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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    61 Novembro 2021  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

CRIAR E PROFANAR DISPOSITIVOS – UMA NARRATIVA DA HISTÓRIA


Heidi Tabacof [1]


À memória de Rita Cardeal


Foi com a perda de uma inocência caduca que meu processo de letramento racial começou. Aconteceu no calor do conflito que irrompeu entre psicólogos, psicanalistas e ativistas pretos, brancos e judeus, alinhados na realização do primeiro evento sobre o racismo no Departamento de Psicanálise. Era o encerramento do sociodrama, atividade disruptiva com a qual abrimos o trabalho, em 2012. O impacto do acontecimento produziu perplexidade e dispersão, mas não paralisia.

Tomar conhecimento da nossa ignorância sobre a existência de uma condição de branquitude disparou novas indagações e impulsionou a publicação, cinco anos mais tarde, do livro O racismo e o negro no Brasil - questões para a psicanálise. Uma coletânea de artigos organizada por Noemi Moritz Kon, Maria Lúcia da Silva e Cristiane Curi Abud, que se tornou uma referência.

Desde o primeiro momento de explicitação da existência de racismo em nossos espaços de transmissão, no Curso Conflito e Sintoma, em 2010, foi na Incubadora de Ideias, então em estado nascente, que essas questões cheias de dor e fúria foram parar e começaram a ser ditas. Noemi, Maria Lúcia e outros protagonistas do episódio decidiram transformar o mal-estar, surgido na classe, em oportunidade de pensamento e produção [2].

A nós, caras pálidas, coube escutar e pensar junto, suportando a vivência inevitável de desconfiança e hesitação, que se misturavam à emoção da esperança, no emaranhado assustador da experiência racista aqui e agora.

Para os que não sabem, a Incubadora de Ideias, criada no âmbito do CD 2008-2010, tem como propósito estimular, acolher e oferecer sustentação política e intelectual às iniciativas de novos trabalhos no Departamento. As poucas propostas que surgiam, não obtendo adesão de interessados, minguavam e eram interrompidas. Ao mesmo tempo, os grupos de trabalho existentes estavam lotados ou não correspondiam aos interesses dos alunos egressos dos cursos e dos antigos membros que se mantinham inativos. De tudo isso resultava um movimento de evasão preocupante.

A ideia me ocorreu como óbvia ao analisarmos o problema e entendermos que esse processo de esvaziamento se devia não ao esgotamento do terreno, mas à distribuição desigual das possibilidades e recursos disponíveis, efeito da maneira em que se articulavam as forças político-psicanalíticas dominantes. Tratava-se de um impedimento invisível a ser nomeado, debatido e, sobretudo, ultrapassado.

Rita Cardeal, que eu mal conhecia, ativamente inserida num lugar distante do meu no Departamento, do seu jeito mineiro agarrou a oportunidade pelos chifres, tornando-se a parceira indispensável, lúcida e combativa, no desenho e implementação do novo dispositivo.

Foi a esse lugar institucional que convidei Anne Egídio a ingressar anos depois, em 2016, ao buscar em privado uma supervisão. Sua demanda, escutada como denúncia, era igual e diferente da anterior. Agora, tratava-se de olhar para dentro do nosso próprio contexto, nos implicando no sofrimento de passar por situações de segregação e constrangimento no Curso de Psicanálise e da dureza de circular pelas áreas de convivência do Sedes sendo uma mulher negra - uma aluna negra em seu processo de formação como analista.

Sua fala descortinava um campo imenso de problemas em que Anne estava só, mas que não era só dela. O que nos trazia é uma tragédia brasileira, tão nossa que exige ser encarada já, sem garantia nem escapatória, de forma radical e coletiva.

A partir daí, iniciou-se a deflagração de um movimento democratizante de extraordinária importância. Passa a se incluir na luta por existência, reconhecimento e acesso aos lugares de saber e poder uma linha de força central, constitutiva, espantosamente ausente das nossas inquietações éticas, clínicas e políticas.

Naquele momento, a contundente presença do racismo se revelava em cada um e todos nós. Algo evidente que resistimos a admitir, até por termos como marca distintiva o compromisso com uma psicanálise crítica e libertária.

Para Grada Kilomba, se enfrentarmos a negação inicial do próprio racismo e a culpa subsequente, caímos no abismo da vergonha. Mas, é justamente ao enfrentarmos a vergonha do privilégio e da conivência com a violência das práticas racistas naturalizadas que poderemos nos responsabilizar pela urgência de reparação histórica e subjetiva através de ações antirracistas.

A criação do Grupo de Trabalho A Cor do Mal-Estar foi uma resposta nesse sentido e desde o princípio precisamos profanar dispositivos vigentes. A começar pela obrigatoriedade de os aspirantes a membro pagarem uma parte da anuidade do Departamento. Teria sido impossível iniciar o trabalho se o CD não tivesse aprovado nossa demanda de isenção, possibilidade que não existia. Uma evidência, entre tantas outras, de como as políticas de cota e o cuidado com os cotistas são fundamentais e inadiáveis.

Ao longo de dois anos de idas e vindas na Incubadora - que ao mesmo tempo seguia na escuta e elaboração dos outros projetos de membros e aspirantes do Departamento – a persistência inabalável no propósito de construir uma aliança interracial nos levou, finalmente, à conquista da confiança necessária para seguir.

Nessa altura, haviam se incorporado ao grupo Maria Miranda, Marisa Corrêa e Solange Maria Oliveira, também analistas negras. Esse primeiro tempo de reflexão culminou com a formulação da questão psicanalítica fundamental: estudar o racismo como trauma no sujeito e no laço social.

Ao ser apresentado publicamente e convidar interessados, o GTACME cresceu rapidamente, recebendo pessoas de dentro e fora do Departamento. Com entusiasmo e dificuldade foi buscando ganhar forma, o que se deu, outra vez, através da violência que eclodiu entre os pretos e brancos integrantes do projeto.

Dessa vez, felizmente, contamos com a possibilidade imediata de falar, suportar a tensão dos conflitos e continuar no caminho.

Não é fácil. Integrantes da primeira hora saíram, outros chegaram, o movimento é constante, mas um núcleo coeso se constituiu e hoje pensamos a própria experiência do grupo como um laboratório de letramento racial e institucional. Temos a convicção de que só podemos levar adiante nosso desejo de produção metapsicológica e de ação política incluindo a investigação das intensidades subjetivas, por vezes avassaladoras, que ameaçam o processo.

Um ponto de inflexão nesse período foi a leitura do manifesto antirracista Da denúncia do trauma ao manifesto do letramento, no evento interdepartamental Insistir, resistir e existir, em 2020. O texto incendiou os espíritos e catalisou no Departamento, no Instituto e em suas diversas instâncias, as forças dispersas que se mobilizavam na mesma direção. Com isso, estruturas pesadas e complexas começaram a se mexer, em sintonia com a inédita consciência da desumanização criminosa produzida pelo racismo, aqui e em toda parte.

Sendo assim, um caminho decisivo foi percorrido entre a constatação da recusa e da negação do racismo presentes na denúncia de 2010, e o que se dá agora, poucos anos depois, no escopo ampliado de psicanalistas e demais trabalhadores do Sedes. Instituto engajado, de fato, na luta por direitos, liberdade e justiça, mas que também deixou fora de sua carta de princípios o marcador social específico que é o racismo com seu rastro de desigualdades. Uma falta compreensível, dada a natureza estrutural do problema, mas inaceitável agora, quando entendido como um mal que atinge a todos, expondo a população negra a constantes re-traumatismos que aos brancos passam despercebidos.

Precisamos entender o que é viver assim. Aprender a perceber aquilo que em nossa linguagem, gestos e automatismos, serve à manutenção das práticas seculares de apagamento e opressão.

É disso que trata o letramento racial, proposta estratégica do GTACME, para transformar nossos modos de fazer as coisas. Nessa operação, o único grupo proposto, constituído e coordenado por psicanalistas negras e negros tem um lugar de saber que é só dele. Dispositivo que, como a própria Incubadora, funciona como uma máquina de profanar dispositivos.

Profanação de dispositivos é o nome dado por Agamben ao processo de restituir ao uso comum aquilo que foi capturado e separado de si. O que não se dará corretamente se aqueles que se encarregarem disto não estiverem em condições de intervir sobre os processos de subjetivação, não menos que sobre os dispositivos mesmos, para levá-los à luz daquele ingovernável, que é o início e o ponto de fuga de toda política.

Segundo o autor, dispositivo é o termo técnico usado por Foucault ao se ocupar daquilo que chamava de governabilidade ou governo dos homens. A relação entre os indivíduos como seres viventes e o elemento histórico, este último entendido como o conjunto das instituições, dos processos de subjetivação e das regras em que se concretizam as relações de poder. O interesse de Foucault não é reconciliar os dois elementos nem enfatizar o conflito entre eles, trata-se de investigar os modos concretos em que os dispositivos atuam nas relações, nos mecanismos e nos “jogos” de poder.

Por essa razão, o estabelecimento da Incubadora de Ideias enfrentou, em alguns setores, uma obstinada resistência.

No entanto, do meu ponto de vista - e sei que nele não estou sozinha -, como suposto na aposta de origem, as atividades criadas através da Incubadora revitalizam o Departamento, enriquecendo também os que já eram ricos. Uma operação incomum no modo de subjetivação colonial capitalista, em sua lógica de que não basta eu ter, é preciso que o outro não tenha para que meus privilégios sejam mantidos.

Hoje, convocados a criar dispositivos de letramento que atendam à diversidade dos espaços de trabalho do Departamento de Psicanálise e do Instituto Sedes, é uma alegria constatar que apesar dos desafios de toda ordem, contamos com o impulso convergente de todos aqueles que têm demonstrado, em ato, o desejo e a coragem de fazê-lo. Avancemos!



[1] Psicanalista, documentarista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do GTACME.

[2] Vale acompanhar a narrativa de Maria Lucia da Silva no 6º episódio de Psicanalistas que falam: https://www.youtube.com/watch?v=FXwoTBYE88c




 
 
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