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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    61 Novembro 2021  
 
 
MAL-ESTAR NA CIDADE

NÃO SÃO INVISÍVEIS, SÃO CORPOS NEGROS


FERNANDA ALMEIDA [1]


Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência
É roubar o pouco de bom que vivi
Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes
É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóis sumir

AmarElo - Emicida


Em 2013, uma mulher idosa foi condenada por injúria racial após ofender uma trabalhadora frentista em um posto de gasolina na capital do Distrito Federal. Na ocasião, ela proferiu a seguinte frase: "Negrinha nojenta, ignorante e atrevida". Anos depois, a defesa alega que ela não pode ser punida, pois o judiciário demorou muito tempo para analisar os recursos, portanto o crime teria prescrito [2].

No dia 28 de outubro de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por 8 votos a 1 (sendo esse um, o voto do Ministro Kassio Nunes Marques, notadamente alinhado aos interesses presidenciais), que a injúria racial é um crime imprescritível e pode ser equiparada ao crime de racismo. A decisão acontece transcorrido quase um ano do voto do relator, Ministro Luís Edson Fachin, em 26 de novembro de 2020, no pedido de habeas corpus que discutiu o tema.

Ainda que a morosidade judicial, introjetada e naturalizada na cultura brasileira, mereça um capítulo à parte, pois a frouxidão manifesta aquilo que se quer combater, os movimentos sociais antirracistas consideraram muito relevante – ainda que tardio – o ato do judiciário.

No emaranhado desta vereda jurídica, chamo a atenção para o conteúdo do voto do Ministro Fachin[3], tão importante quanto a decisão em si. O texto do voto traz a força e o significado do momento histórico em que a luta contra o racismo no Brasil e no mundo ganham espaço na arena política, sobretudo após a eclosão do movimento Vidas Negras Importam. Em termos psicanalíticos, sabemos o quanto reconhecer e nomear são aspectos fundamentais. Nesse sentido, o relator vai à raiz: “Há racismo no Brasil. É uma chaga infame que marca a interface entre o ontem e o amanhã”. E ainda, sustentado na tese de Silvio Almeida (2019) argumenta que o racismo no Brasil não é episódico ou um fenômeno patológico, mas sim, estrutural.

Afirmar que o racismo no Brasil é estrutural não é em si uma novidade. Outras(os) autoras(es) negras(os) já tinham aberto a picada na mata “fechada” da produção intelectual-branca brasileira. A importância do voto do relator, que foi seguido pela maioria dos ministros, reside no fato da Suprema Corte Brasileira admitir que o racismo é estrutural, e mais, subsidiar o argumento na tese de um intelectual negro.

Por essa razão destaco a importância do ato, mas não há qualquer ilusão nisto, pois operacionalização imediata do conteúdo aprovado depende de seus operadores, e fato é que, desde os tempos de Luís Gama, até hoje, o judiciário brasileiro é uma das engrenagens da maquinaria que torna o racismo estrutural. Em um de seus poemas mais populares – “Quem sou eu?” – publicado em 1859 o poeta, jornalista e advogado expressa sua visão satírica do poder judiciário.


(...)
Que, sem pinga de rubor,
Diz a todos, que é DOUTOR!
Não tolero o magistrado,
Que do brio descuidado,
Vende a lei, trai a justiça
— Faz a todos injustiça —
Com rigor deprime o pobre
Presta abrigo ao rico, ao nobre,
E só acha horrendo crime
No mendigo, que deprime.


Silvio Almeida, no livro Racismo estrutural, alerta que sua obra está localizada no campo da teoria social. Portanto, qualquer reducionismo epistemológico ou esquematização abstrata da tipificação do racismo suavizará os fundamentos da tese central, qual seja, que o racismo é sempre estrutural e constitui o âmago da formação política, socioeconômica e cultural da sociedade brasileira.

Do ponto de vista da sua materialização no tecido social, não nos faltam casos que confirmem a tese. Suas formas cotidianas são múltiplas e podem ser exemplificadas em índices aviltantes: mais elevada taxa de homicídio por parte do Estado, 78%; maior índice de desemprego do país, 71% maior que entre brancos; prevalência de mortes na pandemia da COVID-19, 55%; maior evasão escolar em virtude das condições materiais, 71,7%; além de outras formas vis, objetivas e subjetivas. A população negra vivencia e sente na pele, rotineiramente, as consequências do racismo estrutural.

Na maior cidade do país, o mal-estar delineia as relações sociais e torna as ruas a arena das contradições. O último levantamento censitário realizado pela prefeitura de São Paulo (2019) revela que 70% [4] da população em situação de rua declarou-se negra ou parda. Quais sentidos subjazem a este dado tão expressivo e simbólico? Fenômeno incorporado e naturalizado faz recalcar aquilo que os olhos vêm, mas os “sentidos” teimam em tornar sintoma social. É preciso afirmar em alto e bom som, “a rua tem cor”, ou nos termos de Frantz Fanon em Pele negra, máscaras brancas: quem habita as ruas da cidade são os corpos negros remanescentes direta e indiretamente da história racial deste país.

Nomear que a população em situação de rua é majoritariamente negra e, imediatamente, constatar a existência desumana a que estão submetidos estes homens, mulheres e crianças pretas, é puxar o fio que liga o passado escravocrata à perpetuação das manifestações cotidianas e contemporâneas do racismo estrutural que marca a vida desses sujeitos.

São Paulo prepara-se para um novo levantamento censitário da população em situação de rua. O último realizado foi em 2019 e confirmou 24.344 pessoas nesta situação. Os movimentos sociais organizados, desde a publicação dos resultados, contestam os números, e hoje afirmam que podem ser mais de 40 mil. Quem mora na capital paulista, assim como eu, já deve ter notado o aumento expressivo de famílias e pessoas sobrevivendo de maneira degradante nas ruas da cidade. A crise pandêmica da COVID-19, agudizada pela necropolítica do governo federal genocida, impõe uma agenda austera que tem levado milhares de pessoas ao desemprego e à fome.

Desde algum tempo, tenho problematizado o termo invisibilidade atribuído à população em situação de rua, quando se quer referir ao fato de que são ignorados pelo poder público e por parcelas da sociedade. Ainda que o sentido da ocultação expresse o descaso e a omissão, penso ser fundamental nomear que a invisibilidade é também ocasionada em razão da cor da pele destes homens e mulheres. É preciso reiterar, como Fanon, não são invisíveis, são corpos negros.



[1] Assistente social, coordenadora do curso de Pós-Graduação em Serviço Social e Saúde da FAPSS-SP. Atua na Rede Pública de Saúde (SUS) em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD). Psicanalista em formação, aluna do 2º ano do Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste Boletim.




 
 
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