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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    61 Novembro 2021  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

DESALIENAÇÃO: COMENTÁRIO PARA UMA PROPOSIÇÃO ANTIRRACISTA


PAULA FRANCISQUETTI [1]



O debate acalorado em diferentes grupos de psicanalistas instigou-me a escrever um comentário sobre a desalienação e o racismo em relação aos afrodescendentes. Quando poderemos desmontar o já antigo e insidioso apartheid brasileiro escamoteado por uma narrativa de democracia racial? Por que tal questão diz respeito aos psicanalistas?

 

Tais debates aconteceram no contexto da desastrosa gestão da pandemia da Covid-19 no Brasil, que tem levado ao agravamento vertiginoso e obsceno das já conhecidas e injustas desigualdades sociais. Tem sido divulgado continuamente o descaso governamental em relação à pandemia. É grande o número de mortos entre os afrodescendentes, nas camadas mais pobres da população, sem acesso à escolarização e sem o direito a uma vida digna. As violências, os assassinatos e os massacres, como o da favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro em maio de 2021, além dos mortos na pandemia, apontam para o racismo estrutural. A história colonial repete-se com seu rastro de sangue e morte. Essa trágica herança continua a produzir mal-estar, mortes e pesar sobre nós, brancos, afrodescendentes e indígenas[1], diferentemente.

 

Sem que todos tenham possibilidade a uma vida digna, não teremos democracia nem justiça social. Sem o respeito mútuo e o direito a um lugar para viver bem, continuaremos murados e na cegueira para o que é vivido por todos nós. Kilomba (2019) afirma que o grande problema do racismo não é a diversidade, mas a desigualdade; quando a diferença leva ao estigma, à desonra e à inferioridade. Ela aponta três níveis de racismo: o estrutural (revelador da exclusão de grupos racializados das estruturas de poder), o institucional (presente na elaboração de agendas e políticas de educação, de emprego e outras que privilegiam os brancos) e aquele do cotidiano (de caráter constante, repetitivo).

 

O racismo atravessa diversas camadas da vida, sobretudo as subjetividades, sendo fundamental para seu combate tocarmos na questão da alienação ainda existente em relação à percepção deste, tendo como uma de suas faces a indiferença. A psicanálise, por sua vez, traz-nos em seu fundamento, em seu coração, a proposição de desalienação[2], implícita na formulação do método psicanalítico da livre associação, de abertura ao inconsciente, de fazer saber a partir do sujeito que fala para um outro/Outro em transferência.

 

No livro A interpretação dos sonhos (1900), Freud configura um percurso iniciático (Roudinesco, 2016). Ao escrevê-lo, faz o difícil luto do pai e se afasta do amigo Fliess. Tal percurso é considerado iniciático porque visa a transformação de si mesmo, ao exercício de uma prática que envolve transformação através da experiência do inconsciente. Muitos dos sonhos da autoanálise de Freud são apresentados e interpretados nesse livro, experiência que torna possível a ideia do inconsciente, como proposta na primeira tópica freudiana, e o descentramento da consciência decorrente dela.

 

A criação da psicanálise passa por essa experiência seminal da autoanálise de Freud, experiência do inconsciente. Todo leitor do livro dos sonhos é convidado a refazer esse percurso que propicia a abertura ao inconsciente através do método de livre-associação, proposto logo no capítulo dois. Pode-se considerar que tal mergulho, para além da ponta do iceberg, implica um movimento de deslizamento do sentido e de desalienação, como propõe Regina Chnaiderman (1988), em seu belo e fundamental texto "Política de formação em psicanálise - alinhavando algumas anotações de leitura". Para ela, não se trata de mera teorização em torno de um objeto, mas de fazer o sujeito falar, fazer saber e não saber fazer, encarnar o sentido e com isso "aceder a uma historicidade ao mesmo tempo singular e coletiva" (Chnaiderman, 1988).

 

No Sonho do Conde Thun[3], de 1898, apresentado por Freud no quinto capítulo do livro dos sonhos, que trata do material e das fontes do sonho, podemos observar essa dupla vertente do singular e da história coletiva.

 

Para o que nos interessa na presente discussão não seria o caso de uma análise exaustiva do sonho, mas de apontar fios que levam Freud tanto ao infantil como ao momento histórico de uma Áustria que traz as recentes marcas da revolução burguesa de 1848, seguida da retomada da monarquia pelos Habsburgo. Freud privilegia o caminho em direção às determinações do infantil, para ele fonte dos sonhos, mas não deixa de trazer aos leitores os restos diurnos de uma viagem de trem até Aussee, onde passaria alguns dias de férias. Informa-nos que na plataforma do trem nota como o conde Thun, em viagem para encontrar o Imperador em Ischl, se vale de sua condição para rechaçar o controlador de passagens. Presta atenção em outros passageiros que apelam para obter um compartimento de primeira classe, o que o faz cantar jocosamente um trecho de As bodas de Fígaro.

 

Com ânimo altivo e revolta, Freud recorda uma peça assistida em Paris na Comédie Française, assim como das piadas feitas por jornalistas em relação ao conde Thun [fazer], ao chamá-lo de conde Nichststhun [nãofazernada]. E ainda, sorri ao se considerar o verdadeiro Nichststhun [nãofazernada] por suas férias. Ao entrar no trem, recebe um compartimento sem acesso ao banheiro e sugere ao funcionário abrir um buraco no piso. Durante a viagem, embalado por essa atmosfera de atrevimento, sonha e acorda com vontade de urinar.

 

Um dos pontos nodais dessa fantasia expressa em imagens, é o sonhador segurando um urinol [glas = vidro, lente] para um velho caolho em situação pública. Ao mergulhar na análise do sonho Freud faz diversas associações[4]. Tomo uma delas: a lembrança de quando Freud tinha cerca de 7 a 8 anos e urinou no quarto dos pais, desconsiderando a discrição. O pai teria dito: "esse garoto nunca será alguém na vida" (Freud, 1900). Ofensa terrível a que o sonho trará resposta, pois o homem mais velho da parte final do sonho é associado ao seu pai, dado o problema dos olhos. Assim, Freud troça e se vinga do pai, ao colocá-lo urinando num lugar público. Essa imagem traz alusões à sua descoberta dos poderes anestésicos da cocaína, utilizada na cirurgia de glaucoma do pai e à histeria, pois teria colocado lentes sobre o sentido de seus sintomas.

 

O ponto de intersecção dessas duas linhas é a revolta de Freud em relação à autoridade paterna e em relação à monarquia imperial e seus representantes, como o Conde Thun. Durante o período da monarquia, era pouco provável que Freud, sendo judeu, pudesse ser nomeado professor, o que tanto ambicionava. Depois do período alentador que se seguiu à revolução de 1848, teve início um período monárquico imperial, retrógrado, no qual pouco a pouco se alastrou o antissemitismo.

 

Em tal sonho, a grande história se entrecruza com a pequena história, a dimensão edípica do infantil. Lembremos que o sonho, fantasia, fachada lacunar, é sobredeterminado e tecido por muitos fios num entrelaçamento de tempos.  Freud, ao se voltar para seus próprios sonhos à maneira da livre associação, acessou esse entrecruzamento, num movimento de desalienação em relação a seu lugar infantil ante o pai e a história dos povos. Surge também nas linhas de discussão do sonho citado, a identificação de Freud com Fischhof, líder estudantil da revolução de 1848, evocada pelo jubileu de 1898 e associada a uma excursão que Freud teria feito a Wachau, onde conheceu o retiro deste. Segundo Roudinesco (2016), ambos, Freud e Fischhof, rejeitavam o catolicismo romano e a dinastia dos Habsburgo, mas estavam envolvidos em diferentes revoluções.

 

No processo de escrita do livro dos sonhos, Freud lança a pergunta se o infantil não constituiria uma condição essencial ao sonhar. O infantil no atual, o inatual, como motor do sonho. Mais tarde, com a segunda tópica e autores mais contemporâneos, veremos como os restos diurnos e a dimensão do traumático se tornam cada vez mais importantes para se pensar o sonho, que deixa de ser apenas realização de desejo para se tornar espaço de elaboração, intercessão em direção a uma transformação subjetiva se acolhido com hospitalidade e tentativa de realização de desejo, às vezes possível, outras vezes não. No sonho traumático, trabalhado por Freud no texto de 1920 "Além do princípio do prazer", está em jogo a compulsão à repetição e sua tentativa de mudança do além do princípio do prazer para o princípio do prazer, o que pode trazer um ganho para a economia psíquica.

 

Nesse sonho do Conde Thun, o resto diurno associado aos desejos infantis recalcados encontra possibilidade de elaboração ao entrar na cadeia associativa e produzir pensamentos na forma de imagens, através da trilha do desejo. Sabemos que Freud criou e muito, ou seja, pôde dar um destino criativo e vital aos seus sofrimentos.

 

Kon (2017) faz um importante comentário sobre a posição de Freud de contracorrente em relação a seu tempo, dada a sua revolta em relação ao antissemitismo, despertada em muitas situações, como, por exemplo, quando colocado diante da humilhação do pai na calçada, quando esse teve seu chapéu jogado na lama, e da dificuldade em aceder ao posto de professor da universidade de Viena. O fato de ser judeu o teria levado ao enfrentamento dos preconceitos a que outros estavam presos e a não aderir de forma cega à massa[5].

 

Retomando o fio do sonho: nem sempre o que vem como resto diurno pode ganhar imagem, entrar na cadeia associativa e encontrar possibilidade de simbolização. Sabemos que a história, com seus momentos catastróficos traz como efeito a dimensão traumática, o inenarrável, o irrepresentável e a impossibilidade de integração na cadeia psíquica (simbolização primária) e de apropriação subjetiva.

 

Nascido na Martinica, Frantz Fanon, com estudos de psiquiatria em Lyon, ainda muito jovem, lutou nas forças da resistência francesa contra o nazismo. Participou também da inovadora experiência de criação da psicoterapia institucional com Françoise Tosquelles em Saint-Alban, França. Pensador militante e atuante da resistência argelina, deixou-nos uma obra que tem sido cada vez mais influente na área de humanidades e estudos pós-coloniais. Entre seus temas encontramos questões que tocam as relações entre psiquismo e história, psiquismo e realidade social, racismo e colonialismo. No livro Pele negra, máscaras brancas, ele faz a crítica da interpretação de O. Mannoni de sete sonhos de malgaxes, em que o elemento dominante é o terror. Aponta para a importância do contexto social em que tais sonhos aconteceram. Diz ele: "É preciso recolocar o sonho no seu tempo, e este tempo é o período em que oitenta mil nativos foram assassinados, isto é, um habitante para cada cinquenta" (Fanon, 2008, p. 98). Sem os fios que ligam tais sonhos à grande história, a interpretação fica reduzida a um exercício estéril.

 

Em nosso país, a história e o caráter constitutivo do sistema escravocrata na formação da República têm sido escamoteados pela narrativa do Brasil como democracia racial, algo difícil de ser sustentado diante das sequelas sociais e psíquicas que perduram até o momento atual. Muitos analistas têm trabalhado com essa questão, pois sem o reconhecimento histórico da escravização e de seus efeitos no racismo atual, não se torna possível a elaboração psíquica, a saída da dimensão, muitas vezes, traumática, mantida através da transmissão geracional e dos mecanismos de reprodução social material e imaterial da desigualdade. Segundo Marisa Corrêa:

 

Um aspecto importante de ser destacado é que essa transmissão de geração a geração pode acontecer mesmo que a geração seguinte não tenha diretamente vivenciado o trauma ou não o tenha vivenciado com a mesma intensidade e da mesma forma que a geração anterior. Com esta afirmação, não estou excluindo a probabilidade de que o modo como cada um, nesse contexto, se vivencia, lida, reage e se comporta em relação a esse trauma seja também influenciado pela sua história individual. De qualquer maneira, mesmo levando-se em consideração o histórico individual, acredito ser fundamental... Desta forma conseguiremos entender, com maior facilidade, as dinâmicas que perpetuam as condições de precariedade social, cultural, educacional, econômica e de saúde do País. (Corrêa, 2020)

 

Em 2020, numa palestra virtual, durante a pandemia da Covid-19, chamada "A escuta psicanalítica hoje: a criança-mundo", Radmila Zygouris, psicanalista residente na França, fala sobre a "constelação" de crianças da psicanálise. Discorre sobre essas várias crianças presentes no céu da psicanálise, ou seja, a criança edípica, a criança do carretel, a criança da mãe-ambiente, a criança que sofreu traumas de guerra ou outras violências, a criança-mundo que cresceu interagindo com as telas. Irei me deter no ponto da palestra em que ela comenta sobre a criança que sofreu traumas que passam pela grande história e não pôde ser protegida por seus pais da violência mortífera, sendo assim exposta a algo da ordem do inominável.
 

Zygouris então ofereceu um testemunho importante sobre sua experiência no pós-guerra e a dificuldade dos analistas com a análise de pessoas que teriam passado por traumas durante a Segunda Guerra, pois nestes casos não bastava a análise da problemática edípica, mas era fundamental levar em conta a dimensão traumática, considerando o cruzamento da pequena e da grande história. Trata-se, neste ponto, de restabelecer a verdade dos eixos históricos, genealógicos; do analista não desconsiderar os movimentos da grande história e seus efeitos psíquicos e assim propiciar um reposicionamento do sujeito.

 

Fica a questão sobre o quanto os psicanalistas no Brasil têm considerado o racismo presente entre nós, os possíveis traumas e outros efeitos decorrentes do momento da escravização que ainda persistem nas várias faces da violência que atinge afrodescendentes. É fundamental um movimento de desalienação em relação à grande história e seus efeitos traumáticos em várias gerações. Não haverá democracia possível sem esse deslocamento ético e político.

 

O psicanalista francês, Jean Oury, que viveu e trabalhou em La Borde, na região do Loire, na França, toca nessa questão da abertura e da alienação presente na vida de todos nós e também dos loucos, ditos "alienados", com quem conviveu e trabalhou por muitos anos. Ele diz:

 

A análise é para enxertar... a abertura, porque na vida cotidiana, alienada, fazendo de conta que somos livres, estamos fechados. Fechados nos hábitos, com os amigos, com a família, estamos fechados numa estereotipia. A gente não escapa. (Oury, 2009)

 

O quanto as análises têm promovido abertura e saída da estereotipia? Oury (2009) também cita o termo análise do saber de Blanchot, que retoma algo fundamental da relação da psicanálise com a produção de conhecimento. Salienta que, no discurso freudiano, a colocação em questão do saber, a análise do saber, é permanente. Segundo Oury (2009), no livro de Blanchot, A conversa infinita, há uma insistência nessa questão: "o saber nunca é absoluto, tem que ser requestionado o tempo todo". Essa questão epistemológica, do saber, aliás, do fazer saber, da pesquisa clínica e teórica, é fundamental para que a psicanálise se mantenha viva, em movimento e à altura das questões de seu tempo.

 

Oury (2009) comenta algo importante sobre o encontro com o esquizofrênico, esse que faz permanentemente perguntas sobre a própria existência e a origem:

 

Chega-se a dizer que uma verdadeira interpretação certamente não é uma explicação, mas é algo que toca. Algo que é um verdadeiro encontro, e o verdadeiro encontro é inesperado... Mas para haver encontro, não se pode estar cheio de preconceitos, é preciso recolocar em questão a noção de neutralidade. Eu sempre digo que a neutralidade é um processo ativo para se livrar de todos os preconceitos da sociedade, para chegar a um verdadeiro encontro, mesmo com esquizofrênicos. O que está em questão em um encontro com o esquizofrênico e com outros é o que Lacan chama de função menos um, que não se misture com a vida cotidiana, e a posição transferencial é poder assumir (é uma palavra ruim [experimentar]) essa posição menos um... distância, estranhamento, abertura a multiplicidade... (Oury, 2009)

 

Do lado do analista: o não saber para fazer saber. A posição menos um que implica distância, assimetria, abertura à multiplicidade, estranhamento, espera do inesperado. O trabalho para se deslocar dos preconceitos e do racismo é parte fundamental do trabalho psíquico de um analista para que ele possa manter a posição menos um, a abertura e a possibilidade de escuta. No que concerne a este texto, o deslocamento em relação ao racismo é importante para que se possa escutar e dar lugar a um novo saber, singular e coletivo. Vivemos atravessados por crenças e normatizações que tendem a nos fixar em determinados lugares gerando por um lado ganhos, privilégios e, por outro, mal-estar. Uma análise, entre outras coisas, pode nos levar ao enfrentamento em relação a essas crenças e normatizações, às cristalizações de comportamento, como aquelas provindas da herança escravocrata, tendo como vetor a valorização do branqueamento e o rebaixamento dos negros, tudo isso que vem como herança maldita da colonização ainda tão entranhada entre nós. Outros exemplos de questões dessa ordem seriam as normatizações do gênero, a hegemonia da heterossexualidade...

 

Uma análise é uma oportunidade de deslocamento desses lugares de morte que servem à lógica da desigualdade e sua perpetuação. Sabemos por Foucault que certa psicanálise serve a esta mesma reprodução da desigualdade, que certas análises se prestam à adaptação e à conformidade com o mundo injusto. Diferentemente disso, outras análises podem, entre outros aspectos que implicam um trabalho de análise, promover um deslocamento do racismo, do preconceito de gênero, ou seja, uma subversão e a afirmação de inúmeras possibilidades de vida, de sexualidade. Qual é nossa posição quanto a isso?

 

O filósofo dos Camarões e residente na África do Sul, Achille Mbembe, propõe uma ética da restituição e da reparação, reparação porque a história deixou lesões e marcas profundas. Seu convite é fundamental no nosso momento histórico em que está em jogo a democracia.

 

Enquanto persistir a ideia de que só deve haver justiça aos seus e que existem raças e povos desiguais, e enquanto se continuar a fazer crer que a escravidão e o colonialismo foram grandes feitos da "civilização", a temática da reparação continuará a ser mobilizada pelas vítimas históricas da expansão europeia e da sua brutalidade pelo mundo. Nesse contexto, é necessária uma dupla estratégia. Por um lado, é preciso abandonar o estatuto da vítima. Por outro lado, é preciso romper com a "boa consciência" e a negação da responsabilidade. É sob essa dupla condição que será possível articular uma política e uma ética novas, baseadas na exigência de justiça. (Mbembe, 2018, p. 306-307)

 

Qual é o posicionamento de cada um de nós na história brasileira? Uma abertura em relação a isso não possibilitaria um devir outro da psicanálise? As resistências em relação a saída de um lugar de privilégio não são poucas. Sabemos como a resistência está sempre colocada quando há jogo de poder. É difícil se desfazer de defesas há muito moldadas, deparar com a culpa, a vergonha, mas é fundamental. Só assim será possível o reconhecimento de nossa história extremamente violenta, trágica, e o engajamento em outras possibilidades de vida para todos na direção de uma política do semelhante em que o outrem seja tomado tanto em sua diferença como em sua semelhança.

 

Agradeço ao grupo de trabalho A cor do mal-estar por provocar em mim um movimento de desalienação, trabalho de deslocamento cotidiano e que não escapa do mal-estar.

 

Bibliografia

CHNAIDERMAN, Regina. Política de formação em psicanálise - alinhavando algumas anotações de leitura. Revista Percurso, n. 1, p. 11, 1988.

CORREA, Marisa. Escravidão, racismo e personalidade aprisionada. Jornal Nação Z, do dia 31/03/2020.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FREUD, Sigmund. Obras completas, vol. 4: a interpretação dos sonhos (1900). Tradução de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação - episódios do racismo cotidiano. São Paulo: Cobogó, 2019.

KON, Noemi M.; Silva, Maria Lúcia da; Abud, Cristiane. C. (orgs.). O racismo e o negro no Brasil - questões para a psicanálise. "À guisa de apresentação: por uma psicanálise brasileira". São Paulo: Perspectiva, 2017.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

NUMBERG, H; FEDERN, E. (compiladores). Las reuniones de los miércoles. Actas de la Sociedad Psiconalítica de Viena. Tomo II (1908-1909). Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1980.

OURY, Jean. Síndromes patoplásticas. Instituição e estabelecimento. As diversas formas de alienação. Boletim Online n. 11, novembro de 2009. http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_visor&pub=11&ordem=2&origem=ppag

 ROUDINESCO, Elizabeth. Sigmund Freud - na sua época e em nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

ZYGOURIS, Radmila. Palestra "A escuta psicanalítica hoje: a criança-mundo", realizada na forma online dia 14 de julho de 2020.



[1] No escopo deste texto não será possível entrar na questão importantíssima dos povos indígenas que habitam o território brasileiro e que, como a população afrodescendente, têm sido objeto de descaso no contexto da pandemia da Covid-19 e alvo de um terrível genocídio em curso.

[2] Trata-se aqui da desalienação em relação aos desejos, no sentido freudiano.

[3] Sonho do Conde Thun:

Multidão, reunião de estudantes. - Com a palavra, um conde (Thun ou Taaffe). Convidado a dizer algo sobre os alemães, ele, com seu gesto derrisório, declara a unha-de-cavalo a flor preferida desse povo, e prende algo parecido com uma folha rasgada - na verdade, um esqueleto de folha amassada - em sua botoeira, eu me irrito, então me irrito, mas me admiro dessa atitude.

Como se fosse o auditório, as entradas são obstruídas e é preciso fugir. Eu abro o caminho e passo por uma série de aposentos belamente decorados, claramente salas governamentais, com móveis de uma cor entre marrom e violeta, e por fim alcanço um corredor, onde está sentada uma governanta, uma senhora gorda de meia-idade. Evito falar com ela: evidentemente, porém, ela me considera autorizado a passar por aqui, pois me pergunta se quero que me acompanhe com a lanterna. Eu lhe dou a entender ou lhe digo que deve ficar parada na escada e me acho muito esperto por evitar o controle na saída. Então, estou embaixo e acho um caminho estreito e íngreme que leva ao alto, e o sigo.

Como se agora viesse a segunda tarefa: sair da cidade, como antes saí de casa. Estou num fiacre e ordeno que seja levado para a estação de trem. "Não posso fazer o trajeto do trem com o senhor", digo após o cocheiro protestar, como se eu o estivesse cansando. Parece que já percorri com ele um trajeto que normalmente se faz com o trem. As estações ferroviárias estão ocupadas: pondero se devo ir a Krems ou Znaim, mas penso que lá deve estar a corte, e então decido seguir para Graz ou algo assim. Agora estou sentado no vagão, que se parece com um bonde, e tenho na botoeira uma coisa longa e estranhamente tecida, presas nela, violetas roxo-castanho feitas de material rígido, o que chama muito a atenção das pessoas.

Novamente estou diante da estação de trem, dessa vez, porém, na companhia de um senhor idoso; invento um plano para não ser reconhecido, e já vejo esse plano realizado. Pensar e vivenciar são uma coisa só. Ele imita um cego, um caolho, pelo menos, e eu seguro para ele um urinol (que compramos ou precisamos comprar na cidade). Portanto, sou um enfermeiro e tenho de segurar um urinol, porque ele é cego. Se o controlador nos vir assim, ele nos deixará passar sem que chamemos a atenção. Vejo de maneira plástica a postura do homem e seu membro em micção. Segue então o despertar com o impulso de urinar. (Freud, 2019, p. 247-249)

[4] Cito a seguir apenas associações relativas ao ponto nodal citado para o leitor ter ideia das ramificações em jogo. Para mais explorações sugiro a leitura do item b) do capítulo V de A interpretação dos sonhos. São elas: a história de uma camponês que foi ao oftalmologista e tenta várias lentes, mas não sabe ler; a lembrança de La Terre de Zola, em que camponeses se satisfazem ao notar que o pai demente sujou a cama como criança; o drama revolucionário de Oskar Panizza, em que um arcanjo tenta impedir Deus de vociferar contra seus opositores, pois sua palavra poderia fazer cumprir desgraças; o cálice de veneno de Lucrécia Borgia em forma de urinol exposto na última noite de Gshnas.

[5] Com relação ao racismo e ao preconceito é importante comentar duas atas das reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena, uma de 16 e outra de 23 de dezembro de 1909, publicadas no Tomo II (1908-1909). Estavam presentes: Freud, Adler, Bass, [A.] Deutsch, Federn, Hitschmann, Hollerung, Joachim, Rank, Rie, Sadger, Schwerdtner, Steiner, Stekel e Wittels. Na reunião o convidado Ehrenfels, conhecido eugenista, comenta o livro de Wittels, "O infortúnio sexual", em que há proposições de reforma social. Tal debate causa estranhamento ao leitor contemporâneo, pois o convidado propõe que a poligamia e a plena satisfação sexual seja permitida aos homens de "mérito", como maneira de depuração da raça e meio de enfrentamento da ameaça amarela (chinesa). O racismo e o machismo, por parte do convidado, são patentes. Encontram-se também comentários misóginos por parte de Wittels, como por exemplo, ao afirmar que as mulheres teriam menos condição de sublimação e suas obras teriam qualidade inferior. Notamos que Freud não embarca em tais comentários, mantém-se a parte; por outro lado, presencia o debate no dia 16 e propõe ao convidado voltar dia 23. Apesar disso, considero inequívoca a abertura de Freud, pois do contrário não teria realizado tal obra em que o movimento de criação e reformulação dos conceitos é notável. Tais documentos mostram-nos o difícil e retrógrado clima da época que culminaria no nazismo e no Shoá (em que morreram três irmãs de Freud: Marie, Rosa e Pauline). Tal questão merece aprofundamento posterior, mas considerei importante colocar esta nota para dar ideia da atmosfera em que Freud viveu e da complexidade da sua tarefa. Sabemos do perigo de uma versão única das histórias e o quanto o deslocamento do racismo e dos preconceitos é um processo. Agradeço à Flávia Ripoli o apontamento de tais atas. 




 
 
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