O potencial psicodramático dos meios de comunicação
1ª parte

Liana Gottlieb

Introdução
            Um dos primeiros aspectos que se nota na leitura da história de Moreno, sobre a construção da teoria psicodramática, e das propostas deste autor para a utilização dos meios de comunicação, é justamente a familiaridade com que ele incorporava tanto os meios de comunicação que existiam, quanto as inovações que surgiam, em termos teóricos e práticos.
            Aliás, Moreno demonstrava lucidez, antevisão e compreensão do que os avanços tecnológicos representavam e viriam a representar no desenvolvimento do homem, e já há tanto tempo escrevia: “É razoável supor que, se o princípio da espontaneidade ficasse à margem dos poderosos avanços tecnológicos do nosso tempo, continuaria sendo apenas uma expressão subjetivista de um pequeno grupo de intelectuais, de pendores românticos, e não mais poderia atingir e educar o grande público” (Moreno, 1987: 464).
            A preocupação com o social, com a higiene dos meios de comunicação e com a saúde mental pública é uma constante em toda a obra moreniana. Seu trabalho começa com a faixa etária mais indefesa – as crianças -, continua com os excluídos – prostitutas e refugiados de guerra – e se abre para todo o grande público.

Contraste entre Espontaneidade e Conserva Cultural
            Em 1931, Moreno chamava a atenção para os novos domínios do psicodrama (Moreno, 1987: 272-273): os domínios da pantomima, do ritmo, dança e música, e o domínio do (aparentemente) absurdo. Ele estendeu o domínio do psicodrama para a cinematografia com a produção de filmes terapêuticos, definidos como realizações cinematográficas, cujo objetivo era o tratamento de públicos. (Moreno, 1987: 461)
            A preocupação básica de Moreno residia no contraste entre dois conceitos fundamentais em sua teoria: a espontaneidade e a conserva cultural. Para se promover seres espontâneos e criativos era (e é) imperioso libertá-los das conservas culturais: livro, revistas, jornais, teatro, rádio, etc.
            Com o advento da televisão, e em seus primeiros anos de vida, quando toda a sua produção era ao vivo, Moreno acreditava (como acreditou no rádio) que “a televisão era um meio em que a ação interpessoal do momento era o desiderato final”. (Moreno, 1987: 464)
            Mas ele mesmo já previa a condição de repetível que haviam alcançado o filme e o rádio, que os transformava em repetidores de conservas culturais, para a qual se dirigia a televisão.
            Independentemente de suas previsões pessimistas, Moreno elaborou, com sua equipe, ideias sobre: procedimento operacional de uma emissora de TV; procedimento operacional de um desempenho espontâneo; sugestões para adaptar os métodos de espontaneidade à TV; direções e propósitos da pesquisa em televisão. (Moreno, 1987: 445-446)
            Para Moreno, o teste decisivo sobre se uma obra dramática é ou não uma obra terapêutica depende de se apurar se é ou não capaz de produzir a catarse em tipos especiais de públicos, ou se é ou não capaz de suscitar um aquecimento preparatório de cada membro do público para uma melhor compreensão de si mesmo ou uma melhor integração na cultura em que participa.
            Ele criou, inclusive, a figura do psicodramaturgo, afirmando que poderia “prestar bons serviços à junta consultiva das agências produtoras de filmes, especialmente as que estão empenhadas na realização de filmes para crianças e adolescentes”. (Moreno, 1987: 446)
            Em 1923, Moreno escrevia que “o adestramento da espontaneidade será o principal objeto de estudo na escola do futuro”. (Moreno, 1987: 181) A expressão adestramento, para Moreno, significava treinamento em busca do estado espontâneo, quando não tinha a conotação de domesticação, mas, ao contrário, implicava tornar-se mestre em algo, hábil, ágil, perito.
            Ele reconhecia que havia muita confusão na compreensão desta afirmação, pois “desde Rousseau a espontaneidade tem sido entendida como algo exclusivamente instintivo, que tem de ser deixado intacto e adormecido, sem interferência alguma das técnicas racionais...Durante todo o século 19, vemos que os líderes da Escola Romântica...consideram a espontaneidade nas artes com um respeito místico, como uma herança que é conferida a alguns e negada a outros”. (Moreno, 1987: 82)
            Moreno rompeu com essas crenças e propôs “o aprender a ser espontâneo”, pressupondo um organismo com potencial para existir em estado flexível, e isso graças ao surgimento da consciência do momento criador. O passado ficou num segundo plano, tendo importância na medida em que surgisse como material importante para o indivíduo.
            Segundo ele, “o perfeito ator do nosso teatro convencional, e a pessoa perfeita da nossa moralidade convencional são os protótipos pelos quais foram modelados os nossos ideais educacionais e os paradigmas segundo os quais se instruem os nossos filhos. Portanto, não é acidental que, se quisermos fazer jus ao trabalho de espontaneidade, tenhamos de retroceder às primeiras fases da infância e cuidar de que as velhas técnicas educacionais, que levam automaticamente ao instruído, mas não inspirado aluno de hoje, sejam substituídas, por técnicas de espontaneidade”. (Moreno, 1987: 183)
            A revolução criadora, proposta por Moreno, resume-se à “recuperação da espontaneidade e da criatividade, por meio do rompimento com padrões de comportamento estereotipados, com valores e formas de participação na vida social que acarretam a automatização do ser humano (conservas culturais)”. (Gonçalves, 1988: 46)
            Espontaneidade, então, “é a capacidade de agir de modo ‘adequado’ diante de situações novas, criando uma resposta inédita ou renovadora ou, ainda, transformadora de situações preestabelecidas. Há que se compreender o espírito dos escritos de Moreno: sai proposta primordial é a da adequação e do ajustamento do homem a si mesmo. Nesse sentido, ser espontâneo significa estar presente às situações configuradas pelas relações afetivas e sociais, procurando transformar seus aspectos insatisfatórios”. (Gonçalves, 1988:46)
            Deve-se distinguir entre espontaneidade e criatividade. A espontaneidade serve como elemento catalisador para a criatividade, ou seja, ela permite que a criatividade se manifeste e atualize.
            Para Fonseca, a criatividade é a alma de toda a existência orgânica...A conserva cultural seria um impulso do homem em relação à imortalidade. A criação espontânea, por suprema que seja, deixa de sê-lo quando conservada, como na obra acabada. É mais valioso o momento da criação...do que a obra conservada, armazenada, mitificada.
            Definindo precisamente, temos que “conservas culturais são objetos materiais (incluindo-se obras de arte), comportamentos, usos e costumes que se mantêm idênticos em uma dada cultura”. (Gonçalves, 1988: 48)
            “As conservas culturais serviram para dois fins: eram prestimosas em situações ameaçadoras e asseguravam a continuidade de uma herança cultural. Mas quanto mais se desenvolviam as conservas culturais, mais raramente as pessoas sentiam a necessidade da inspiração momentânea...Essa situação exigiu, como que em seu auxílio, o diametralmente oposto à conserva cultural: a categoria do momento...O problema consistia em substituir um sistema de valores desgastado e obsoleto, a conserva cultural, por um novo sistema de valores mais consentâneo com as circunstâncias de nossa época: o complexo espontaneidade-criatividade”. (Moreno, 1987: 159-160)

Bibliografia
FONSECA FILHO, José S. Psicodrama da Loucura: correlações entre Buber e Moreno. 3.ed. São Paulo: Ágora, 1980.
GONÇALVES, C.S. e outros. Lições de Psicodrama: introdução ao pensamento de J.L. Moreno. São Paulo: Ágora, 1988.
MORENO, Jacob Levy. Psicodrama. 4.ed.São Paulo: Cultrix, 1987.

           

           

Maio 2009

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