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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    61 Novembro 2021  
 
 
NOTÍCIAS DOS CURSOS

UMA REFLEXÃO PSICANALÍTICA ACERCA DO TRAUMA COLONIAL [1]



CAMILA MAKHOUL[2]

E quando a dor vem encostar-se a nós, enquanto um olho chora
o outro espia o tempo procurando a solução
Conceição Evaristo



A história do Brasil se pauta na violência. No verbo violentar. O Brasil nasce sob o ato e o signo da violência. Herdeiro da maior sociedade escravista moderna, o estado-nação brasileiro é recheado de contradições violentas, entendidas como estágios necessários para o que veio a ser.

No livro Brasil: uma biografia as autoras Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling narram a história do Brasil a partir de uma perspectiva biográfica que não exclui as ambiguidades, contradições, avanços e recuos de toda história. Elas apontam possíveis armadilhas no modo de narrar a história do Brasil por professores nas escolas, que demonstram uma maneira engessada e determinista de enxergar os acontecimentos.

Ao relatar sobre o sistema escravocrata e a naturalização da violência, elas afirmam que a montagem do escravismo moderno é articulada entre a criação de colônias e seu funcionamento sob formas de grandes unidades produtoras voltadas para o mercado externo. A monocultura em larga escala exigia uma quantidade grande de trabalhadores que deveriam se submeter a uma rotina espinhosa, sem que houvesse qualquer tipo de troca entre quem dava as ordens e quem as recebia. Por esse motivo essa relação, denominada como escravidão, é a mão de obra compulsória caracterizada pela exigência de trabalhadores alienados de sua origem, liberdade e produção.

A ideologia que se confrontava nessa época era o trabalho enquanto um fardo a ser cumprido, uma pena para ambos os lados: senhores e escravizados. Os discursos dominantes (da Igreja e dos proprietários de terra) entendiam o trabalho árduo como uma atividade disciplinadora e civilizadora. Havia inclusive manuais que ensinavam didaticamente como transformar o escravizado em um trabalhador obediente, verdadeiros manuais de maus tratos pedagógicos.

“A atividade produtiva, repetitiva, cansativa já em si violenta. Punições públicas, tronco exemplar, utilização de açoite como forma de pena e humilhação, os ganchos e pegas no pescoço para evitar as fugas nas matas, as máscaras de flandres para inibir o hábito de comer terra e assim provocar o suicídio lento e doloroso, as correntes prendendo ao chão; construiu-se, no Brasil, uma arqueologia da violência que tinha por fito constituir a figura do senhor como autoridade máxima, cujas marcas, e a própria lei, ficavam registradas no corpo escravo. Quanto ao cativo, logo depois da travessia tinha que aprender a negociar e agenciar a arte de sobreviver a submissão ao senhor” (SCHWARCZ, STARLING, 2015, p. 92).

O sistema do escravismo moderno se instalou com o exercício sofisticado da violência que permanece até hoje, tanto pelos costumes e palavras como pela própria ação política. Temos como exemplo simbólico a nossa arquitetura dos prédios e casas. Se a casa-grande delimita a fronteira entre área social e a de serviços, a mesma arquitetura simbólica permanece presente nas casas e edifícios, onde o elevador de serviço, usado não só para carga, mas também e principalmente para os empregados. Quanto a ação política, uso como exemplo a polícia e suas operações de segurança como uma continuidade da violência instituída pelo escravismo.

No estado do Rio de Janeiro, o Instituto de Segurança Pública registrou 1249 mortes decorrentes de ação policial de janeiro a setembro de 2019, um aumento de 16% em relação a 2018 [3]. De acordo com as pesquisas do Laboratório de Análise da Violência, especialistas sugerem que, quando a proporção de mortos pela polícia excede 10% do total de mortes, há fortes indícios de execuções e uso abusivo de força.

A polícia foi criada para cuidar de uma mercadoria de uma forma específica. Nos campos rurais havia muitas fugas de escravizados, as quais nem sempre geraram a formação de quilombos. A fuga individual ou em grupos questionava os limites de dominação, pois o escravizado que fugia afrontava o princípio da propriedade. E assim, logo cedo percebeu que as punições aos fugitivos não bastavam, era preciso criar outros mecanismos de controle e manutenção da ordem escravista, a punição pública.

“Essa crença no castigo exemplar inclui diversas modalidades de pena: mutilação do corpo escravo infrator, para que toda a sociedade, em qualquer ocasião, ao ver a marca, ficasse ciente do crime por ele cometido; suplício no pelourinho - coluna de pedra encimada com as armas e o brasão real, símbolo da fidelidade ao rei, erguida sempre na praça principal da vila, e em cujos lados pediam argolas onde costumavam ser acorrentados e açoitados os escravos (...) “(SCHWARCZ, STARLING, 2015, p. 103).

No entanto, tudo isso ainda não era o suficiente. As autoridades coloniais precisavam avançar nas buscas daqueles que continuavam fugindo. E assim desenvolveu-se uma força especializada na perseguição do escravizado fugido, uma espécie de tropa profissional autorizada para captura de negros fugidos nos matos e nos quilombos, com ordem para matar, incendiar e destruir os pontos de resistência dos povos africanos. Nesse contexto, surge a figura do capitão do mato, muitas vezes ex-escravizados que diziam conhecer melhor do que ninguém o comportamento do fugitivo.

Um capitão do mato recebia sua remuneração diretamente do proprietário de escravizados que o contratara. O valor acordado era regulado pela distância entre o local da fuga e o da captura: quanto maior a distância, maior o valor. E o pagamento só acontecia depois da captura daquele que fugiu, vivo ou morto com a cabeça degolada dentro do saco de couro que o capitão carregava consigo.

No livro O medo na cidade do Rio de Janeiro, a autora Vera Malaguti Batista escreve sobre o surgimento da polícia no Brasil, relacionando-o com a manutenção da escravidão que marca a configuração de toda sociedade brasileira.

Nessa pesquisa, Vera busca focar na difusão do medo do caos e da desordem para aplicar estratégias de disciplina da população empobrecida através da hegemonia conservadora. A partir das investigações históricas, a autora analisa os discursos sobre segurança no Rio de Janeiro desde a época do Império até a década de 90 do século XX, comparando o medo do levante Malê de 1835 com o medo branco dos arrastões da década de 90.

Paralelamente, a autora nos apresenta, via discurso político, jurídico-penal, médico e da imprensa, o medo generalizado no Império - de tudo o que estava acontecendo e do que estava por vir em termos de mudanças no quadro da escravidão no país. A polícia exercia o controle nas cidades, no sentido de estancar as rebeliões que se estabeleceram, como a Revolta dos Malês, na Bahia, ou a Cabanagem, no Pará. Esses discursos abriram caminho para a política de segurança em que os inimigos construídos na ficção do medo eram desumanizados e assim criou-se uma violência naturalizada que se expande em diversos tipos de consequências como a brutalização e criminalização da pobreza e do povo brasileiro.

“Digamos então que esses discursos impressos na década de 30 do século XIX proclamam por soluções para os medos tangíveis; propõem uma certa ordem que passa por classificações e hierarquizações, divide em raças e cores, exige ritmos e rituais nas movimentações pela cidade, investe alguns de boas qualidades ao mesmo tempo em que bestializa outros. A segurança neste mundo só pode ser exercida por uma polícia que inspire confiança a uns e infunda terror a outros. A ênfase neste conceito de polícia e de segurança produziu políticas concretas de controle social, surpreendentemente presentes e naturalizadas no Brasil contemporâneo” (MALAGUTI BATISTA, 2003, p. 193-194).

A polícia no Brasil foi criada para fazer esse controle, para tomar conta dessa população. É o capitão do mato contemporâneo. Como dito anteriormente, o capitão do mato tinha a função de perseguir e entregar os fugitivos aos seus donos. Essa é a herança persecutória pautada nas questões raciais, de gênero e de território que a polícia atua. A polícia não toca o terror nos espaços de elite. Ela não invade o território da elite branca. É a humanidade do subalterno que invade e destrói, no qual não é evidente qual é a norma e a lei. A polícia vai ser sempre avaliada depois da ação. Primeiro mata e depois pergunta quem é. E assim se concretiza a chamada necropolítica.

Necropolítica é um conceito desenvolvido pelo filósofo, historiador, teórico político e professor universitário camaronês Achille Mbembe que escreveu um ensaio questionando os limites da soberania quando o Estado escolhe quem deve viver e quem deve morrer. Ou seja, é o exercício de controle sobre mortalidade e definição da vida como a implantação e manifestação do poder.

A necropolítica portanto é a política da morte adaptada pelo Estado. Ela não é um episódio, não é um fenômeno que foge a uma regra. Ela é a regra. E Mbembe elabora esse conceito à luz do estado de exceção e do estado de terror. Para explorar tal ideia o autor usa o conceito de biopolítica do Michel Foucault e para isso ele inicia suas ideias com o entendimento de que a modernidade esteve na origem de vários conceitos de soberania e, portanto, da biopolítica. A partir do conceito foucaultiano ele diz que a materialização dessa política se dá pela expressão da morte.

E isso vai ter um desdobramento nas sociedades contemporâneas. A gente vê hoje um Estado que adota a política da morte, o uso ilegítimo da força, o extermínio e a política de inimizade. Que se divide entre amigo e inimigo. Não há nenhum tipo de serviço de inteligência, de combate à criminalidade. O que se tem é a perseguição daquele considerado perigoso. A necropolítica reúne esses elementos, que são reflexíveis e desdobrados no que a gente pode perceber no nosso cotidiano, na nossa chamada política de segurança.

Para entender melhor esse desdobramento, Mbembe diz sobre uma instrumentalização de conduzir as pessoas a morte e a eliminação dos inimigos do estado que vem desde os tempos do imperialismo colonial, do período da escravidão.

“Qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisar tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica. Em muitos aspectos, a própria estrutura do sistema de plantation e suas consequências manifesta a figura emblemática e paradoxal do estado de exceção” (MBEMBE, 2003, p. 27)

Essa figura emblemática e paradoxal do estado de exceção é o que o sistema de plantação faz com a figura do escravizado, o transforma em uma “sombra personificada” e o coloca sob uma condição que implica em três perdas. Perda de um lar, perda de direitos sobre seu corpo e perda de estatuto político. Isto equivale a uma dominação absoluta, uma alienação de nascimento e uma expulsão máxima da humanidade. Enquanto instrumento de trabalho, o escravizado tem um preço, enquanto propriedade, ele tem um valor. O sujeito é mantido vivo, mas em um estado mutilado, em um mundo fantasmagórico de horrores e crueldade. Traz-se à tona para a discussão o espetáculo dos sofrimentos infligidos ao corpo do escravizado. A violência praticada contra o escravizado, capricho ou ato destruidor, tem o objetivo de instigar o terror. A vida do escravizado em muitos aspectos é uma forma de morte em vida. Há, portanto, uma desigualdade do poder sobre a vida: a condição de escravo produz uma contradição entre a liberdade de propriedade e a liberdade da pessoa; uma relação desigual é estabelecida ao mesmo tempo em que se afirma uma desigualdade do poder sobre a vida. Este assume a forma do comércio na qual a humanidade de uma pessoa é destruída ao ponto em que se torna possível dizer que a vida do escravizado é propriedade do senhor, o tornando como sombra personificada.

O escravizado é tratado como se não existisse, exceto como uma ferramenta e instrumento de produção. No entanto, apesar disso, ele ou ela são capazes de extrair de quase qualquer objeto uma representação e assim estilizá-lo. Ou seja, o escravizado é tido como um instrumento que fala e é capaz de se comunicar via corpo e música.

Em outros termos, o que se articula aqui é a relação entre a vida e a morte, a política de crueldade e os símbolos do abuso que tendem a se embaralhar no sistema de plantation. E o principal elemento dessa formação de terror é o entrelaçamento entre biopoder, o estado de exceção e estado de sítio. E é claro que a raça é o ingrediente crucial para esse encadeamento.

Por isso, Mbembe diz que o que acontece na Segunda Guerra Mundial é a extensão dos métodos anteriormente usados na época colonial. Entretanto, o que importa para o autor é que a colônia representa um lugar em que a soberania consiste principalmente no exercício de um poder à margem da lei e no qual a paz tende a assumir uma espécie de guerra sem fim. Desse modo, as colônias eram governadas pela ausência de lei originada da negação racial de qualquer vínculo entre o colono e o colonizado. Aos olhos do colono a vida do outro selvagem é apenas uma vida animal passível de ser destruída sem ser considerado um ato criminoso. Dessa forma, a guerra colonial tem suas especificidades pois não é uma guerra com leis, é uma guerra caracterizada na sua expressão máxima de hostilidade que coloca o colono face um inimigo absoluto, o inumano.

Do ponto de vista jurídico não somos mais colônias, apesar de nunca termos deixado de ser no ponto de vista político. A colônia tinha uma expropriação do corpo, o corpo escravizado, um corpo moeda, objeto. O que permanece é o corpo que é matável. Não é mais estatuto jurídico da escravidão, mas digamos que essa escravização se dá de outras formas. A partir de imaginários, de políticas que definem o normal e o desviante, o bem e o mal, o belo e o feio. A gente vai vendo essas hierarquias se mantendo, o fantasma da escravidão e da colônia é uma presença muito forte, inclusive orienta políticas contemporâneas.

Pensando no que aconteceu na favela da Maré no Rio de Janeiro em 2019: foram 16 crianças baleadas e cinco morreram neste mesmo ano. No ano de 2020 a favela do Jacarezinho presenciou a ação mais letal da história carioca, foram 28 mortos em decorrência da operação policial civil. O número de policiais mortos no Rio de Janeiro é uma coisa absurda. Eles também estão morrendo. Quando pegamos os índices, por exemplo, de morte de jovens brancos de classe média, em cidades como São Paulo, vão aparecer acidentes de carros e fatalidades. Mas a incidência de mortes por policiais se dá com o jovem negro da periferia. Isso quer dizer que há uma incidência de morte em que o Estado é o agente, o sujeito.

Em paralelo a isso, Mbembe recorre a Franz Fanon para explicar a lógica do necropoder dizendo que há uma espacialização da ocupação colonial na qual condiz fundamentalmente na divisão do espaço em compartimentos (periferia - centro). Um espaço que envolve a definição de limites e fronteiras internas representadas por quarteis e delegacias de polícia, pela linguagem da força e violência operando no poder de fazer morrer:

“A cidade do colonizado (...) é um lugar de má fama, povoado por homens de má reputação. Lá eles nascem, pouco importa onde ou como; morrem lá, não importa onde ou como. É um mundo sem espaço; os homens vivem uns sobre os outros. A cidade do colonizado é uma cidade com fome, fome de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma vila agachada, uma cidade ajoelhada” (FANON, 1991 apud MBEMBE, 2003, p.41).

Não precisamos ir tão longe para presenciar tal funcionamento. Os morros e o asfalto na zona sul do Rio de Janeiro, o centro e as periferias da metrópole paulistana, o mangue e a orla na cidade à beira-mar são traduções territorialmente distintas da desigualdade de oportunidades urbanas que define nossas cidades. E é nessa condição da soberania vertical e ocupação colonial que conduzem a proliferação dos espaços de violência concretizados no processo de militarização das favelas do Rio de Janeiro, especificamente.

A dissertação de Marielle Franco, mais tarde publicada em forma de livro, mostra como a implementação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) constitui-se como uma política de segurança pautada em um modelo de controle e ocupação de território por armas oficiais.

Segundo ela, a ocupação das UPPs responde ao terror causado pelas incursões policiais e não responde ao poder das armas territoriais. Isto é, o projeto da diminuição da força armada dos grupos criminosos é arquitetado por uma política que tira desses grupos o poder da circulação de armas e passa para as mãos dos policiais. E então pode-se dizer que há um processo de militarização que substitui a exibição das armas, antes nas mãos dos grupos ditos criminosos e hoje nas mãos do braço armado e legal do Estado que possui o absoluto uso da força autorizado pela política de segurança.

Para tanto, o que incorpora em tal política é o discurso de guerra contra as drogas como um projeto de iniciativa de levar “a paz” aos territórios, antes dominados pela “guerra”, sobretudo por meio de recursos ideológicos, usados como principal ferramenta para conquistar a opinião pública e o senso comum, a fim de sustentar as contradições desta política.

Lembrando o que Mbembe diz sobre a ocupação colonial como uma guerra sem leis, Marielle ainda acrescenta que nesse processo da ocupação policial nas favelas não há uma “guerra” a se evidenciar. “O que de fato, existe, ou está indicado, é uma política de exclusão e punição dos pobres, escondida por trás do projeto das UPPs”. (p. 20)

Um dos pontos importantes que a autora traz são as constantes denúncias de violação e abusos nas UPPs: “são desacatos, xingamentos, utilização de chaves- mestras sem mandado de busca e apreensão, agressões, abuso de autoridade” (p. 99).

Marielle retoma que, em 2014, rememorou-se a ditadura imposta pelo golpe de 64. E aqui um exemplo vivo de que o passado se faz presente: na época da ditadura havia a “Medalha de Bronze do Pacificador”, entregue aos oficiais que se destacaram no combate aos guerrilheiros, enquanto que nas ações militarizadas nas favelas cariocas utiliza-se o veículo da CORE chamado de “paci fica dor”. Veículo conhecido pelos moradores como Caveirão. E desse modo, manifesta-se a contradição de um modelo chamado como pacificador mas que na sua essência é militarizado, tanto em documentos oficiais como nas práticas na sociedade, uma organização interna que nada se distanciou da ditadura militar e diria ainda do sistema colonial - o Duque de Caxias é, até hoje, o grande pacificador brasileiro.

Diante desse cenário horroroso proponho a ideia de que o Brasil sofre de um trauma não elaborado: o trauma colonial.

Segundo o Vocabulário de psicanálise de Laplanche e Pontalis, o trauma é definido como um “ acontecimento na vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos e duradouros que provoca na organização psíquica” (LAPLANCHE e PONTALIS, 2001, p. 522).

A violência da escravização e do colonialismo contém o trauma de vários eventos intensos para o qual a cultura -que recusa o passado escravocrata- não fornece aparato simbólico e aos quais a própria sociedade é incapaz de responder adequadamente pois a realidade da desumanização que o colonialismo impôs ao povo negro (envolvendo o colono e o colonizado) é algo que está aquém da simbolização.

Em “Além do Princípio do Prazer”, Freud fala de uma barreira protetora que permite quantidades toleráveis de excitação externa. Se essa barreira sofre uma espécie de ruptura, eis que resulta no trauma. Numa perspectiva econômica do psiquismo, o trauma é caracterizado por fluxos de excitações que excedem o limite do sujeito devido à imprevisibilidade da violência e assim o aparato psíquico é incapaz de descarregar esse acúmulo de excitação.

A violência das operações nas favelas cariocas não é um evento isolado na história do Rio de Janeiro, mas sim um acúmulo de operações violentas que nos revela um padrão histórico de abuso racial, que envolve não apenas as assombrações da violência racista, mas também -como Grada Kilomba diz- as memórias da plantação. Embora a autora use episódios do racismo cotidiano como elemento principal para análise do trauma colonial, acredito que seja possível fazer tal articulação via episódios violentos da necropolítica aplicado nas favelas do Rio.

“A ideia da ‘plantação’ é, além disso, a lembrança de uma história coletiva de opressão racial, insultos, humilhação e dor, uma história que é animada através do que chamo de episódios de racismo cotidiano. A ideia de ‘esquecer’ o passado torna-se de fato, inatingível; pois cotidiana e abruptamente, como um choque alarmante, ficamos presas/os a cenas que evocam o passado, mas que, na verdade, são parte de um presente irracional. Essa configuração entre passado e presente é capaz de retratar a irracionalidade do racismo cotidiano como traumática”. (KILOMBA, p. 213).

O Brasil vive um conjunto de efeitos pós-traumáticos, composto por dissociações entre o bem e o mal, rupturas de memória remetida ao passado violento do colonialismo, um passado que não cessa de não passar e se reatualiza nas incompreensões da política de segurança, no qual matamos uns aos outros.

Muito se diz sobre um esquecimento da violência que vivemos, devido ao trato que esse fenômeno recebe das mídias. Como se houvesse uma desimportância seletiva sobre as situações de assassinatos e mortes provocados pelas instâncias políticas de segurança ou as facções criminosas. Isto é, a violência que acontece nas operações policiais acaba por ser menos ruidosa quando tratada pela mídia, ao ponto de nos conduzir a um esquecimento, uma banalização, como uma espécie de grande recalcado coletivo. Um recalcado no sentido de tal esquecimento ser fruto de um trabalho intenso de fazer esquecer. Por outro lado, acredito que esteja havendo outro tipo de trabalho sobre o trauma colonial, uma espécie de recusa da percepção do traumático - voltarei a esse ponto mais adiante. No terceiro ensaio de “Moisés e o monoteísmo”, Freud postula dois tipos de consequências que o trauma provoca. São os efeitos positivos pelos quais repetimos o evento traumático, com fragmentação das imagens e afetos de que decorrem os pesadelos, os esquecimentos e a invasão de imagens violentas que, no seu conjunto, atualizam o ocorrido.

“Os efeitos do trauma são de dois tipos, positivos e negativos. Os primeiros são tentativas de fazer novamente agir o trauma, ou seja, de lembrar a vivência esquecida ou, melhor ainda, de torná-la real, de vivenciar de novo uma repetição dela (...). Resumimos essas tentativas sob o nome de fixações no trauma e de compulsão à repetição. (...) As reações negativas perseguem a meta contrária: que nada dos traumas esquecidos deve ser lembrado nem repetido. Podemos resumi-los sob o nome de reações de defesa. Sua expressão maior são as assim chamadas evitações, que podem se exacerbar tornando-se inibições e fobias. Também essas reações negativas contribuem enormemente na criação do caráter; no fundo, são tanto fixação no trauma como o oposto, mas fixações com tendência contrária” (FREUD, p. 108).

Esse outro efeito negativo são as manifestações de explosões inexplicáveis de ódio e violência, reações de evitação e indiferença trazendo uma fraqueza e suspensão no laço com o outro. São efeitos mais difíceis de localizar pois se transmitem pelo silêncio reproduzido em ato. Isto é, diante da dor da qual se tem pressa de fugir, ao negar o trauma fazemos acontecer de novo aquilo que tentamos evitar ao máximo. As violências praticadas na escravidão, aprimoradas no nazismo e nos porões da ditadura continuam nas quebradas dos tempos atuais sem manifestar qualquer argumento ou sentido.

É o que acontece quando vemos que no Brasil, a cada 23 minutos um jovem negro é morto, um menino de 14 anos é baleado nas costas a caminho da escola, uma criança de 8 anos é morta durante uma operação policial ou quando a ação policial que termina com a morte do sequestrador de um ônibus é considerada uma operação exemplar. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente, diria Clarice.

Partindo da lógica psíquica proponho pensar a recusa da situação traumática para além da castração. Uma recusa estrutural constitutiva da infância que passa a ser uma recusa no sentido patológico do narcisismo.

A ameaça da castração opera após um longo período de recusa da ausência do pênis na mulher, vemos isso nas teorias sexuais infantis nas quais as crianças elaboram verdades absolutas a respeito da ausência do pênis. Essa elaboração é um processo penoso mas que se faz necessário para condição simbólica. No entanto, no texto “Esboço para uma Psicanálise”, Freud vai dizer que há proposições opostas que ocorrem paralelamente. Por um lado, recusa-se o fato da percepção da ausência do pênis na mulher e por outro reconhece-se a ausência do pênis na mulher. Esses dois aspectos existiam mutuamente na vida psíquica e é o que denomina cisão do eu.

Nesse sentido, Freud nos conta que a recusa pode surgir como uma tentativa do Eu se desligar da realidade da situação traumática, pois lança-se mão da recusa como o único recurso defensivo. Em outras palavras, o recalque não dá conta da situação traumática, há uma dimensão de um transbordamento que escapa e quando isso ocorre, uma parte do Eu se submete a báscula da presença e ausência enquanto a outra segue a referência da célula narcísica não aceitando a dimensão de um terceiro. E então, se instala uma lógica que não é apenas um conflito, mas também contradição - é e não é ao mesmo tempo; morte em vida da necropolítica - pois a satisfação pulsional não se perde, o que abala é a função sintética do Eu.

O portador da diferença é a pulsão de vida mesmo que seja na articulação prazer- dor. O caráter traumático da recusa é um entrave para o princípio do prazer, por isso se pensa na pulsão de morte como afirmação da não diferença. Na tentativa de economizar as ligações para sobrevivência desse núcleo interrompe-se as consequências do que foi percebido, e o que se mantém é o arranjo da cisão do Eu, um narcisismo que não pára em pé.

Diante da complexidade da recusa do trauma colonial proponho a ideia do funcionamento da passagem ao ato como um recurso que o Eu-Brasil se lança. Como se o Brasil estivesse no campo do traumático, um campo fragmentado.

A passagem ao ato envolve um tipo de ação que não produz uma mensagem em ato, como no caso do acting out. A passagem ao ato remete aos processos primários em que há um predomínio da ação sobre o pensamento cuja tendência dos estímulos produzidos pelos impulsos pulsionais parte para uma ação de descarga na qual a meta é aliviar o aparelho psíquico da excitação crescente. Enquanto o processo secundário procura adiar essa descarga, dando lugar às instâncias de juízo e temporalidade, um tempo que promove adiamento e planejamento. Processo, este, que inclui o mecanismo do recalque onde o agir é dizer, o sujeito age e resiste, e dentro disso há uma cena, um enredo.

Nessa perspectiva Décio Gurfinkel apresenta essa diferenciação dos dois modelos do agir colocando em termos como o acting out - não estrutural ou agir estrutural. Neste último, temos um funcionamento da descarga evacuativa em que o agir, torna-se uma ação sem sentido, já no acting out temos uma atividade representacional teatral que se atualiza na transferência. Isto é, o que se diferencia, fundamentalmente, é a presença ou não do trabalho de simbolização.

Sob esse ponto Décio diz:

“(...) Agir é dizer, seja na teatralização histérica, seja nos ínfimos atos obsessivos, seja na cena analítica. O acting out não estrutural e desencadeado pelo aumento de temperatura da transferência é, via de regra, uma dramatização que diz de outro modo o que quer “sair da linha” associativa verbal, reagindo à regra fundamental proposta pela/o analista como um “não” oriundo da resistência. (...) É fundamental distinguir este falar por gestos do agir estrutural que é, no limite, pura ação sem sentido”. (GURFINKEL, 2006, p. 184).

A violência do agir (da passagem ao ato), caso típico de certas formas de suicídio ou de formas de violência nas quais não se trata da afirmação de um sujeito ou de uma produção de mensagem em ato, produz uma violência que não só se direciona a personagens específicos, mas também uma espécie de ódio contra o simbólico. Ou seja, quando há um poder sobre matar a população negra e pobre estou me referindo a violência tipicamente produzida para matar a história e avessa ao reconhecimento da alteridade, da diferença.

A temporalidade está comprometida pois me parece que estamos dando pulos sem considerar o enredo da história brasileira. Os eventos que aconteceram no passado são vivenciados como se estivesse ocorrendo no presente. O passado agride o presente. Um presente assombrado pelo passado invasivo da escravidão, como se a escravidão fosse uma história assombrada que foi enterrada indevidamente.

Quando vemos uma taxa exponencial de homicídios causados pelos conflitos policiais, é evidente que a ação vem antes do planejamento. Pondo em prática o fazer morrer em vida mbembiano. É como se fosse a imbricação da pulsão de morte, na qual a simbolização está em falência e o que nos resta é a ação sem sentido.

Diante dessa confusão colonial a noção de temporalidade pode nos ajudar a pensar possíveis saídas para esses atos de violência.

Na clínica, vimos que a temporalidade favorece ao sujeito se apropriar do que vive, colocando-o em relação entre as capacidades elaborativas e os processos de subjetivação. Para tanto, pensar a noção de temporalidade envolve também pensar nas instâncias dos ideais, pois esse processo implica um adiamento da satisfação para encontrar o objeto de desejo. E é no Édipo que o sujeito se vê diante das interdições, embora haja outros caminhos que são possíveis, uma renúncia pode ser feita com a promessa de uma satisfação futura. E é nos ideais da cultura que se oferecem pistas para esse rumo, pois é na experiência com o outro que se fornece memórias como também espaços psíquicos para a constituição dessa memória. Um Eu que manuseia essas memórias também é fruto dessa construção.

A crise social brasileira (e mundial) em que estamos vivendo contrasta as percepções em torno dos imaginários de cordialidades do país tropical e retira, ciente do curto-circuito, o que resta da proteção da já desencapada violência instituída no território brasileiro. Somos lançados em um mundo difícil de estar pois nos tira do conforto da ignorância que cobre com hipocrisia os danos causados pela escravidão, do colonialismo e que infelizmente tecem o nosso cotidiano, no qual insistimos em desviar o olhar.

Disso, é pela transmissão da história, dos ideais da cultura que podemos tecer uma rede de sentidos, deslocamentos e produções simbólicas para uma coletividade capaz de recorrer à transmissão pelos antepassados. Coloca-se a possibilidade de um vivido se inserir na história e se acomodar como algo que aconteceu no passado, podendo construir uma memória apta a passar por transformações e enfrentamentos do que foi a brutalidade colonial e as consequências da ditadura. Pois quem pensa, age, sente em angústia são todos, cada um na sua perspectiva, mas em um coletivo.

Referências bibliográficas:

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Trad. Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018.

DUNKER, Christian. Somos todos vândalos? in Reinvenção da intimidade - políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

FRANCO, Marielle. UPP - A redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. São Paulo: N-1 edições, 2018.

FREUD, Sigmund. Moisés e o monoteísmo, Compêndio de psicanálise e outros textos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

GURFINKEL, Decio. A clínica do agir. In VOLICH, Rubens M., FERRAZ, Flávio C. e RANÑA, Wagner (orgs.). Psicossoma IV - Corpo, história e pensamento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008.

GURFINKEL, Decio. Teatro de Transferência e clínica do agir. In FUKS, Lucia B., FERRAZ Flávio C. (orgs). O sintoma e suas faces. São Paulo: Escuta/ Fapesp, 2006.

KEHL, Maria Rita. Temporalidade e experiência. in O tempo e o cão: atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2015.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação - episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

LAPLANCHE, Jean e PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário da psicanálise. Trad. Pedro Tamen. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

REVISTA RADIS. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, n. 205, out 2019.

SCHWARCZ, Lilia M., STARLING, Heloisa M. Toma lá dá cá: o sistema escravocrata e a naturalização da violência. in Brasil: uma biografia - 1 ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2015.



[1] O texto a seguir, com pequenas modificações, foi preparado e apresentado em 2019 como trabalho final do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[2] Psicanalista e Acompanhante terapêutica. Graduada em Psicologia pela PUC-SP, ex-aluna do Instituto Amma Psique e Negritude e do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Integrante da Equipe Andarilhas no Centro de Reabilitação e Hospital Dia do IPQ do Hospital das Clínicas - SP e membro do Grupo Foz- Núcleo de Pesquisa e Formação em Práticas do Cuidado.

[3] Atualizando para o ano de 2020, o número de homicídios cometidos pela força policial aumentou, batendo um novo recorde. Foram 741 vítimas nos cinco primeiros meses de 2020, o que equivale a quase cinco pessoas mortas diariamente no RJ por agentes do estado.




 
 
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