Espelho meu, espelho meu...

Vera Rolim

 

Espelho meu, espelho meu...
“Parei na frente do espelho e falei: Quem é esse cara aí?” Estupefato, em voz alta e veemente, o participante do psicodrama público do Centro Cultural São Paulo assim se expressa durante o aquecimento.

Fala impactante que me remete ao tema do estranhamento familiar freudiano e aos processos de identificação-alienação lacanianos. Penso num jogo grupal e vou divagando sobre esta sensação de estranheza da própria imagem no espelho, onde momentaneamente o sujeito não se reconhece, não vê ali o seu “duplo”. Esse conceito foi estudado por Freud, a partir da literatura, e também enfatizado no psicodrama, por meio da “técnica do duplo” que se fundamenta nas fases iniciais da matriz da identidade emocional da criança. Há algumas discrepâncias entre estas duas abordagens, mas muitos aspectos próximos, que me parece podem ser integrados.

Para Freud, a idéia do estranho é algo assustador, que remete ao conhecido e familiar. Além do possível estranhamento da visão da própria imagem no espelho, Freud estuda no artigo “O estranho” (1919) muitos outros fenômenos considerados estranhos: superstições, medo de mau olhado, pressentimentos, retorno dos mortos, magia, bruxaria, onipotência de pensamentos. Ele explica que esta estranheza pode ser devido a algo que é secretamente familiar, que foi submetido à repressão e deveria ficar reprimido, mas retornou à consciência. Porém, o próprio Freud não fica satisfeito com esta compreensão, acha que ela não é suficiente e abre mais o seu vasto leque de entendimentos. Ele vai trazendo, além das causas infantis, o fenômeno do “duplo”, em que há uma duplicação, divisão e intercâmbio do eu (self). Otto Rank estuda o “duplo” complexamente e diz que o duplo originalmente era uma segurança contra a morte e nisto é mais próximo ao duplo do psicodrama, pois o bebê não sobrevive sem o duplo realizado pela mãe. Rank afirma que a alma imortal foi provavelmente o primeiro “duplo” do corpo. Superadas as etapas do narcisismo primário, o “duplo” vai mudando seu aspecto de garantia de imortalidade para o estranho anunciador da morte. Para Freud, também o “duplo”, passado o narcisismo primário, não desaparece, mas vai mudando de significado nos estágios posteriores de desenvolvimento do ego. Forma-se aí uma atividade que tem a função de observar, criticar e exercer uma censura dentro da mente. É a capacidade de auto-observação. Quando patológica, esta atividade dissocia-se do ego.

Qualquer pessoa que tenha se livrado das crenças animistas, em que acreditou um dia, será insensível a este sentimento de estranheza. O teste de realidade será suficiente para debelá-lo, anuncia o criador da psicanálise.

E a técnica do duplo no psicodrama? Penso que ela presentifica, sintonizadamente, os aspectos não reconhecidos do psiquismo do protagonista, muitas vezes aquele algo assustador e familiar que estava alienado.

Para Lacan, esta possibilidade de integração na busca de quem sou eu, permite-me abraçar, mesmo que por instantes, a minha identificação imaginária.

 

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Outubro - primavera 2008

 

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