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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    61 Novembro 2021  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

LETRAMENTO EM TRÊS TEMPOS


ANNE EGÍDIO [1]



“Contar as nossas histórias é o que possibilita a autorecuperação política.”
bellhooks



A expressão letramento racial, tão em voga neste momento, me leva a recuar um pouco em minha temporalidade, para pensar no termo letramento que usamos no GTACME - Grupo de Trabalho (estudo, pesquisa e intervenção) A Cor do Mal-Estar: da invisibilidade do trauma ao letramento [2] e, para tanto, faz-se necessário discorrer sobre como nasceu em mim um desejo primordial de me aproximar da psicanálise, num primeiro momento, e como esta aproximação ensejou o desejo de ser psicanalista - mais explicitamente, tornar-me uma psicanalista negra - e dos processos subjetivos e intersubjetivos envolvidos neste processo.

A palavra letramento, pelo seu aspecto polissêmico, corresponde a diferentes conceitos; oriundo do campo da pedagogia, o termo pode corresponder a diferentes concepções, a partir da abordagem disciplinar que pode ser linguística, antropológica, sociológica, psicológica, psicanalítica etc.

A palavra e o conceito letramento, pensado pelo GTACME, é um conceito em construção e tem a ver com percurso, na vida, na psicanálise e na instituição – neste caso, especificamente, no Sedes Sapientiae.

Considero importante dizer o que me levou a buscar a psicanálise, primeiro, como analisanda, foi por pura curiosidade, já que havia passado por outros tipos de psicoterapia e fiquei curiosa para perceber se havia diferença na abordagem; posteriormente, no processo de formação, fui buscar na teoria psicanalítica um caminho possível para poder pensar o sofrimento psíquico decorrente do racismo. Depois de algum tempo comecei a sacar que sim, havia um desejo em me tornar psicanalista.

A primeira vez que entrei em contato com a teoria freudiana foi durante uma pós-graduação lato sensu em Sócio-psicologia, na Fundação Escola de Sociologia e Política, através da disciplina Psicanálise. Este curso foi também o lugar onde pude me aprimorar acerca do pensamento social brasileiro, permeado pela questão do negro no Brasil; esta formação me levou a desenvolver trabalhos que envolviam o debate da questão racial em diversos espaços.

Minha inquietação ocorre ao desenvolver um trabalho junto à extinta Coordenadoria de Assuntos da População Negra, junto à Secretaria Municipal de Participação e Parceria, cujo propósito era, a partir de Oficinas com os alunos e na Formação de Professores, implementar a formação de currículo com base na Lei n. 10639/03 [3], que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-brasileira.

Pois bem, neste cenário, em uma das rodas de conversa com os professores de uma determinada escola, comecei a sentir uma inquietação ante um mal-estar que emergia naqueles encontros semanais. O grupo era composto por professores brancos, em sua maioria, e negros. Saquei que a sociologia não estava dando conta daquela coisa que me inquietava e que talvez a psicanálise pudesse me ajudar a pensar sobre a angústia que sentia naquelas rodas de conversa.

Na época, 2010, eu já fazia análise, e no ano de 2011 me inscrevi para o curso Conflito e Sintoma do Departamento de Psicanálise.

Meu objetivo era pensar a psicanálise e o racismo, pensar o mal-estar vivido por aqueles professores e o meu próprio... No entanto, adentrar a instituição foi um choque: não havia negros naquele espaço e falar sobre psicanálise e racismo parecia surreal. Enfrentar caras e bocas de colegas e sustentar o meu objetivo de pensar o sofrimento oriundo da violência do racismo pelo viés da psicanálise, nos dois anos do Conflito e Sintoma, além de insistir com meu analista branco para que levasse em conta a minha angústia e minha percepção de não-lugar naquele espaço de formação (e no mundo), resultou positivo em algum momento e isso me ajudou no sentido de detectar que sim, havia um desejo de me tornar psicanalista e, mais ainda, a sustentar tal desejo.

Em 2015, adentro a formação psicanalítica do Departamento de Psicanálise, obviamente, levando comigo meu leitmotiv, que era e continua sendo entender a razão de a psicanálise no Brasil não se implicar com a fundação da nação a partir de uma brutal violência, que foi a escravização e dizimação de povos originários, violência esta que prossegue, assim como prossegue a violência perpetrada por uma abolição inconclusa. No primeiro, segundo ano da formação havia somente o mal-estar que era marcado por um silêncio estrondoso... a partir do terceiro ano já foi possível perceber uma certa implicação por parte de alguns colegas e uma tentativa de sustentação de um mal-estar, viabilizando um possível debate. Mas a grande questão permanecia: O que a psicanálise tem a dizer sobre o racismo, o traumático da escravidão, o extermínio de povos originários? O que a psicanálise tem a dizer sobre a violência fundante do Brasil?

Estar ali desde o Conflito e Sintoma e dar início à formação, me posicionando a partir da margem, no sentido descrito por Grada Kilomba, citando bell hooks e Heidi Safia Mirza, em Memórias da Plantação [4]: “[...] a margem não deve ser vista apenas como um espaço periférico, um espaço de perda e privação, mas sim como um espaço de resistência e possibilidade. A margem se configura como ‘espaço de abertura radical’ (hooks, 1989, p.149) e criatividade, onde novos discursos críticos se dão. É aqui que as fronteiras opressivas estabelecidas por categorias como ‘raça’, gênero, sexualidade e dominação de classe serão questionadas, desafiadas e descontruídas. Nesse espaço crítico, ‘podemos imaginar perguntas que não poderiam ter sido imaginadas antes’ (Mirza, 1997, p.4), perguntas que desafiam a autoridade colonial dentro do centro e os discursos hegemônicos dentro dele.” (Kilomba, 2019, p. 68). Este foi e tem sido um posicionamento político cujo objetivo me parece ser a possibilidade de se produzir alteridade para poder pensar o que nos impede de entrar em contato com o lado sombrio de nosso passado e romper com o silenciamento em torno das razões que destinam ao não-lugar os negros na sociedade brasileira.

Acho que este foi o primeiro tempo daquilo que chamei, posteriormente, de letramento. O segundo tempo deu-se concomitantemente com o primeiro, quando em 2016 acho, Heidi Tabacof, de quem fui supervisionanda, sabedora ou escutadora de minha inquietação, me falou sobre a Incubadora de Ideias e me convidou a conhecer o espaço e quem sabe pensar algum grupo de trabalho possível para pensar a psicanálise e o racismo – este encontro foi a pedra angular para aquilo que veio a ser o GTACME.

Momento muito difícil de ser sustentado; apesar do acolhimento recebido ali, houve momentos bem difíceis, já que a Incubadora de Ideias é um espaço aberto onde há a circulação de diversos membros e aspirantes a membro do Departamento e muitas vezes me senti permeada por sensações estranhas que podem ter a ver com “a ansiedade com que a sociedade contemporânea descarta o racismo, substituindo o reconhecimento dele por evocações de pluralismo e diversidade que mascaram ainda mais a realidade, é uma reação ao terror. Isso também se tornou uma forma de perpetuar o terror concedendo-lhe um disfarce, um esconderijo.”[5] (hooks, 2019, p. 313).

O processo pelo qual fui sendo permeada na Incubadora, até a criação do Grupo, deu-se em quatro etapas bem subjetivas, a saber:

  1. Pensar o objeto e burilá-lo.
  2. Criar um Grupo para estudar, pesquisar e intervir sobre o traumático do racismo, dando-lhe visibilidade através do processo de letramento
  3. Pensar o grupo de um outro lugar (como psicanalista)
  4. Do ponto de vista institucional, deslocar-me do local de alguém que recebe (p.ex.: a formação) para passar a contribuir como psicanalista.

A etapa I foi um processo interno visceral, transpor em palavras a experiência de ser a negra única e bater insistentemente na tecla de pensar o racismo pelo viés psicanalítico, era essa a angústia levada à Incubadora, nos primeiros encontros.

A etapa II ganhou corpo quando conheci Maria Aparecida Miranda, em 2017, outra mulher negra que estava a uma turma de formação antes da minha. Fiquei muito feliz de poder ver outra negra na formação, através dela conheci Marisa Correa, e as convidei para fazer parte do projeto. Marisa topou e foi assuntar na Incubadora, passou pelo processo de se tornar membro do Departamento e começamos a elaborar o projeto Grupo A Cor do Mal-Estar. Em 2018, Miranda passa a circular conosco, na Incubadora de Ideias, passando a colaborar com nosso projeto.

A etapa III foi se consolidando à medida que organizávamos o evento que inauguraria o Grupo. Já a etapa IV foi se consolidando nos processos de letramento experienciados de forma coletiva com o GTACME, nas ocupações que o Grupo fez nas reuniões, no evento interdepartamental do ISS de setembro de 2020, com a composição e leitura coletiva do Manifesto do Grupo A Cor do Mal-Estar e na Assembleia de 05 de dezembro de 2020.

Ou seja, o processo de incubação daquilo que viria a ser o GTACME foi também um processo de letramento.

O terceiro tempo do letramento foi ocorrendo com os integrantes do grupo. No primeiro momento não parecia haver conflito, havia uma tendência de o debate, ainda que o tema a ser estudado fosse branquitude, evocar a violência do racismo pela perspectiva do negro.

Um dia, ao estudarmos o livro Memórias da Plantação, de Grada Kilomba, a branquitude foi questionada no sentido de exprimir seus pensamentos relativos a uma situação em que Grada relata uma experiência racista por parte de seu médico. Neste momento tivemos nosso primeiro entrevero, o negativo emergiu e a partir daí o trabalho grupal consiste em sustentar o mal-estar, ser continente a ele, movimento que se pode observar no GTACME em suas atuações na instituição. O grupo escuta falas e posicionamentos que, inconscientemente, reproduzem a violência do racismo e imediatamente há uma intervenção por um de seus integrantes, quer seja ela/e branca/o ou negra/o.

Concluo com bell hooks[6], citando Gayatri Spivak: “o que estamos pedindo é para que os discursos hegemônicos, e os portadores dos discursos hegemônicos, tornem suas posições não hegemônicas e aprendam a ocupar a posição de sujeito do outro’. [...] Como intervenção crítica, isto permite o reconhecimento de que o pensamento branco progressista que é antirracista pode ser capaz de compreender a forma como suas práticas culturais reforçam a supremacia branca sem promover uma culpa paralisante ou negação” (hooks, 2019, p. 315), sendo isto algo muito semelhante ao que pode se aproximar do entendimento do processo de letramento que o GTACME, com suas intervenções, vem produzindo.

 



[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[2] Para saber detalhes sobre o Grupo A Cor do Mal-estar, acesso o link http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?mpg=03.00.01

[4] Kilomba, Grada. Memórias da Plantação - Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

[5] hooks, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019.

[6] hooks, bell. op. cit




 
 
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