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JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS |
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61 |
Novembro 2021 |
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O MUNDO, HOJE
VIRILISMO (FRAGMENTO) [1]
ACHILLE MBEMBE [2]
Não é possível examinar a forma como o poder e a economia trabalham
profundamente os corpos e põem à prova os nervos do sujeito sem ao mesmo
tempo operar uma crítica do falo, entendido aqui como o emblema por
excelência do patriarcado. Não é uma questão de reduzir um ao outro.
Trata-se de mostrar que o falo não é apenas um lugar abstrato, um mero
significante ou um signo distintivo – o objeto destacável, divisível e
disponível para a retranscrição simbólica. Obviamente, o falo não se reduz
ao pênis como tal, mas tampouco é o órgão sem corpo, tão caro a certa
tradição psicanalítica ocidental.
Neste capítulo, falaremos dele, portanto, como aquilo cujo sentido
inerente é se manifestar, em sua expressão mais pura, como turgidez,
impulso e intrusão. Não se pode falar de impulso, turgidez e intrusão sem
restituir ao falo, se não a fisicalidade, pelo menos a carne viva, a
capacidade de testemunhar os domínios do sensível, de experimentar todo
tipo de sensações, vibrações e estremecimentos (uma cor, um aroma, um
toque, um peso, um cheiro e assim por diante).
O falo e o patriarcado representam, aliás, os dois lados de um mesmo
espelho, o de um poder que devemos chamar de orgástico. Trata-se de um
poder habitado por um espírito-cão, um espírito-porco e um espírito-pulha.
Nisso, ele procura constantemente instituir, entre corporeidade (o fato
intensivo do corpo e dos nervos), sexualidade e matéria, vínculos
particularmente saturados de tensões de todo tipo. E a dominação
escravagista e a servidão colonial foram ambas expressões históricas disso.
Elas foram, do começo ao fim, uma dominação genital. Eram animadas pelo
desejo de uma fruição absoluta na qual o sujeito dominado, qualquer que
fosse seu gênero, devia ser transformado em objeto sexual. No exercício de
tal poder, a questão era experimentar um certo tipo de orgasmo que não só
afetava o corpo e seus diversos órgãos, mas que era o equivalente a um
abalo dos sentidos.
Abalo dos sentidos
Tanto sob o regime da plantação quanto na colônia, de fato, imaginários e
práticas sexuais derivados principalmente do Ocidente contribuíram para
forjar uma dominação de natureza libidinal da qual os corpos humanos
racializados eram o alvo privilegiado. Essa forma de exercer um poder sem
controle aparente envolvia um dispositivo, o sexo racializado, que
ocasionalmente tinha que ser reduzido à sua expressão mais simples, a
relação genital. Tanto em princípio quanto na prática, o poder orgástico
era uma técnica de gestão heterossexual de corpos subalternos, considerados
ora objetos, ora patológicos. Para isso, o poder precisava de um aparelho
semiotécnico capaz de produzir representações e conhecimentos relativos a
seus alvos.[3]
Para fins de legitimação, ele também se dedicou a fabricar, em escala
ampliada, os mais variados tipos de imagens e silhuetas, cuja circulação
generalizada permitiu padronizar o modo como eram tratados esses corpos e,
consequentemente, essas pessoas. [4] O que essas imagens nos
dizem a respeito do ato de escravizar ou de colonizar, de maneira geral, e
a respeito dos laços entre a dominação colonial e a dominação masculina e
genital, de maneira específica? Que lugar ocupa a raça na ordem do sexo
entendido como um instrumento a um só tempo de fruição e de violação dos
corpos e daquilo que eles simbolizam? Essas são algumas das perguntas que
este capítulo procura responder. [5]
De fato, no decorrer de sua longa história e por sua própria admissão, o
Ocidente manteve com o sexo e a sexualidade uma relação excepcionalmente
complicada, caracterizada por uma ansiedade originária e que tem sido
objeto de incontáveis estudos e comentários eruditos. Por um lado, talvez
mais do que qualquer outra região do mundo, o Ocidente se viu assombrado
pela questão da origem do prazer sexual, da sua natureza e da sua relação
com a virilidade, a volúpia e a brutalidade e até mesmo com o delírio e a
morte. Por outro lado, a análise de muitos de seus costumes e expressões
sexuais – incluindo a pornografia – mostra que ele deu um lugar preeminente
ao enlace genital, que de resto se acreditava ser a manifestação de uma
gigantesca energia, ao mesmo tempo biológica e cósmica, além de ser a
fronteira primordial entre natureza e cultura.
Particularmente devido ao orgasmo, o ser humano seria incapaz de se
desligar completamente da natureza e do mundo dos instintos. Momento
cataclísmico e ápice do prazer, o orgasmo na realidade sinalizaria a
derrota do homem, subjugado no intervalo de um instante a um poder singular
de aniquilação, no ponto de colisão das forças contraditórias da energia e
da entropia.[6] Em suma,
mistura de prazer e angústia, a vida sexual esconderia em suas entranhas
algo potencialmente imundo e relacionado, concomitantemente, com o lodo e o
lixo. Deixados à própria sorte, as pulsões sexuais trariam à superfície o
que o sexo teria de abjeto e pantanoso. Daí a necessidade de reprimir os
instintos civilizando-os, de cercar os usos do sexo com muitas proibições e
preceitos morais. Ou seja, sem a repressão das pulsões sexuais e sua
sublimação, a humanidade cega por suas paixões estaria condenada a viver
sob o jugo de seus desejos e impedida de nascer para a razão e a
maturidade.
Foi contra esse relato relativamente pessimista da vida sexual e do
devir-livre da humanidade que se ergueu a maioria dos movimentos
libertários desde pelo menos o século xix. [7] Quaisquer que tenham sido
suas formas, seu objetivo final foi mais ou menos o mesmo, a saber, romper
o vínculo entre a sexualidade e o imaginário da falta e da culpa, tão
profundamente inscrito no inconsciente das sociedades ocidentais. É por
isso que a revolução sexual consistiu basicamente em sair do círculo que
faz da sexualidade uma espécie de cloaca, enquanto o prazer sexual somente
se apresenta à consciência sob a forma do êxtase ou da própria morte, uma
morte extática.
Armado com essa narrativa, o “homem branco” – pelo qual se deve compreender
a ficção do poder ilimitado em terra conquistada e ocupada – haveria de se
deparar com corpos estrangeiros. Habituado a vencer sem razão e graças ao
domínio que teria sobre os espaços, os territórios e os objetos, viria a
descobrir que é efetivamente possível gozar sem remorso, satisfazer o
capricho de exações e depredações de todo tipo, inclusive em corpos
transformados em objetos, sem sentir remorso ou qualquer sentimento de
culpa.
Ele perceberia que pode literalmente esvaziar o Outro de seu conteúdo e
inscrever, nesse lugar vacante, sua própria verdade, sob a forma da imagem
ou da silhueta. Ele se daria conta de que pode efetivamente deslocar a
humanidade conquistada do status de algo imaginado para o de algo
realizado, tornando-se o colonizar, pelo mero fato em si, uma questão de
submissão de órgãos e corpos estrangeiros à vontade de um conquistador.
Desse ponto de vista, a plantocracia e depois a colônia foram laboratórios
privilegiados não só da vida sexual, mas também do caráter libidinal de
todo poder. Neles foram experimentadas diversas formas de prazer, jogos
sádicos, várias modalidades de “libertação ao contrário”, ou seja, às
custas dos mais fracos. Aqui, a liberdade sexual consistia acima de tudo no
direito de dispor do Outro como se fosse um objeto.
Na colônia, de fato, era possível romper com a ideia de que recalcar as
pulsões sexuais no inconsciente era uma das condições para obter
satisfações substitutivas. A evidência tendia a mostrar que o sujeito não
se estruturava necessariamente no ponto de encontro entre o desejo e a lei
vivida como uma modalidade entre outras de repressão. Era possível viver na
ausência de proibições e outras restrições, ou mesmo satisfazer as pulsões
com pouca consideração pelos tabus. Em um nível puramente fenomenológico,
as formas coloniais de brutalização (tanto durante a fase de conquista
quanto na de pacificação e na de possessão propriamente dita) tinham algo
de libido desenfreada, uma combinação de pulsões (sexuais, sádicas) cujo
traço inerente era se voltarem constantemente para si mesmas.
As colônias serviram, assim, como um terreno inesperado para todos aqueles
para quem a experiência do prazer pertencia a um grande sonho, o da
satisfação genital plena. Muitos deles estavam em busca de um poder de
natureza orgástica, o tipo de poder que não tinha necessidade alguma de uma
base simbólica e que, em razão disso, era capaz de sobreviver a qualquer
curto-circuito, já que excluía a priori qualquer possibilidade de
dívida ou culpa. É nessas áreas que é importante buscar as nascentes
decisivas das formas contemporâneas de poder orgástico, aquelas
que, bebendo nas fontes do neovitalismo, constituem a matéria prima do
neoliberalismo.
No entanto pode ser que, sob a plantação assim como na colônia, a função
copulatória, atividade física e fantasiosa, se é que algo assim é possível,
só poderia desembocar afinal na mesma coisa – a impossibilidade da fruição
absoluta, ardente e fusional. Devemos deduzir daí que o espetáculo sexual é
por natureza irrepresentável, um mero nome na ponta da língua ou então na
ponta do lábio? Ou que nunca se pode realmente voltar à fonte e à origem,
uma vez que, no final das contas, ir ao encontro daquilo que tão
estreitamente nos cinge e que nos concebeu não passa de um mito?
Essas questões surgem por várias razões, a primeira das quais relacionada à
própria natureza da colônia. O que é de fato a colônia senão um fosso
bizarro, um complexo paradoxal, que tem como uma de suas características
proporcionar, àqueles e àquelas que desejarem, um canal absolutamente
direto para o sexo, esse grande imaginário de objetos destinado a despertar
o desejo? De fato, penetra-se o desejo como se cai em uma armadilha, de um
corpo ao outro – a irrupção brutal, a tomada de controle ora perversa e ora
sádica, a transferência forçada, todo tipo de dejetos associados à
agressividade, ao racismo e ao ódio, incluindo o ódio a si mesmo.
Isso porque colonizar é brutalizar. Brutalizar na colônia significa
introduzir sistematicamente a diferença tanto no ornamento quanto na
cosmética dos corpos, na carne, nos nervos, nos órgãos e, por extensão, na
própria estrutura da fantasia. Significa tudo cindir, inclusive o olhar.
Significa, enfim, instaurar um hiato entre aquilo que se vê em si e para si
e aquilo que só deve aparecer no campo da visão como a figura do Outro,
isto é, um corpo chamado a suprir um prazer que o ultrapassa e que não é
necessariamente seu. Porque, como fosso profundo em torno do qual tudo
parece ter sido construído, a colônia é, além disso, perpassada pela
obsessão com um saber específico – saber a todo momento a quem pertence tal
sexo na inesgotável variedade dos sexos.
Do ponto de vista sexual, a colônia difere, portanto, de outros cenários em
vários aspectos. Por um lado, é um lugar em que o sexo não se encontra
apenas no ato sexual. Ele está, por assim dizer, na atmosfera, como uma
matéria inflamável e uma fábrica de possibilidades. Sexo masculino? Sexo
feminino? Ou sexo além de ambos, como entre os antigos Dogons, ora suspenso
na indeterminação e ora bebendo nas fontes da gemelaridade? Na realidade,
sexo-salmão, sexo-nu, sexo-marisqueiro, esquizoparanóico, anal e sádico se
necessário, polivalente, sem pertencer a ninguém em particular. Em sua
vertente genital, assim como em sua vertente simbólica, ele não apenas é
transformado, ele é fundamentalmente dividido no próprio ato que o
constitui, no desejo, inclusive de amor, que o opera.
Por outro lado, se na colônia o sexo não se encontra apenas no ato sexual
e, por conseguinte, se, para citar Jacques Lacan, não existe ato sexual
propriamente dito, tudo, em contrapartida, é sexual. De fato, a colônia
está longe de ser um deserto de prazer.
De resto, não era raro que, tanto na colônia quanto sob o regime da
plantação, a sedução se misturasse à perversão. Como força traumática, o
colonizador é capaz de levar suas presas à sua cama, de sentir seus corpos
e seus cheiros e depois, com o falo inexaurível, de desfrutar delas num
relance, de fazer uso delas e de aspergi-las com suas poluções. Na
tentativa de retornar ao corpo das primeiras demandas de prazer, entre a
fralda rendada, os sapatinhos de pompons e a pelúcia, ele pode muito bem
afogar a “negrinha” ou o “negrinho” debaixo dos mais diversos apelidos –
meu bichinho, meu pudinzinho, meu camarãozinho rosa, minha rãzinha, meu
boizinho ou meu sapinho –, tantos encontros são frustrados, escamoteados, e
não é necessariamente porque o Outro usaria uma máscara ou participaria, em
essência, de um vazio indecifrável. É também porque, na colônia, assim como
sob o regime da plantação, o risco nunca está longe, o risco de
“bebefilia”, o risco da presença da “criança” na fantasia colonial.
Frantz Fanon talvez não estivesse de todo errado quando sugeriu que o
colonizador só pode gozar como um porco, uma raposa, um lobo, um cão feroz,
um rato, se necessário, e quando quis crer que, por causa da estrutura
perversa e racista da colônia, o negro é apenas a verga de um garanhão que
vage da mesma forma como viveu, ou seja, como um homem castrado. Pois a
colônia também é a terra da incontinência. Não mais se conter, perder o
controle, inundar-se, conspurcar-se sem evasivas – tudo isso, sem dúvida,
faz parte da vontade de puro prazer que autoriza “sadizar” o colonizado.
Para superar sua divisão, suprimir o ponto de angústia na relação com a mãe
ou o pai e para vencer a infância alienada, o
colonizador-fedelho-em-tamanho-adulto não precisará afinal mamar, arrotar,
ser limpo, ser repreendido, quer dizer, encontrar no corpo da criança que
ele foi, que ele deseja voltar a ser e que o negro tão profundamente
representa, sua própria imagem no espelho?
É preciso, portanto, abandonar certos mitos. Em matéria de sexualidade, a
colônia é a terra das separações recusadas e das alianças disjuntivas, da
confusão das línguas e dos lábios. Aqui, não há lugar para o autoerotismo.
O Outro é um sexo cuja visão produz inevitavelmente efeitos de excitação. É
ali que se vai em busca do próprio prazer. Além disso, fruir é fruir-se. E fruir-se passa necessariamente pelo Outro. Pouco
importa se os órgãos genitais são remanescentes ou não do aspecto animal,
todos os investimentos feitos no corpo do Outro costumam não ter outra
finalidade senão voltar a se tocar indefinidamente.
[1]
Fragmento do capítulo “Virilismo”, extraído do recém-publicado Brutalismo, de Achille Mbembe. Cortesia da n-1 edições.
Disponível em https://www.n-1edicoes.org/shop
[3]
Ler a respeito disso Heather Vermeulen, “Thomas Thistlewood’s
Libidinal Linnaean Project: Slavery, Ecology, and Knowledge
Production”, Small Axe, 2018, p. 38.
[4]
Pascal Blanchard et al. (edg.), Sexe, race et colonies. Paris: La Découverte, 2019.
Retomamos, nas linhas a seguir, elementos do nosso prefácio a essa
obra, de um artigo publicado sob o título “Si l’Autre n’est qu’un
sexe…” em AOC, 24 de 2018, e de um capítulo publicado em
Gilles Boëtsch et al. (edg.), Sexualités, identités et corps colonisés. Paris: CNRS
Éd019.
[5]
Sobre esse tipo de questionamento, ler Elsa Dorlin,
La Matrice de la race. Généalogie sexuelle et coloniale de la
nation française
. Paris: La Découverte, 2009.
[6]
Wilhelm Reich, A função do orgasmo. Trad. Maria da Glória
Novak. São Paulo: Brasiliense: 1975.
[7]
Ler Gaëtan Brulotte, Œuvres de chair. Figures du discours érotique. Québec: Presses de
l’université Laval, 1998.
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