Mafalda vai à escola
Liana Gottlieb
Observação: terminei o texto explicativo do título desta coluna informando que entraria em detalhes sobre a minha dissertação de mestrado neste texto.
A metodologia psico-sociodramática pode ser encarada como um instrumento de transformação de produtos da Indústria Cultural, considerados lesivos e desintegradores, em matéria-prima que leva ao resgate da espontaneidade e da criatividade, além de propiciar o desenvolvimento tanto da compreensão crítica e ativa, como da vontade transformadora.
Em outras palavras, no método psico-sociodramático os meios de comunicação podem ser empregados como mediação entre o indivíduo e a realidade, promovendo a integração entre um conhecimento adquirido e a experiência vivida.
Para desenvolver minha pesquisa (de mestrado, em 1992) escolhi as HQ – Histórias em Quadrinhos –, tiras desenhadas, vivas e em movimento, desencadeadoras do nosso tônus vital, imaginação e fantasia, que carregam a conotação do proibido, o receio dos pais e da escola em relação a sua leitura: “O que será que essa criança vai ser quando crescer, se ela ficar lendo muita HQ?”. Elas contêm também o proibido da sexualidade (da excitação) que a meu ver é um ótimo passaporte. As HQ mexem também com a visão, a imaginação e com o sentir, e mesmo sendo um desenho estático dá a sensação de movimento, de coisa viva. Uma das vantagens das HQ em relação à TV é que nas HQ temos o tempo e o espaço para elaborações mentais e manifestações corporais.
Dentre as HQ, elegi a MAFALDA. Infelizmente a MAFALDA não foi leitura de infância para mim, pois quando ela surgiu eu já era adulta, mas confesso que ela me ajudou muito a apreender a questionar o mundo e a rever meus papéis de mulher, mãe, professora e outros que desempenho no meu dia-a-dia.
A principal vantagem de empregar psico-sociodramaticamente a MAFALDA reside no fato de que ela está muito perto das pessoas. O diálogo íntimo e afetivo de cada leitor com a MAFALDA não o ameaça. Por não ameaçar estimula a espontaneidade e a criatividade.
Por que a leitura correlata de Buber e Moreno?
Ambos falam do encontro verdadeiro.
A leitura psico-sociodramática da MAFALDA representa a possibilidade de um encontro – o encontro EU-TU proposto por Buber e Moreno. Esta leitura me propiciou um encontro com a minha própria história, minha vida, com o meu EU, e a partir daí tenho podido buscar os meus TUS.
Espero que a leitura do livro (fruto da dissertação) venha possibilitando aos leitores, um encontro com a sua história, deles consigo mesmos, principalmente aos que têm em seus corpos, e em suas mentes, as marcas de uma escola autoritária. E que esteja possibilitando também o encontro entre professores e alunos, que juntos poderão criar essa escola nova a que denominei escola nova aberta cósmica.
A MAFALDA como objeto intermediário (termo do vocabulário psicodramático) abre o mundo da linguagem não-verbal. Deixa de ser um encontro intelectual, para ser um encontro do fluir e do sentir, da cabeça e do corpo, do ser por inteiro. A ação é melhor que a verbalização, pois é síntese mais eficaz – o homem está inteiro ali.
A leitura psico-sociodramática da MAFALDA representa a possibilidade de um questionamento; restitui o prazer, o riso, a brincadeira, o lúdico, o humor à vida.
Desejo dar à escola a possibilidade de ser um instrumento de questionamento e de formar pessoas felizes e voltadas para a importância da verdadeira comunidade.
Quando me refiro à leitura psico-sociodramática estou, na verdade, falando de duas leituras: a que foi feita neste trabalho, mais teórica – em que utilizei uma das técnicas da pesquisa qualitativa, a análise de conteúdo, escolhendo como parâmetros de observação aspectos do referencial teórico da teoria psicodramática, além de outros –, e outra, a prática – que venho utilizando em sala de aula e em workshops que tenho ministrado, tanto no ensino formal como no informal.
Um dos meus anseios, que muito contribuiu para a elaboração deste trabalho, é que a nossa sociedade possa recriar a escola, criar o que chamo de escola nova aberta cósmica, que permita que os alunos interfiram em tudo, transformando a sociedade, a natureza, o planeta.
Busquei apontar as características dessa nova escola através do levantamento e da crítica das características da escola tradicional denunciada na MAFALDA. Além disso, procurei
fazer o mesmo através das idéias de Buber e as de Moreno sobre educação/escola.
Para inter-relacionar Buber, Moreno e Quino, parti do conceito fundamental segundo o qual “o homem é um ser em relação”. A partir desse conceito, relembrei a visão de Quino sobre a criança, a partir da Mafalda, para constatar que a natureza básica do comportamento infantil é seu caráter de “espontaneidade”. Quino, como Moreno e Buber, faz as suas personagens – as crianças – reagirem espontaneamente, mesmo sabendo que serão punidas. A verdade acima de tudo!
Crianças! Para Buber, o gênero humano começa a cada instante com a criança; para Moreno, o psicodrama deve sempre começar com a criança. Quino, por seu lado, apresenta como atores principais de seus desenhos, as crianças. Para os três, na criança está a verdade, a criatividade e a vida. Não há pedagogia sem respeito a seu modo de ser e de ver o mundo. Nesse sentido, o estabelecimento de uma pedagogia autêntica passa naturalmente pela reconstrução dos relacionamentos espelhados na criança: relações verdadeiramente dialógicas, num tipo de encontro denominado por Buber como EU-TU.
Chego à conclusão que o caminho da transformação da pedagogia é simples: basta observar o comportamento da Mafalda – diálogos verdadeiros, ainda que muitas vezes irônicos; coerência a toda prova; vinculação dos conteúdos programáticos à realidade; respeito para com o outro, até mesmo na hora de pensar na estrutura física de uma sala de aula. Comunicação plena, a todo momento.
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Liana Gottlieb
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