DANIELA ATHUIL [1]
Sou mulher, brasileira, branca, cis, heterossexual, mãe, divorciada,
psicanalista, nascida e crescida numa família de classe média, formada em
escolas particulares, onde tudo que aprendi sobre história, ciência, arte,
filosofia, me foi ensinado por brancos e brancas. Assim também se deu minha
formação no ensino superior, onde pouco se discutiu sobre relações raciais.
Se me apresento assim é porque se faz necessário dizer de onde falo, de
onde escrevo: de um lugar social e subjetivo de muitos privilégios. E vinda
deste lugar, sou, portanto, herdeira do racismo e potencialmente uma
perpetuadora dele.
Questionar privilégios vai além de propor ações de reparação, de
desconstrução do racismo. É essencialmente tocar na ferida: estamos
dispostos a renunciar aos nossos privilégios simbólicos e materiais? A nos
deslocar do lugar de hegemonia, que tem como efeito a naturalização do
corpo branco como “o corpo humano”?
Em 2018 fui ver no centro da cidade uma apresentação do grupo Ilú Obá De
Min. As danças dos orixás, entoadas pelos tambores tocados somente por
mulheres foi uma convocação ao silêncio (deixar de falar para escutar) e
reflexão. Homens e mulheres negras dançando e cantando, alguns em pernas de
pau (colocar os orixás acima das cabeças) com tochas nas mãos, olhares
anunciando resistência, força, numa potente expressão de desejo de existir
sem medo de ser posse ou objeto.
O Ilú não é só um trabalho artístico, mas também um trabalho político de
combate ao racismo, de pesquisa, fortalecimento e preservação da cultura,
saberes e religiões de matriz africana. Os tambores tocados somente por
mulheres é um ato político que se traduz nas diversas vozes negras que
cantam e resistem às reiteradas tentativas de silenciamento e apagamento da
história africana e afro-brasileira. O Ilú, que tem como madrinha Leci
Brandão, tem uma história de mais de 15 anos e conta com 450 mulheres. A
história está lindamente contada por suas integrantes no podcast
Negras Vozes[2].
De lá pra cá, esse chamado à reflexão, à re-escuta da história, daquela que
foi silenciada, negada, sequestrada, porque se manteve ancorada numa visão
eurocêntrica/brancocêntrica, tornou-se um exercício contínuo em mim, no
cotidiano da casa, no trabalho, no meu fazer clínico e na educação dos meus
filhos. Em 2020, com a pandemia e escolas fechadas para o ensino
presencial, assistimos a um alargamento ainda mais brutal das desigualdades
sociais. O impacto é devastador para os alunos da rede pública. É preciso
dizer ainda que os efeitos da pandemia no Brasil são enormemente agravados
pelas ações políticas negacionistas e genocidas do atual governo, que
recaem sobre a população mais pobre, mais especificamente sobre a população
indígena e negra.
É nesse cenário então que algumas escolas particulares da cidade de SP
decidiram se mobilizar frente à problemática racial, questionando sua
própria estrutura. Há uma espécie de interdito silencioso quando um espaço
educacional é formado majoritariamente por estudantes e professores
brancos. Afirmar um compromisso com uma educação antirracista é
desconstruir o racismo na base da própria educação, mexendo nas estruturas
onde ele se expressa ou se esconde.
Juntei-me ao grupo de pais da escola dos meus filhos que, com professores,
coordenadores e funcionários, queriam dar início a ações concretas nessa
direção e então nos subdividimos em frentes de trabalho (revisão de
currículo, contratação e formação de profissionais, letramento e
sensibilização da comunidade). Como parte do nosso processo de letramento,
formamos um clube de leitura mensal sobre autores negros e negras. Carolina
Maria de Jesus, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo, Itamar Vieira Júnior,
Silvio Almeida, Eliane Leite Malteze, foram algumas das autoras e autores
escolhidos pelos mediadores dos encontros.
Além das conversas em torno das leituras, fazemos circular entre nós
notícias, artigos e pesquisas que nos ajudam nessa construção. Nesse
processo também buscamos conhecer experiências já existentes, como o
projeto Afroativos - solte o cabelo, prenda o preconceito,
idealizado pela professora da Escola Municipal de Ensino Fundamental
Saint’Hilaire em Porto Alegre, Larisse Moraes. O projeto tem como uma de
suas ações a construção, junto com os alunos, de um calendário Afro que
apresenta mês a mês os grandes marcos da cultura afro, destacando as
personalidades negras e suas biografias. O calendário se junta a uma série
de eventos que ao longo do ano tem como propósito o fortalecimento das
identidades negras, o resgate da ancestralidade invisibilizada, num
processo que foi chamado pela professora de afrobetização. Um
exemplo da potência das ações de combate ao racismo ou, como diz ela, de
uma educação afroafirmativa [3].
Esse primeiro ano de trabalho nos aproximou, pais, alunos, professores e
funcionários, mas também nos colocou diante de tensões novas, debates
intensos e afetos diversos. Neste momento a escola está dando início a uma
nova etapa do trabalho que contará com a parceria e metodologia da ONG Ação
Educativa para que possamos todos nos preparar para a chegada de trinta
famílias bolsistas em 2022.
É condição incontornável para esse compromisso com uma educação
antirracista poder sustentar a angústia que ele provoca, seja por entender
que sabemos e fizemos pouco ou quase nada, por perceber e reconhecer os
atravessamentos do racismo incrustrado nas nossas estruturas familiares e
sociais, assim como suas metamorfoses. É nos colocar em questão. E é
preciso responder a isso escutando, desaprendendo e aprendendo, conhecendo
as narrativas de resistência e as diversas produções e saberes de negros e
negras de ontem, de hoje e das que virão.
Sustentar e trabalhar os afetos. Romper com o pacto racista em todas as
suas dimensões, nos responsabilizando pelo seu enfrentamento. Afirmar nosso
compromisso ético com todas as vidas, combatendo o alheamento histórico nas
instituições e em todos os espaços da sociedade, reconhecendo e nos
juntando a todas as lutas. Por todos, todas e todes.
É a reflexão que me cabe trazer aqui.
Escutar o tambor.
Lembrar Clementina de Jesus:
“Tava durumindo, Cangoma me chamou
Tava durumindo, Cangoma me chamou
Disse: levanta povo, cativeiro já acabou
Disse: levanta povo, cativeiro já acabou”
(Cangoma me chamou – canção de Clementina de Jesus)
Grupo Ilú Oba De Min em apresentação no Carnaval de 2019.
[1]
Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto
Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste Boletim, do grupo de trabalho e pesquisa O feminino e o imaginário cultural contemporâneo e do grupo de intervenção e pesquisa clínica Da gestação à primeira infância.