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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    61 Novembro 2021  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

RACISMO NATURALIZADO, TRAUMA INVISIBILIZADO


MARISA CORRÊA DA SILVA [1]



Comemoramos neste mês de novembro o Dia da Consciência Negra. A importância dessa tomada de consciência leva-me a retornar ao dia 13 de maio, data em que ainda é comemorada a Abolição da Escravidão, para estabelecer um nexo entre a representação desta data, a representação do mês de novembro e o título deste texto.

A chamada lei “Áurea” já impõe, pelo nome “lei de ouro”, uma associação simbólica com algo de grande valor. A lei, no entanto, foi um engodo, uma tentativa de “dourar a pílula amarga” do criminoso regime escravagista existente. Tanto que não propiciou a emancipação da população negra e muito menos a reparação pelos anos de escravidão, pelo contrário lançou à própria sorte a população que restava escravizada, como já acontecia com os alforriados, que, inclusive, já eram em maioria na época.

O resgate desse fato histórico, agregado à intencional recusa e usurpação das oportunidades de trabalho aos ex-escravizados, é importante para aprofundarmos o entendimento da relação do racismo e da escravidão com o traumático individual e coletivo da população brasileira.

A promulgação oficial da abolição não garantiu o reconhecimento pelo Estado de que houve um crime hediondo e de que autorizou uma violência continuada. Esse crime foi camuflado, omitido, negado.

Quando a escravidão e o racismo são negados enquanto feitos violentos, não sendo criminalizados, marcas traumáticas são reinscritas, transcendendo as violências cometidas. A negação do ato traumático funciona como um segundo momento do trauma.

No caso da escravidão e do racismo ainda houve o agravante de terem sido justificados pela afirmação de que um sujeito negro não é necessariamente um sujeito, é praticamente uma coisa. Dessa forma o dominador intenciona se abster da responsabilidade pela execução desta violência, garantir seus privilégios e a dominação.

O comprometimento obvio da saúde mental do sujeito abusado pode gerar transtornos de comportamentos, que resultem em ações danosas para si e para outros.

O dominador, que nega o seu papel de algoz, também nega a correlação entre este comprometimento da saúde mental com a violência executada e sofrida, distorce os fatos e responsabiliza o sujeito violentado de modo absoluto pelas ações auto e hetero destrutivas. Inscreve dessa forma neste sujeito o estigma de um ser pernicioso para a sociedade, e fecha o ciclo ao se eximir da responsabilidade e culpabilizar, de forma projetiva, o sujeito abusado de ser o algoz de si mesmo.

Esta é uma outra falácia traduzida nos dias de hoje pela hedionda afirmação: “bandido bom é bandido morto”. Ou pela afirmação: “não melhora de vida porque não se esforça”. Os que hoje apoiam esse paradigma não refletem sobre as origens deste descalabro sociopolítico, que incrimina os que por longos séculos sofreram crimes diários, sem o direito sequer de ter o seu sofrimento reconhecido como produto de um crime.

Portanto, a negação, a clivagem e a projeção como componentes do ato traumático, a distorção da realidade, a isenção de responsabilidade retraumatizam, potencializando o trauma já instituído pela violência. Este é o segundo momento do trauma, onde quem o sofre vê-se em total desamparo, tomado pelo pavor e pela impotência, com consequente prejuízo na capacidade de reagir adequadamente a seu favor.

Até hoje presenciamos trabalhadores domésticos que são sub-remunerados, explorados com demanda excessiva de trabalho, mas que se conformam com a situação, como se entendessem que é aquilo que lhes cabe. Da mesma forma, escutamos com frequência pessoas dizendo: “Meu bisavô tinha escravos, mas os tratava bem”. Ou seja, tanto no imaginário do ex-escravizado, como no do descendente do escravagista, escravizar ou sub empregar não são considerados tratar mal. Em ambos os comportamentos pode-se identificar os mecanismos de clivagem e negação acima citados.

Uma outra vertente da mesma expressão anterior, “Os escravos do meu avô preferiram continuar trabalhando na fazenda mesmo depois da abolição”, permite identificar uma outra falácia que ignora o fato de os escravizados libertos simplesmente não terem para onde ir, e, para onde quer que fossem, sofreriam alijamento, exploração, humilhação.

Podemos entender neste contexto que as relações étnico-raciais no Brasil sejam caracterizadas por um racismo inscrito de modo institucional e estrutural, não sendo identificado como um fator nocivo para as possibilidades e perspectivas de vida social, política, econômica, profissional do sujeito.

A consequente desigualdade de oportunidades e modos de vida assim geradas alimenta um ciclo vicioso de relações permeadas por dominação e subserviência, que consequentemente influencia o desenvolvimento psicossocial do sujeito, na mesma proporção de graves ações traumáticas, individuais e coletivas.

Neste cenário, penso ser importante destacar que a maioria das abordagens clínicas, sejam elas preventivas, curativas ou de reabilitação, raramente consideram e integram na sua prática aspectos raciais, sociais, culturais e políticos.

A desconsideração do racismo como um fator causador de doença é definitivamente uma lacuna que precisa ser entendida, elaborada e sanada.

Entendo que o racismo tem uma dimensão traumática para toda a sociedade, qualquer que seja a etnia dos cidadãos desta sociedade, já que ele está integrado na dinâmica social do país há séculos, a partir de uma mentalidade escravocrata ainda atual.

O racismo atinge tanto a população negra, enquanto objeto que o sofre, quanto a população branca, enquanto seu agente. Portanto, a violência estabelecida nesta relação respinga para os dois lados, mesmo que com características diversas.

Estou generalizando sujeitos negros e brancos com a intenção de simplificar, na reduzida pretensão deste texto, uma realidade que certamente é bem mais complexa, composta de sujeitos únicos, com posturas individuais diante do racismo. Porém vou manter ao longo do texto a denominação generalizada de “negros” e “brancos” com a finalidade de representar um imaginário racista estabelecido no coletivo da nossa sociedade.

Explicando melhor: o racismo está internalizado em todos os que vivem em uma sociedade estruturalmente racista. Estou me referindo a um processo muitas vezes inconsciente, naturalizado e aceito dentro de uma “normalidade” social, como os estereótipos. Esse aspecto é de extrema importância na prática clínica terapêutica.

Para que a relação paciente-terapeuta facilite o acesso, a representação e a elaboração das consequências traumáticas do racismo, essa relação precisa permitir que processos intra e interpsíquicos de elaboração e simbolização aconteçam tanto com o paciente como com o terapeuta. Ou seja, ambos vão precisar se confrontar com seu racismo internalizado.

Levando-se em consideração que a maioria dos profissionais psicanalistas e terapeutas em geral não é constituída por negros, como consequência da própria discriminação racial, que dificulta a ascensão sócio-cultural da população negra e pobre, é muito importante que o analista não negro atente para que a relação analítica/terapêutica não reencene comportamentos racistas. O mesmo se aplica a um analista negro, que passe a ocupar uma posição até então praticamente exclusiva da privilegiada população branca.

Como entender de que modo uma vivência traumática age na contramão da produção de saúde mental?

Uma distinção importante a ser feita é entre a vivência de um traumatismo, o estado traumático e as alterações patológicas duradouras.

O entendimento dessas distinções importa, pois as consequências diretas de vivenciar uma situação traumática podem ser patogênicas, embora não necessariamente. Nem todas as situações traumáticas têm o mesmo efeito em todas as pessoas, assim como fatores predisponentes também devem ser levados em consideração. A duração e a intensidade do(s) evento(s) traumáticos precisam igualmente ser consideradas, bem como a época de vida em que o trauma ocorre.

Trauma é um conceito que vincula um evento externo com suas consequências específicas para a realidade psíquica interna. Nessa medida, é um termo relacional (Fischer e Riedesser, 1998).

O trauma psíquico é um acontecimento que arrebata abruptamente a capacidade do Eu de proporcionar uma sensação mínima de segurança e plenitude integradora, resultando que o Eu vivencie medo ou impotência avassaladores o suficiente para se sentir ameaçado, provocando modificações permanentes na organização psíquica (Cooper,1986, p. 44).

Um fator essencial nessa definição é a característica repentina, disruptiva e incontrolável do evento traumático e a experiência de tornar o Eu indefeso. A experiência traumática confronta o Eu com um "fato consumado" (Furst, 1977, p. 349). As reações do Eu chegam tarde demais. Elas não acontecem como resposta a um perigo iminente, mas somente depois que ele se tornou realidade e o Eu foi passivamente rendido a esse perigo. Krystal (1978) fala em "trauma catastrófico", onde o fator central é o desamparo, desencadeado por sua avaliação subjetiva. Se o perigo é visto como inevitável, o desamparo se transforma em um desistir de si mesmo. As reações de autossubsistência estão prejudicadas. Para Krystal, esse ataque ao psiquismo do sujeito pelo agente traumático, que lesiona a função de defesa e a função expressiva do medo, levando à inibição de ambas as funções, seria o verdadeiro evento traumático. Nesse caso a função de autopreservação, de valorização da própria vida permanece bastante prejudicada, muitas vezes inibida.

É impossível para o Eu integrar mentalmente a experiência traumática. A atribuição de significado é interrompida, porque o fortuito e inesperado do evento não pode ser absorvido por estruturas de significado anteriores. Um efeito duradouro e não temporário, importante para a definição de trauma, é que a confiança básica é destruída e leva a um "estilhaçamento permanente da compreensão de si mesmo e do mundo" (Fischer e Riedesser, 1998, p. 79).

Enquanto estivermos com consciência de autopreservação e reagindo a nosso favor em relação aos nossos medos, não estaremos aprisionados no estado traumático.

Porém, a complexidade no caso do racismo, no meu entender, é que há muitas nuances entre o estado de aprisionamento traumático, onde há quase uma paralisia e um desistir de si mesmo, e o estado de um funcionamento mental saudável e favorável a si mesmo. A constância, a cronificação e o efeito cumulativo das vivências traumáticas devidas ao racismo cotidiano secular interferem nos mecanismos de defesa e nas expressões reativas ao medo. Esses, que deveriam agir a nosso favor, podem já não funcionar como de fato deveriam no cuidado da autopreservação e como geradores de bem-estar e plenitude. Como se o Eu reconhecesse determinados ataques nocivos como normatizados e toleráveis, não resultando necessariamente numa paralisia, sem deixar, no entanto, de causar inibições e restrições ao seu funcionamento. Essas inibições e restrições, por passarem despercebidas, podem resultar em sofrimentos, sintomas e transtornos de comportamento que passam igualmente despercebidos. Como se estivéssemos tolerando chibatadas, nos movimentando com grilhões no corpo e nos expressando com uma mordaça na boca, sem nos darmos conta disso.

Diretamente relacionado aos aspectos acima descritos é o caráter transgeracional deste racismo traumático, ou seja, as consequências lesivas são transmitidas de forma inconsciente e herdadas sem possibilidades de serem identificadas na sua relação causa e efeito, como se sujeito já viesse ao mundo com uma dívida que não contraiu.

A atuação antirracista, portanto, faz uma conexão direta com a produção de saúde mental, assumindo não só uma função curativa, como também preventiva, tanto na clínica como no cotidiano social e político de todos nós. Sem uma atuação antirracista enquanto cidadãos não conseguiremos construir uma sociedade saudável e de fato humanizada.

E para concluir convido para uma discussão sobre o traumático de um sujeito branco que presenciou, presencia e usufrui de toda essa violência secular. Nomino como também traumáticas essas vivências para o branco, porém essa afirmação carece de uma discussão mais aprofundada entre brancos e negros principalmente. Ocorre-me por exemplo, a maternagem pela mãe preta, hoje atualizada na figura da babá, recebida por uma criança branca, que sabe ter uma mãe biológica branca. Se admitirmos ser essa mãe branca representante de uma sociedade que violenta e despreza a mãe preta, enquanto representante da mulher coisificada, já podemos questionar uma contradição estabelecida.

Poderia essa mulher negra que amamenta, alimenta, cuida e muitas vezes acolhe também suscitar desejos na criança branca, inclusive libidinosos, que, mesmo realizados, de modo coercivo ou não, permaneçam conflituosos? Essa maternagem também pode vir carregada de mágoas, ressentimentos, raiva, já que, tanto a mãe preta escravizada como a babá subempregada dos dias atuais, vivenciam a incoerência de terem que descuidar do seu filho biológico, para cuidar dos filhos privilegiados. Isso não afetaria também a criança que está sendo cuidada?

O mesmo fenômeno presenciamos em relação à convivência desta criança com vários outros “serviçais”, em sua maioria negra, dos quais é muitas vezes dependente, como o motorista, o porteiro, o faxineiro, a cozinheira etc., mas pelos quais alimenta o sentimento de serem pessoas de segunda categoria. Convive e depende de pessoas que muitas vezes lhe evocam medo, ojeriza, estranhamento, das quais quer manter distância. Como se convivesse diariamente com um inimigo perigoso, mas necessário por lhe prestar serviços essenciais e com baixa remuneração.

Não seria isso um comportamento quase perverso, equivalente a um fenômeno psicótico, onde mecanismos de defesa como a clivagem, a negação, a projeção e a identificação projetiva predominam?

Esses questionamentos remetem à necessidade de revisão da comemoração de 13 de maio e do mês de novembro. No meu entender, novembro não deveria ser isoladamente o mês da consciência negra, e sim o mês da consciência do racismo para toda a população brasileira. Um mês que encabeçasse a inclusão de todos os meses restantes do ano em um movimento antirracista permanente de toda a sociedade.



São Paulo, 04/10/2021



7. Referências Bibliográficas e leituras complementares:

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[1] Médica psiquiatra e psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e interlocutora do Grupo de Trabalho, Estudo e Pesquisa A Cor do Mal Estar: da Invisibilidade do Trauma ao Letramento no mesmo Departamento; membro do Instituto Psicanalítico de Berlim (PaIB).




 
 
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