O potencial psicodramático dos meios de comunicação
- um possível novo caminho

3ª parte

Liana Gottlieb

Esse possível novo caminho já foi apontado por Moreno e seus colaboradores em vários artigos. O que pode ser novo é o resgate que procuro fazer, lembrando e apontando idéias desenvolvidas por Moreno e esquecidas. Irei me ater só à Televisão, até por questão de espaço, mas principalmente por estarmos vivendo uma abertura inédita em termos de TVs por cabo.

Se nos debruçarmos sobre as várias linhas da Teoria da Recepção que procuram, primordialmente, desvendar o sujeito atrás do receptor, perceberemos que as idéias de Moreno já iam muito além disso, há muito tempo. Mas, os teóricos da comunicação ficam no plano da observação passiva (com raras exceções), enquanto Moreno sempre procurou partir para a ação visando a transformação.

Mesmo programas como “O Observatório da Imprensa” e “Roda Viva”, transmitidos pelas TVs educativas, sofrem com as duas ditaduras impostas pela televisão da era pós-videoteipe, ou seja, quando a TV passou a ser repetível e produtora e difusora de conservas televisivas.

A primeira ditadura é a do tempo. Retomando os dois programas que citei acima, são frustrantes, pois impedem o aprofundamento em temas de real importância; os convidados a se manifestar mal conseguem articular suas ideias e as coisas ficam soltas. São muitos os convidados para pouco tempo de programa, o que implica num clima de ansiedade, e impede a real participação do público que até pode enviar questões, mas tem que se contentar com uma resposta sem ter o direito de rebatê-la, caso o deseje. É uma interação capenga !

A segunda ditadura é a da perfeição imposta pelas conservas culturais.

Em artigo publicado em 1942, na revista Sociometry, volume V, transcrito no livro Psicodrama (Cultrix), Moreno e seus assistentes afirmam que “o mais difícil problema que se apresenta a respeito da adaptação dos métodos de espontaneidade aos recursos da televisão é o que consiste no ajustamento e educação do público para a apresentação do material espontâneo”. Eles reafirmam, também, “o fato de que a humanidade acostumou-se cada vez mais, ao longo das eras, a considerar a conserva cultural, com suas implicações de perfeição, um sine qua non de todo o esforço e empreendimento humanos”. Em momento nenhum eles pretendem subentender que a conserva cultural seja uma qualidade indesejável na cultura civilizada. Por outro lado, “através da sua persistente concentração no artigo acabado, o homem negligenciou sistematicamente uma outra propriedade vital da sua existência, o elemento da criatividade espontânea per se. O fato de um público poder exibir uma apreciação entusiástica de uma atuação espontânea é algo que já ficou, para ele, repetidamente demonstrado no teatro psicodramático e fora dele. Uma vez informados os espectadores sobre o que devem esperar, eles podem ser persuadidos a reajustar seus padrões de apreciação, em obediência aos princípios artísticos de uma produção de espontaneidade”.

Eles afirmavam que os experimentos de espontaneidade cuidadosamente organizados deveriam mostrar às entidades que controlavam a disseminação de notícias, os programas de diversão, etc., que a televisão podia funcionar, de fato, sem o emprego de conservas, e prepararam uma série de estudos mostrando a aplicabilidade dos métodos de espontaneidade ao veículo tecnológico da televisão: Procedimento Operacional de uma Emissão de TV, Procedimento Operacional de um Desempenho Espontâneo, Sugestão para adaptar os Métodos de Espontaneidade à Televisão, Direções e Propósitos da Pesquisa em Televisão.

Eles sugerem que “o público da televisão pode ser educado de acordo com as linhas de espontaneidade, mediante os seguintes métodos (que ainda hoje não são colocados em prática, e são um exemplo do que denominamos de velho-novo potencial psicodramático da televisão) :

1. As estações emissoras podem enviar pesquisas de opinião aos membros do público, convidando-os a apresentar críticas e sugestões a respeito de vários programas (mas que nada tem a ver com as pesquisas quantitativas e qualitativas, tão disseminadas, que visam a venda de produtos comerciais);
2. Podem ser televisionadas conferências, a certos intervalos, explicando os vários aspectos do trabalho de espontaneidade e os princípios básicos que lhe são subjacentes;
3. Os membros do público televisivo podem ser convidados a participar ativamente em produções espontâneas selecionadas.”

E eles continuam, à guisa de conclusão: “É aconselhável organizar sessões psicodramáticas a serem transmitidas ao mundo desde uma estação de televisão. As suas três características principais - o público, o diretor com sua equipe de ego-auxiliares, e a ação dramática no palco - devem ser mantidas.

“A audiência, como elemento de sondagem da opinião pública, deve consistir num pequeno grupo de indivíduos que representam os papéis dominantes na comunidade em geral, e informantes dos conflitos sociais correntes. Como essa audiência padronizada e adestrada (no sentido psicodramático a que nos referimos) representa a audiência nacional que vê e ouve os programas, o problema terapêutico deveria promanar, se possível, do público e passar deste para o palco.

“O diretor do público ou um dos seus audio-egos, deveria apresentar-se como o porta-voz ou querelante. Tal como numa sessão psicodramática, depois de cada cena ter sido representada no palco, deveria intercalar-se um debate com a audiência.        

“De tempos em tempos, um audio-ego subirá ao palco, representando uma ou outra parte do público em sua entrevista com o diretor. É de grande valor terapêutico que o processo total de interação entre o público e o palco seja televisionado. Verificou-se que a função terapêutica do público é inestimável no psicodrama e, portanto, não deve ser descurada a sua visualização na televisão.

“O cidadão, em sua casa, deve sentir que está participando fisicamente numa sessão; deve sentir que o seu próprio representante, um audio-ego, está atuando por ele na tela, no palco, como no auditório do público. Assim, não só se produz a ilusão de uma participação pessoal mais íntima na sessão psicodramática mas também uma forma de catarse do público semelhante à experiência do público em sessões ao vivo.”

É interessante também observar que, embora tenham vislumbrado a globalização da comunicação, eles previam a “localização”, a que os teóricos da Comunicação estão denominando de “glocalização”- via de escape de cada comunidade frente à imposição e pasteurização da globalização. Por exemplo: uma novela brasileira é transmitida no Japão. Durante o processo de dublagem ocorre a “glocalização”, ou seja, os tradutores adaptarão expressões e outras características para a realidade japonesa.

Como veremos, a seguir, na sugestão expressa por eles, podemos constatar a consciência que eles tinham (em 1942) da globalização da comunicação.

É aconselhável organizar jornais vivos e dramatizados que sejam transmitidos ao mundo através das emissoras de televisão. Isto é mais do que o usual noticiário fotográfico de eventos; é um instrumento por meio do qual o gênio vivo e criativo pode, neste planeta, comunicar-se direta e instantaneamente com os seus semelhantes.”

Com certeza Moreno hoje estaria propondo novos procedimentos para as novíssimas possibilidades de comunicação, pois como ele mesmo reconhecia (em 1942) “numa era tecnológica como a nossa, o destino e o futuro do princípio da espontaneidade, como padrão principal da cultura e da existência, podiam depender do êxito que se obtivesse para vinculá-lo aos inventos tecnológicos...para atingir e educar o grande público”.

Há todo um universo de pesquisa, inovações e experimentação aberto. Vale a pena ler ou reler os textos de Moreno que falam de teatro, rádio e cinema, e ousar espontânea e criativamente.

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Outubro 2009

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Liana Gottlieb
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