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Resumo

A CLIVAGEM DO EU COMO RESPOSTA AO TRAUMA NA PRIMEIRA INFÂNCIA

Autora: Anna Paula Njaime Mendes

Mestranda na área de Estudos Psicanalíticos do Programa de pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais. Concentra suas pesquisas em conceitos psicanalíticos que possuem interfaces com a temática do abuso sexual infanto-juvenil e, desde 2005, atua como pesquisadora e psicóloga no Projeto CAVAS na UFMG.

Na infância, época na qual as instâncias psíquicas ainda se encontram fragilmente arranjadas, o trauma provocado por um abuso sexual pode evocar a sensação de aniquilamento do eu, instância que responde pelo sentimento de si. Dentre as respostas psíquicas possíveis frente a esse abismo, o mecanismo que nos interessa nesse trabalho é a bifurcação, fragmentação do investimento narcísico, cisão ou clivagem.

No texto "O fetichismo" (1927), Freud considera que a clivagem do eu origina-se do processo de desmentido e forma duas correntes opostas que convivem lado a lado, mas que são incapazes de se influenciarem ou se reconhecerem: uma capaz de aceitar a realidade e outra que a nega. Em 1940, sugere que a clivagem poderia ser um mecanismo comum a várias estruturas: "O ponto de vista que postula que em todas as psicoses há uma divisão do ego (splitting of the ego) não poderia chamar tanta atenção se não se revelasse passível de aplicação a outros estados mais semelhantes às neuroses e, finalmente, às próprias neuroses" (p.216). Partindo da análise desses fragmentos da obra de Freud, VERTZMAN (2008) questiona a universalidade do recalque como mecanismo de defesa predominante nas neuroses e aponta para uma idéia de Ferenczi, na qual esses fragmentos oriundos da clivagem, mesmo não se reconhecendo, poderiam entrar em conflito e produzir sintomas.

Ao descrever o mecanismo de identificação com o agressor, FERENCZI (1932) aborda um tipo de clivagem psíquica na qual a criança, ao identificar-se e introjetar seu agressor, passa a agir por uma espécie de mimetismo, sujeitando-se passivamente à violência. A partir daí, o agressor desaparece enquanto realidade externa e torna-se intrapsíquico, podendo ser modelado segundo o princípio de prazer. Entretanto, o ego é clivado e a criança não tem mais confiança nos seus próprios sentidos. A perda da capacidade de se afirmar frente ao desprazer deve-se ao fato de que seu aparelho psíquico restringiu-se ao id e ao superego, pois o ego, fragmentado, ficou fora de ação.

Tendo esse panorama em vista e considerando também uma indagação de FERENCZI (1932) a respeito das perversões carregadas de culpa consciente, se estas não seriam o "testemunho de uma estimulação endógena" (p.105), tentaremos compreender também aquilo que UCHITEL (2001) chamou de "perversão traumática". Para essa autora, um trauma pode ter duas saídas: na solução neurótica, o psiquismo é capaz de integrar o trauma através de fantasias, do recalque e dos sintomas. Aqui, o reaparecimento do trauma é dado pela compulsão à repetição e também aparece nos pensamentos e sonhos, oferecendo uma chance para a elaboração dentro do psiquismo. Em outras ocasiões, o trauma não é assimilado ao restante dos conteúdos psíquicos, mantém-se isolado no psiquismo e provoca a clivagem do ego. Nessa concepção, essa divisão do ego seria a representante do "verdadeiro caráter traumático" e poderia se expressar nas psicoses, nos estados-limite e nas perversões.