Construção do personagem sofredor

Dirce Fátima Vieira

 

Ao nascer encontramos uma família constituída por uma rede  social (pais, avós, irmãos e outros).  Desta rede surgirá um clima amoroso - fruto do investimento afetivo dos pais e familiares - que garantirá  ao bebê um ambiente receptivo, fundamental para que venha  sentir-se aceito e amado, alicerçando  assim a  sua auto-estima. A trama dessas relações que constituem o átomo familiar vê envoltas de projeções, de expectativas e dos desejos conscientes e inconscientes dos pais e avós, assim como as características de sua cultura.

Todas elas serão transmitidas à criança e farão parte do seu arcabouço de normas e hábitos de convivência. Estes padrões relacionais e suas respostas, que são definidos por um lado, pela constituição individual do novo ser e  por outro, pelas forças externas (ambientais e socioculturais) serão assimilados pela criança como naturais e marcam profundamente a  sua vida. O inverso deixará registros negativos.  Este estágio chama de Primeira Matriz de Subjetividade.

Existe também, o que se nomeia de Segunda Matriz de Subjetividade, que acontece na entrada da adolescência. Esta fase é marcada por mudanças corporais importantes e pelo desenvolvimento da sexualidade nas suas três dimensões: biológica (processos fisiológicos cerebrais e hormonais), psicológica (desejos eróticos e relações afetivas) e cultural (padrões de comportamento da sociedade e seus grupos). Outro aspecto importante neste período é a socialização, que permite ao jovem a participação em núcleos sociais diferentes possibilitando-o  vivenciar outra ordem de pertencimento. Esta experiência é fundamental para a elaboração de novos modelos e relações afetivas. Acontecem, ainda, transformações na qualidade do pensamento. Desenvolvem-se a abstração e o raciocínio lógico e como sabemos possuir um pensamento hipotético-dedutivo é um dos requisitos para entrar no mundo adulto no que tange ao funcionamento mental e cognitivo.  O desenvolvimento pleno deste potencial intelectual resulta de fatores genéticos, ambientais e afetivos.

O desenvolvimento biopsicoafetivo prossegue durante toda vida, mas a Segunda Matriz se mostra importante, pois permite ao púbere re-viver a Primeira Matriz da Subjetividade e muitas vezes, aproveitando-a de forma criativa e espontânea assimilar e elaborar novos modelos relacionais agora co-construindo relações afetivas gratificantes.

Geralmente os núcleos familiares das  pessoas - que futuramente serão viciados em sofrimento - foram ou estiveram disfuncionais, tanto na primeira como segunda matriz, por  varias causas: circunstanciais (brigas entre o casal, separação, depressão pós-parto, distúrbios da própria criança etc.)  ou crônicas ( psicose, alcoolismo etc. ). Estes conflitos que carregam o locus familiar com o colorido negativo não proporcionam um clima de acolhimento, confirmação e aceitação necessários para a base da auto-estima da pessoa. Mas por outro lado estas pessoas – que poderão ser as viciadas em sofrimento - também são mais sensíveis e vulneráveis às contingências da vida, complementam esta dinâmica familiar e acabam por padecer na tristeza. Estas vivências ficarão inscritas no seu Eu corporal (recinto de nossas vivências senso perceptivas corporais com o mundo interno e externo, que é a base para o Ego) e o pilar relacional  ficará carregado de insatisfações e carências.

Serão indivíduos que não conseguirão aproveitar o momento da segunda matriz e se transformar, ou mesmo serem transformados nas adversidades ao longo da vida. Ao contrário vão re-atulizando a sua não aceitação e assim constrói e são construídos por um padrão de relacionamento, de colorido negativo, que tem o sofrimento como fio condutor. Estabelecem esta mesma relação consigo próprio e com o mundo. E são destas infinitas repetições que nasce e fortalece o sofredor.
No personagem sofredor existe um Eu desejoso de amor, porém que não se permite receber amor.  Em outras palavras, espera e depende do mundo para receber, no entanto, está aprisionado pela ambigüidade de um Eu que quer ser amado, ter liberdade e ter experiências, porém existe outro Eu que tem medo de viver e ser responsável pelo seu amor. Re- atualiza assim o seu vazio e a não realização.

É fundamental verificar a complementaridade acima descrita (família disfuncional e filho frágil, sem recursos internos), pois muitas vezes, encontramos filho ou mesmos vários filhos  resilientes do mesmo átomo familiar que conseguem transformar situações de grande dor e sofrimento em força e esperança. A resiliência pode ser entendida como uma espécie de imunidade psicológica aos traumas e às adversidades; é uma plasticidade cerebral que possibilita a adaptação e a construção de uma vida sadia apesar de viver em um mundo insano.

Como dizem as receitas de comida – separe.  Na próxima coluna utilizarei estes conceitos para comentar com vocês o livro “O Castelo de Vidro” da jornalista norte-americana Jannette Walls, que muito me emocionou.

 

Agosto 2008

Para comentar a matéria, escreva uma mensagem para:
Dirce Fátima Vieira
difavi@ig.com.br