, aprimoradas no nazismo e nos porões da ditadura
continuam nas quebradas dos tempos atuais sem manifestar qualquer argumento
ou sentido.
É o que acontece quando vemos que no Brasil, a cada 23 minutos um jovem
negro é morto, um menino de 14 anos é baleado nas costas a caminho da
escola, uma criança de 8 anos é morta durante uma operação policial ou
quando a ação policial que termina com a morte do sequestrador de um ônibus
é considerada uma operação exemplar.
Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um
inocente, diria Clarice.
Partindo da lógica psíquica proponho pensar a recusa da situação traumática
para além da castração. Uma recusa estrutural constitutiva da infância que
passa a ser uma recusa no sentido patológico do narcisismo.
A ameaça da castração opera após um longo período de recusa da ausência do
pênis na mulher, vemos isso nas teorias sexuais infantis nas quais as
crianças elaboram verdades absolutas a respeito da ausência do pênis. Essa
elaboração é um processo penoso mas que se faz necessário para condição
simbólica. No entanto, no texto “Esboço para uma Psicanálise”, Freud vai
dizer que há proposições opostas que ocorrem paralelamente. Por um lado,
recusa-se o fato da percepção da ausência do pênis na mulher e por outro
reconhece-se a ausência do pênis na mulher. Esses dois aspectos existiam
mutuamente na vida psíquica e é o que denomina cisão do eu.
Nesse sentido, Freud nos conta que a recusa pode surgir como uma tentativa
do Eu se desligar da realidade da situação traumática, pois lança-se mão da
recusa como o único recurso defensivo. Em outras palavras, o recalque não
dá conta da situação traumática, há uma dimensão de um transbordamento que
escapa e quando isso ocorre, uma parte do Eu se submete a báscula da
presença e ausência enquanto a outra segue a referência da célula narcísica
não aceitando a dimensão de um terceiro. E então, se instala uma lógica que
não é apenas um conflito, mas também contradição - é e não é ao mesmo
tempo; morte em vida da necropolítica - pois a satisfação pulsional não se
perde, o que abala é a função sintética do Eu.
O portador da diferença é a pulsão de vida mesmo que seja na articulação
prazer- dor. O caráter traumático da recusa é um entrave para o princípio
do prazer, por isso se pensa na pulsão de morte como afirmação da não
diferença. Na tentativa de economizar as ligações para sobrevivência desse
núcleo interrompe-se as consequências do que foi percebido, e o que se
mantém é o arranjo da cisão do Eu, um narcisismo que não pára em pé.
Diante da complexidade da recusa do trauma colonial proponho a ideia do
funcionamento da passagem ao ato como um recurso que o Eu-Brasil se lança.
Como se o Brasil estivesse no campo do traumático, um campo fragmentado.
A passagem ao ato envolve um tipo de ação que não produz uma mensagem em
ato, como no caso do acting out. A passagem ao ato remete aos
processos primários em que há um predomínio da ação sobre o pensamento cuja
tendência dos estímulos produzidos pelos impulsos pulsionais parte para uma
ação de descarga na qual a meta é aliviar o aparelho psíquico da excitação
crescente. Enquanto o processo secundário procura adiar essa descarga,
dando lugar às instâncias de juízo e temporalidade, um tempo que promove
adiamento e planejamento. Processo, este, que inclui o mecanismo do
recalque onde o agir é dizer, o sujeito age e resiste, e dentro disso há
uma cena, um enredo.
Nessa perspectiva Décio Gurfinkel apresenta essa diferenciação dos dois
modelos do agir colocando em termos como o acting out - não estrutural ou agir estrutural. Neste
último, temos um funcionamento da descarga evacuativa em que o agir,
torna-se uma ação sem sentido, já no acting out temos uma
atividade representacional teatral que se atualiza na transferência. Isto
é, o que se diferencia, fundamentalmente, é a presença ou não do trabalho
de simbolização.
Sob esse ponto Décio diz:
“(...) Agir é dizer, seja na teatralização histérica, seja nos ínfimos atos
obsessivos, seja na cena analítica. O acting out não estrutural e
desencadeado pelo aumento de temperatura da transferência é, via de regra,
uma dramatização que diz de outro modo o que quer “sair da linha”
associativa verbal, reagindo à regra fundamental proposta pela/o analista
como um “não” oriundo da resistência. (...) É fundamental distinguir este
falar por gestos do agir estrutural que é, no limite, pura ação sem
sentido”. (GURFINKEL, 2006, p. 184).
A violência do agir (da passagem ao ato), caso típico de certas formas de
suicídio ou de formas de violência nas quais não se trata da afirmação de
um sujeito ou de uma produção de mensagem em ato, produz uma violência que
não só se direciona a personagens específicos, mas também uma espécie de
ódio contra o simbólico. Ou seja, quando há um poder sobre matar a
população negra e pobre estou me referindo a violência tipicamente
produzida para matar a história e avessa ao reconhecimento da alteridade,
da diferença.
A temporalidade está comprometida pois me parece que estamos dando pulos
sem considerar o enredo da história brasileira. Os eventos que aconteceram
no passado são vivenciados como se estivesse ocorrendo no presente. O
passado agride o presente. Um presente assombrado pelo passado invasivo da
escravidão, como se a escravidão fosse uma história assombrada que foi
enterrada indevidamente.
Quando vemos uma taxa exponencial de homicídios causados pelos conflitos
policiais, é evidente que a ação vem antes do planejamento. Pondo em
prática o fazer morrer em vida mbembiano. É como se fosse a imbricação da
pulsão de morte, na qual a simbolização está em falência e o que nos resta
é a ação sem sentido.
Diante dessa confusão colonial a noção de temporalidade pode nos ajudar a
pensar possíveis saídas para esses atos de violência.
Na clínica, vimos que a temporalidade favorece ao sujeito se apropriar do
que vive, colocando-o em relação entre as capacidades elaborativas e os
processos de subjetivação. Para tanto, pensar a noção de temporalidade
envolve também pensar nas instâncias dos ideais, pois esse processo implica
um adiamento da satisfação para encontrar o objeto de desejo. E é no Édipo
que o sujeito se vê diante das interdições, embora haja outros caminhos que
são possíveis, uma renúncia pode ser feita com a promessa de uma satisfação
futura. E é nos ideais da cultura que se oferecem pistas para esse rumo,
pois é na experiência com o outro que se fornece memórias como também
espaços psíquicos para a constituição dessa memória. Um Eu que manuseia
essas memórias também é fruto dessa construção.
A crise social brasileira (e mundial) em que estamos vivendo contrasta as
percepções em torno dos imaginários de cordialidades do país tropical e
retira, ciente do curto-circuito, o que resta da proteção da já desencapada
violência instituída no território brasileiro. Somos lançados em um mundo
difícil de estar pois nos tira do conforto da ignorância que cobre com
hipocrisia os danos causados pela escravidão, do colonialismo e que
infelizmente tecem o nosso cotidiano, no qual insistimos em desviar o
olhar.
Disso, é pela transmissão da história, dos ideais da cultura que podemos
tecer uma rede de sentidos, deslocamentos e produções simbólicas para uma
coletividade capaz de recorrer à transmissão pelos antepassados. Coloca-se
a possibilidade de um vivido se inserir na história e se acomodar como algo
que aconteceu no passado, podendo construir uma memória apta a passar por
transformações e enfrentamentos do que foi a brutalidade colonial e as
consequências da ditadura. Pois quem pensa, age, sente em angústia são
todos, cada um na sua perspectiva, mas em um coletivo.
Referências bibliográficas:
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morte.
Trad. Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018.
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2015.
[1]
O texto a seguir, com pequenas modificações, foi preparado e
apresentado em 2019 como trabalho final do curso Psicopatologia
Psicanalítica e Clínica Contemporânea do Departamento de
Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2]
Psicanalista e Acompanhante terapêutica. Graduada em Psicologia
pela PUC-SP, ex-aluna do Instituto Amma Psique e Negritude e do
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
Integrante da Equipe Andarilhas no Centro de Reabilitação e
Hospital Dia do IPQ do Hospital das Clínicas - SP e membro do Grupo
Foz- Núcleo de Pesquisa e Formação em Práticas do Cuidado.
[3]
Atualizando para o ano de 2020, o número de homicídios cometidos
pela força policial aumentou, batendo um novo recorde. Foram 741
vítimas nos cinco primeiros meses de 2020, o que equivale a quase
cinco pessoas mortas diariamente no RJ por agentes do estado.