A construção de um encontro

Vera Rolim

 

 

Os psicodramatistas e os psicanalistas circulam no ambiente, também ando por aí. Ouço:

“O amor é a meu ver, o grande desintoxicante, o antídoto mais poderoso contra os venenos da alma.” Paro surpreendida e a fala masculina continua. “O que faz mal é o tédio, o desinteresse, a ausência de simpatia, a cegueira ao Outro.” Deparo com uma mulher bem cuidada, atenta e com expressão enigmática, conversando com alguém firme e de luminosa clareza. Ambos muito envolvidos neste dialogar, momentaneamente distanciados do burburinho reinante naquela grande sala e corredores do Edifício Saber.

Acabava de finalizar-se um amplo e fértil Congresso, com o tema: “A construção de um encontro”, aberto a psicodramatistas e psicanalistas e, se vocês querem saber, muito concorrido por sinal. Pequenos grupos, formando configurações diversas de círculo, triângulo, pares, pessoas avulsas se espalhavam pelas salas e corredores em bate-papos amistosos, expressões de surpresa, de alegre tranqüilidade do dever cumprido, de bom cansaço de tanta atividade e reflexão, da satisfação de ter alcançado mesmo que fugazmente uma paz garimpada e uma troca profícua, início de uma sabedoria, que integra a tolerância como parte do jogo existencial.

Percorro esse ambiente vivificado neste momento e me enriqueço um pouco mais com o percurso. No ar, capto climas de densidade afetiva e escuto algumas falas que me parecem mais encarnadas. Destaco alguns flashes :

- ...tivemos momentos no “dorso do tigre”, naquela dramatização trabalhada com muito cuidado e delicadeza com a protagonista e o grupo, abrindo espaço para a elaboração de sentimentos de medo e vergonha.

- ...a dramatização da criança que conhecia o camelo através da fala da avó e quando mais tarde no cinema, viu um camelo num filme, viveu esse momento luminoso da “verdade” do conhecimento do camelo, ao se dar conta de que uma representação interna sua ,o camelo falado pela avó, se juntava e se conformava àquela outra imagem que vinha do mundo cultural,a imagem no filme. Lembrei que esta dramatização foi realizada num contexto que trabalhava as ressonâncias de uma abordagem teórica ocorrida anteriormente. Fui me dando conta que esta compatibilidade da coisa e sua representação é condição fundamental para acontecer o processo de identificação na matriz de identidade emocional da criança, na visão moreniana. São o “cimento” para atos combinatórios futuros.

- ...a revolução criadora, que o Moreno tanto fala, como será que se articula hoje em dia com a nossa realidade e especialmente com a nossa prática. Interrogamo-nos se caminhamos em direção a ela, a revolução criadora, que provavelmente faz parte do ideal do Eu dos psicodramatistas.

Lembro como gostei da apresentação e da discussão animada dos formandos com suas monografias. Vi o entusiasmo deles ao perceberem seus êxitos terapêuticos, suas inseguranças e seus medos ao vislumbrarem seus limites neste novo papel. Na verdade, penso que é neste caldo, ou melhor, nesta gama de sentimentos, emoções, percepções, fantasias e pensamentos, que se assume e se inicia o desempenho de um novo papel. É o movimento de um todo indiferenciado, num mix com o outro, para a discriminação gradual do papel, tingido de intensidades, idéias e outros conteúdos diversos.

Outra fala me tirou destes pensamentos e me capturou. Vamos a ela: encontramos em Freud, no seu artigo “Introdução ao Narcisismo”**, uma afirmação interessante de que precisamos amar para não adoecer, mas que iremos adoecer se, em razão de impedimentos, não pudermos amar. Relaciona o ser saudável também com a criatividade, citando o poeta H. Heine:

“Foi a doença que causou

Meu ímpeto de criação;

E criando pude ficar são,

E criar foi que me salvou.”

Portanto, penso que podemos dizer que Freud e Moreno comungam a criatividade e o amor como aconteceres essenciais ao homem saudável, sendo que cada um deles coloca esses fatores como elementos mais ou menos centrais na sua estrutura teórica.

Neste momento quero trazer um pensamento de Bachelard, bastante anti-narcisista, no sentido de sair da visão unicista para uma abertura pluralista necessária ao conhecimento. Relembrando:

“O destino de toda ciência é descobrir que ali onde parecia reger um conceito, se descobre que na realidade eram necessários pelo menos dois.”

Esse encontro de psicodramatistas e psicanalistas vai nesta direção de nos abrirmos para outras vertentes do pensar, num movimento dialético de fechamento e abertura, parodiando Pichon Rivière. Não é assim o processo de aprendizagem?

Questões meus caros colegas-leitores, como há muitas outras, que ficarão para outros encontros com vocês.

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*As falas do segundo parágrafo se referem à conversa de Hélio Pelegrino e Clarice Lispector, relatada no capítulo “Um homem chamado Hélio Pelegrino”, do livro “De corpo inteiro”, de Clarice Lispector, Rocco, Rio de Janeiro, 1999.

**Freud, Sigmund. “À guisa de introdução ao narcisismo (1914)”.In:Escritos sobre a psicologia do inconsciente.Trad. de Luiz A. Hanns.Rio de janeiro: Imago Ed.,2004.

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Dezembro 2007

 

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