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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    61 Novembro 2021  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

PROPOSIÇÃO DE AQUILOMBAMENTO AFETIVO [1]



GTACME



O Grupo de Trabalho A Cor do Mal-Estar é um grupo de estudos e pesquisa que se propõe também e principalmente a transformar estruturas e combater o racismo.

Como foi possível que, por tanto tempo, nós, psicanalistas, tenhamos ignorado o fosso racial e social que constitui nossa sociedade? O que impediu nossa identificação com essa questão e o que nos levou a clivá-la de nosso imaginário de pertencimento? O que produziu esse despautério? O fato de nossa sociedade ter negado e ignorado a luta antirracista nos faz tomar essa questão como prioridade. Entendemos que essa clivagem só́ pode ser explicada pela violência dos privilégios da branquitude na história da Psicanálise e das instituições psicanalíticas, o que inclui, sem dúvida, esta instituição.

Pretendemos apresentar uma metodologia experimental de letramento racial e convidar as(os) integrantes do CD a encampar essa luta conosco. Não temos ainda uma metodologia academicamente estruturada. Estamos construindo uma metodologia experimental, um laboratório psicanalítico, que teve início como um “big bang”. A partir de nossa história como grupo, que inclui a leitura de textos, a circulação da fala e da escuta e a sustentação de tensões e mal-estares, foram desencadeadas questões que remexeram o nosso racismo introjetado, clivado, recalcado, negado. Esse processo tem nos virado do avesso, nos tensionado e nos desafiado a sustentar o mal-estar e a fazer, desse trabalho conjunto, conscientização, confrontação e desconstrução do racismo.

No GTACME vivenciamos, desde o início e ainda hoje, nas relações intra e intersubjetivas entre os componentes do grupo, situações de tensão, que geram enormes desconfortos por explicitarem comportamentos racistas em nós mesmos, internalizados por causa da secular relação com a nossa estrutura vigente de dominação. A identificação desses comportamentos confirma a necessidade de nos havermos com as nossas próprias posturas e atitudes, se quisermos construir qualquer ação antirracista que cumpra verdadeiramente seu objetivo.

A experiência de quase três anos de trabalho tem nos levado ao entendimento de que, se queremos ações eficazes, precisamos sustentar esse mal-estar, essa tensão de confrontação, confiando que o que nos une é o desejo comum de combater o racismo.

No Brasil, a maioria das instituições psicanalíticas historicamente se constituiu no contexto da branquitude. Numa perspectiva fanoniana, propomos uma luta política, concreta e simbólica de rompimento com o “mundo branco e suas máscaras”. A luta por uma psicanálise mais diversa e arejada na sua prática e transmissão contribui para um ato de transformação social. É neste desejo comum de rejunte dos afetos que nos aquilombamos como forma de ocupar um espaço de construção da negritude e conscientização da branquitude no campo psicanalítico.

O letramento racial proposto não é apenas uma alfabetização conceitual do conjunto de práticas baseada em cinco fundamentos, conforme cunhou a socióloga americana France Winddance Twine [2], mas a experimentação dessas práticas em uma dimensão psicanalítica de desalienação que nos permita questionar e denunciar a violência do racismo.

Em nosso grupo, essa noção de letramento ganha outro desenho, outras facetas. Para nós, letramento é lançar luz negra sobre a hegemônica razão branca vigente, que está acostumada a se impor e a não ser questionada. Ao resgatar as banalizações e naturalizações correntes, destacam-se os elementos racistas que persistem atravessando centenas de anos de nossa história, de nossos hábitos e de nossas culturas, até os dias atuais, em que ainda se encontram normatizados e em processo de atualização. Também, o letramento nos convida ao desafio de olharmos para o que é sombra em nós mesmos e a experimentarmos o mal-estar que vem à tona ao nos confrontarmos com o racista que está ali, recalcado, alimentando defesas das quais devemos nos despir como parte do processo. Permanecer diante da nossa sombra sem desviar o olhar evoca em nós uma tensão - tal qual o calor é para a fusão o elemento necessário para a mudança de estado, ou seja, é indispensável para a transformação. Portanto, devemos suportar e sustentar esse olhar e essa tensão, em um exercício não apenas de autoperscrutação, mas também de permitir que sejamos vistos, pensados, questionados e que possamos pensar, a partir deste lugar de hospedeiro de um racismo que se atualiza e ganha diferentes formas e expressões a partir de nós. Como hospedeiros, não somos vítimas, e sim negligentes, se não tratamos de nos livrar do vírus por achar que ele não é letal para nós mesmos e para nossos iguais, mas apenas para os outros.

Como afirmamos no documento “Da denúncia do trauma ao manifesto do letramento”, apresentado no evento interdepartamental do Instituto Sedes Sapientiae em setembro de 2020, deveríamos ser “uma instituição comprometida em desenvolver ‘pesquisas, cursos e serviços vinculados à realidade brasileira e voltados para as necessidades da população. economicamente menos favorecida, facilitando-lhe instrumentos para assumir seu próprio projeto histórico de libertação’. (parte VI da Carta de Princípios do Sedes Sapientiae). Se a expressão ‘população economicamente menos favorecida’, que aparece em destaque em nossa Carta de Princípios, fala de uma pobreza abstrata a ser combatida, sem corpo e sem história, hoje somos capazes de determinar com mais precisão que parcelas da população — as assim chamadas minorias — foram destinadas a ocupar o espaço da vulnerabilidade e da necessidade. E certamente a população negra se destaca dentre elas.”

Para o letramento no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, o GTACME propõe o aquilombamento afetivo, isto é, a criação de espaços de circulação da palavra e dos afetos que se propõem à desconstrução do racismo (estrutural, institucional, cotidiano...), no contexto da transmissão da psicanálise. Consideramos que essa desconstrução implica um processo extenso a ser apenas despertado, intensificado, no momento de tal experiência grupal.

Importante salientar que não se trata de um dispositivo de caráter pedagógico, mas de dimensão clínica, de recomposição de narratividades e afetos, através da sustentação do mal-estar e de um espaço aberto. O aberto oferece múltiplas possibilidades de enunciação, assim como de fazer saber, através da circulação da palavra e da escuta. Apenas com a problematização e a “quebra” de vocabulário, códigos e normatividades hegemônicas é que poderemos inventar outra maneira de pensar, cooperar e estar juntos na transmissão da psicanálise.

Pretendemos sensibilizar com relação à questão do racismo através de disparadores textuais, fílmicos, poéticos, vivenciais e outros. Propomos grupos de 2 a 3 coordenadores e mais 15 pessoas, formados por funcionários, alunos e professores; sem segmentação, pois entendemos que quanto mais diferentes forem as pessoas, mais rica será́ a troca e a convivência. Nossa proposição inicial é de 6 encontros, podendo se estender até 8, de acordo com o andamento grupal.

Detalhamento dos encontros:

1) Apresentação de cada participante com breve histórico e motivação para participar do aquilombamento.
2) História dos quilombos (trechos de filmes, imagens e textos). É intencional falar da história da escravização no Brasil pelo viés dos quilombos. Ideia de ativação da imaginação política.
3) Racismo estrutural e a miséria psíquica diante da alienação e da animalização não só́ do outro negro, mas do nós, incluindo também o branco. Há um empobrecimento do branco frente a sua alienação. Ocupar politicamente os espaços buscando pensar as estruturas de poder no campo psicanalítico.
4) Racismo institucional e transmissão da psicanálise. Para uma psicanálise mais arejada, é preciso encontrar com o que os brancos denominaram de “ruim” e romper com o ideal de branquitude, encontrar nossa ancestralidade. Romper com o maniqueísmo e se abrir para a produção e prática de dispositivos de cuidado e escuta de outros lugares e de forma ampliada.
5) Racismo cotidiano e as práticas antirracistas
6) Saberes afrobrasileiros e ameríndios.
7) História da Psicanálise no Brasil e a sua alienação frente à violência do racismo.



[1] Texto apresentado pelo GTACME na reunião com o CD em 07/08/2021.

[2] Noção de “racial literacy”, cunhada por France Winddance Twine e traduzida por Schucman (2015): "É um conjunto de práticas, baseado em cinco fundamentos. O primeiro é o reconhecimento da branquitude. (...) O segundo é o entendimento de que o racismo é um problema atual e não apenas um legado histórico. (...) O terceiro é o entendimento de que as identidades raciais são aprendidas. (...) O quarto é tomar posse de uma gramática e de um vocabulário racial. (...) O quinto é a capacidade de interpretar os códigos e práticas 'racializadas'. Isso significa perceber quando algo é uma expressão de racismo e não tentar camuflar, dizendo que foi um mal-entendido”.




 
 
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