PROPOSIÇÃO DE AQUILOMBAMENTO AFETIVO [1]
GTACME
O Grupo de Trabalho A Cor do Mal-Estar é um grupo de estudos e pesquisa
que se propõe também e principalmente a transformar estruturas e combater o
racismo.
Como foi possível que, por tanto tempo, nós, psicanalistas, tenhamos
ignorado o fosso racial e social que constitui nossa sociedade? O que
impediu nossa identificação com essa questão e o que nos levou a clivá-la
de nosso imaginário de pertencimento? O que produziu esse despautério? O
fato de nossa sociedade ter negado e ignorado a luta antirracista nos faz
tomar essa questão como prioridade. Entendemos que essa clivagem só́ pode
ser explicada pela violência dos privilégios da branquitude na história da
Psicanálise e das instituições psicanalíticas, o que inclui, sem dúvida,
esta instituição.
Pretendemos apresentar uma metodologia experimental de letramento racial e
convidar as(os) integrantes do CD a encampar essa luta conosco. Não temos
ainda uma metodologia academicamente estruturada. Estamos construindo uma
metodologia experimental, um laboratório psicanalítico, que teve início
como um “big bang”. A partir de nossa história como grupo, que inclui a
leitura de textos, a circulação da fala e da escuta e a sustentação de
tensões e mal-estares, foram desencadeadas questões que remexeram o nosso
racismo introjetado, clivado, recalcado, negado. Esse processo tem nos
virado do avesso, nos tensionado e nos desafiado a sustentar o mal-estar e
a fazer, desse trabalho conjunto, conscientização, confrontação e
desconstrução do racismo.
No GTACME vivenciamos, desde o início e ainda hoje, nas relações intra e
intersubjetivas entre os componentes do grupo, situações de tensão, que
geram enormes desconfortos por explicitarem comportamentos racistas em nós
mesmos, internalizados por causa da secular relação com a nossa estrutura
vigente de dominação. A identificação desses comportamentos confirma a
necessidade de nos havermos com as nossas próprias posturas e atitudes, se
quisermos construir qualquer ação antirracista que cumpra verdadeiramente
seu objetivo.
A experiência de quase três anos de trabalho tem nos levado ao entendimento
de que, se queremos ações eficazes, precisamos sustentar esse mal-estar,
essa tensão de confrontação, confiando que o que nos une é o desejo comum
de combater o racismo.
No Brasil, a maioria das instituições psicanalíticas historicamente se
constituiu no contexto da branquitude. Numa perspectiva fanoniana, propomos
uma luta política, concreta e simbólica de rompimento com o “mundo branco e
suas máscaras”. A luta por uma psicanálise mais diversa e arejada na sua
prática e transmissão contribui para um ato de transformação social. É
neste desejo comum de rejunte dos afetos que nos aquilombamos como forma de
ocupar um espaço de construção da negritude e conscientização da
branquitude no campo psicanalítico.
O letramento racial proposto não é apenas uma alfabetização conceitual do
conjunto de práticas baseada em cinco fundamentos, conforme cunhou a
socióloga americana France Winddance Twine [2], mas a experimentação
dessas práticas em uma dimensão psicanalítica de desalienação que nos
permita questionar e denunciar a violência do racismo.
Em nosso grupo, essa noção de letramento ganha outro desenho, outras
facetas. Para nós, letramento é lançar luz negra sobre a hegemônica razão
branca vigente, que está acostumada a se impor e a não ser questionada. Ao
resgatar as banalizações e naturalizações correntes, destacam-se os
elementos racistas que persistem atravessando centenas de anos de nossa
história, de nossos hábitos e de nossas culturas, até os dias atuais, em
que ainda se encontram normatizados e em processo de atualização. Também, o
letramento nos convida ao desafio de olharmos para o que é sombra em nós
mesmos e a experimentarmos o mal-estar que vem à tona ao nos confrontarmos
com o racista que está ali, recalcado, alimentando defesas das quais
devemos nos despir como parte do processo. Permanecer diante da nossa
sombra sem desviar o olhar evoca em nós uma tensão - tal qual o calor é
para a fusão o elemento necessário para a mudança de estado, ou seja, é
indispensável para a transformação. Portanto, devemos suportar e sustentar
esse olhar e essa tensão, em um exercício não apenas de autoperscrutação,
mas também de permitir que sejamos vistos, pensados, questionados e que
possamos pensar, a partir deste lugar de hospedeiro de um racismo que se
atualiza e ganha diferentes formas e expressões a partir de nós. Como
hospedeiros, não somos vítimas, e sim negligentes, se não tratamos de nos
livrar do vírus por achar que ele não é letal para nós mesmos e para
nossos iguais, mas apenas para os outros.
Como afirmamos no documento “Da denúncia do trauma ao manifesto do
letramento”, apresentado no evento interdepartamental do Instituto Sedes
Sapientiae em setembro de 2020, deveríamos ser “uma instituição
comprometida em desenvolver ‘pesquisas, cursos e serviços vinculados à
realidade brasileira e voltados para as necessidades da população.
economicamente menos favorecida, facilitando-lhe instrumentos para assumir
seu próprio projeto histórico de libertação’. (parte VI da Carta de
Princípios do Sedes Sapientiae). Se a expressão ‘população economicamente
menos favorecida’, que aparece em destaque em nossa Carta de Princípios,
fala de uma pobreza abstrata a ser combatida, sem corpo e sem história,
hoje somos capazes de determinar com mais precisão que parcelas da
população — as assim chamadas minorias — foram destinadas a ocupar o espaço
da vulnerabilidade e da necessidade. E certamente a população negra se
destaca dentre elas.”
Para o letramento no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes
Sapientiae, o GTACME propõe o aquilombamento afetivo, isto é, a criação de
espaços de circulação da palavra e dos afetos que se propõem à
desconstrução do racismo (estrutural, institucional, cotidiano...), no
contexto da transmissão da psicanálise. Consideramos que essa desconstrução
implica um processo extenso a ser apenas despertado, intensificado, no
momento de tal experiência grupal.
Importante salientar que não se trata de um dispositivo de caráter
pedagógico, mas de dimensão clínica, de recomposição de narratividades e
afetos, através da sustentação do mal-estar e de um espaço aberto. O aberto
oferece múltiplas possibilidades de enunciação, assim como de fazer saber,
através da circulação da palavra e da escuta. Apenas com a problematização
e a “quebra” de vocabulário, códigos e normatividades hegemônicas é que
poderemos inventar outra maneira de pensar, cooperar e estar juntos na
transmissão da psicanálise.
Pretendemos sensibilizar com relação à questão do racismo através de
disparadores textuais, fílmicos, poéticos, vivenciais e outros. Propomos
grupos de 2 a 3 coordenadores e mais 15 pessoas, formados por funcionários,
alunos e professores; sem segmentação, pois entendemos que quanto mais
diferentes forem as pessoas, mais rica será́ a troca e a convivência. Nossa
proposição inicial é de 6 encontros, podendo se estender até 8, de acordo
com o andamento grupal.
Detalhamento dos encontros:
1) Apresentação de cada participante com breve histórico e motivação para
participar do aquilombamento.
2) História dos quilombos (trechos de filmes, imagens e textos). É
intencional falar da história da escravização no Brasil pelo viés dos
quilombos. Ideia de ativação da imaginação política.
3) Racismo estrutural e a miséria psíquica diante da alienação e da
animalização não só́ do outro negro, mas do nós, incluindo também o branco.
Há um empobrecimento do branco frente a sua alienação. Ocupar
politicamente os espaços buscando pensar as estruturas de poder no campo
psicanalítico.
4) Racismo institucional e transmissão da psicanálise. Para uma
psicanálise mais arejada, é preciso encontrar com o que os brancos
denominaram de “ruim” e romper com o ideal de branquitude, encontrar nossa
ancestralidade. Romper com o maniqueísmo e se abrir para a produção e
prática de dispositivos de cuidado e escuta de outros lugares e de forma
ampliada.
5) Racismo cotidiano e as práticas antirracistas
6) Saberes afrobrasileiros e ameríndios.
7) História da Psicanálise no Brasil e a sua alienação frente à violência
do racismo.
[1]
Texto apresentado pelo GTACME na reunião com o CD em 07/08/2021.
[2]
Noção de “racial literacy”, cunhada por France Winddance
Twine e traduzida por Schucman (2015): "É um conjunto de práticas,
baseado em cinco fundamentos. O primeiro é o reconhecimento da
branquitude. (...) O segundo é o entendimento de que o racismo é
um problema atual e não apenas um legado histórico. (...) O
terceiro é o entendimento de que as identidades raciais são
aprendidas. (...) O quarto é tomar posse de uma gramática e de um
vocabulário racial. (...) O quinto é a capacidade de interpretar
os códigos e práticas 'racializadas'. Isso significa perceber
quando algo é uma expressão de racismo e não tentar camuflar,
dizendo que foi um mal-entendido”.