Força e Esperança

Dirce Fátima Vieira

 

Quero compartilhar com vocês uma leitura que me emocionou ao referendar nossa condição humana. Podemos nos identificar na narrativa cativante da autora, na violência emocional sofrida,  na sobrevivência emocional, no alcoolismo (pai, marido), na fragilidade de pessoas que amamos, nas doenças psíquicas, nos sentimentos de amor e ódio enfim na trama de vínculos tão importantes na nossa vida – a família. Vemos como transformar o sofrimento em força e esperança.

O livro "O Castelo de Vidro" da jornalista norte-americana Jannette Walls é uma linda e pungente historia verídica. Triste, sofrida mas contada com a leveza e pureza da ótica da criança. A autora traz as lembranças de sua vida e os seus relacionamentos afetivo-emocionais com a família - que teria tudo para transformá-la em uma potencial "viciada em sofrimento" e  que me parece, pela resiliência, conseguiu transformar as adversidades em um motor para mudanças e  crescimento. O mesmo não acontece com sua irmã Maureen.

A  saga desta protagonista se dá numa família, que entendemos como disfuncional. O pai Rex, é um sedutor, sonhador, alcoolista, jogador e com freqüência roubava dinheiro da própria família para viver na boemia, períodos em que ficava vários dias distante do convívio familiar. Não gostava de trabalhar e só quando seus filhos passavam fome, fazia algum  free-lancer, mas durava pouco, sempre retornando ao alcoolismo. Como característica de personalidade de um alcoolista era afetivo, sonhador e sedutor em momentos de abstinência; agressivo, desonesto  e  abusador emocional quando bebia.

A mãe Rose Mary Walls, professora, que se auto nomeia pintora e escritora, é  uma mulher frágil e sensível. Demonstra imaturidade como mãe e alheia às necessidades dos filhos opta por gastar o dinheiro, quando têm, com a sua arte (sic) em detrimento da comida e do bem estar dos mesmos. Refugia-se na pintura ou na doença.

Família constituída por quatro filhos. Viviam como nômades, o que os levava a não ter amigos e estudo seqüencial.  Muito cedo os irmãos entendem que têm que sobreviver e se unem para limpar a casa, fazer comida, buscar alguma fonte de renda e a estimularem os seus pais a trabalhar. Desta trama de relações – a irmã mais velha, a protagonista e o irmão - se fortalecem e co-constroem uma ordem de pertencimento, denotando aqui recursos criativos e espontâneos de cada um.

A protagonista se sentia feia, pouco inteligente, mas encontrava no pai um interlocutor e um eterno incentivador. É a filha eleita deste pai e deste vínculo introjeta uma relação amorosa. Ao longo da sua infância e da adolescência a sua importância na dinâmica familiar era mesclada com abusos emocionais, potencializando no periodo, nomeado por nós, como a Segunda Matriz de Subjetividade. As  atitudes egoistas - exigência, cobrança, mentiras e chantagens - dos pais são feitas aos filhos, não percebendo ou mesmo não se importando se tal pedido ou situação pode ser uma violência para a filha.  Exemplificando melhor, Jannette é a escolhida pela mãe para ir atrás do pai em bares e prostíbulos nos períodos de bebida. Atitudes bem comuns em mães frágeis, que ao perceber que a filha  é a eleita do pai, cria a expectativa/cobrança que a filha terá que segurá-lo para a esposa (no caso ... só com você que ele voltará para a casa).  Ou ainda, quando seu pai a  leva para um bar, prostíbulo, para exibi-la a um parceiro de  jogo. Ou mesmo quando a chantagea fazendo dar a ele o único dinheiro que tinham para comprar comida.

Apesar das característica familiares, do caos estabelecido nesta configuração em  periodos tão importantes para uma estruturação da identidade do indivíduo – infância e adolescência - Jeannette vivenciou-os com recursos criativos e fez da aliança afetiva com o seu irmão co-construções para sobrevivências e colorir a sua vida. Desenvolve e cultiva um amor incondicional pela sua familia. Ao sair de casa, final da adolescência, desvela-se uma forte determinação em construir uma vida de sucesso.

E consegue. A criação do livro com suas memorias, parece a mim, ser o seu maior ato de criatividade e espontâneidade, onde possívelmente pode numa perspectiva do intrapsiquico desconstruir constelações de Eu parciais negativos e construir novas constelações de Eus mais harmonicos. Cabe aqui a indagação – Será que ela, Jannette, fêz terapia? Muito provavelmente sim, até pelo que nos conta quando as pessoas perguntavam de seu passado, ela saia a soslaio.

A vida se mostra soberana, tece nas tramas dos vínculos, nos desejos, nas imaginações, nas emoções, nos sentimentos e, claro, no estofo sombrio dos sonhos.
Uma sofrida historia de vida que ilustra o sofrimento como tonalidade afetiva de consciência sadia e de vivência normal, e que se bem elaborado oferece uma possibilidade de entender o mistério de nossa própria história, resignificá-la e responder eticamente pela vida. 

 

No próximo texto refletiremos a partir da ótica que a autora conta-nos sobre sua irmã Maureen.

 

Setembro 2008

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