Psico x Somática?

Mário Costa Carezzato

 

Houve um tempo em que todas as doenças (ou quase todas) tinham seus componentes emocionais. Úlcera gástrica? — Sapos engolidos, dependência afetiva.  Hipertensão arterial? – Raivas contidas, conflito entre dependência emocional e desejo de independência.  Artrite reumatóide? — Desejo de manter o controle sobre os outros. Asma? — Medo de abandono. Câncer de mama? — Mágoas contidas, falhas no modelo materno.
Porém, tal como ocorreu na Psiquiatria clínica, a medicina adquiriu novos e modernos recursos terapêuticos e conhecimentos. Mecanismos fisiológicos foram desvendados e hoje sabemos, por exemplo, que cerca de 80 a 90% dos casos de úlcera péptica são causados pela bactéria Helicobacter pylori e saram completamente com antibioticoterapia. Fatores genéticos foram descobertos para várias doenças, como a hipertensão, obesidade e o próprio câncer de mama. Novas soluções e condutas preventivas tornaram hipertensões, hiperlipemias, cânceres de mama ou de tireóide meras intercorrências triviais na vida de qualquer um e até a tão psicossomática impotência sexual ganhou seu remédio, possibilitando a qualquer um ter relações sexuais mesmo com quem não o atraia, e por muitas vezes! E, se há quem diga que depressão e pânico devem-se a uma baixa produção de serotonina, temo o tempo em que se dirá que impotência sexual tem sua origem na baixa taxa de Viagra circulante!
Mas, como no estudo de esquizofrenia em gêmeos idênticos, quando se encontra um risco de 50% do aparecimento da doença no irmão de um paciente acometido, levando a concluir que 50% da causa da doença se deve a um fator genético e os outros 50% se deve a fatores ambientais, podemos nos perguntar por que 50% dos indivíduos normais são portadores do Helicobacter pylori sem apresentar a doença?
É frequente que novas descobertas ou novas idéias sejam tomadas como revolucionárias, novas panacéias que invalidam as “antigas e ineficientes” condutas anteriores. Foi assim também com a abordagem psicossomática, que não apresentou afinal um resultado terapêutico da mesma proporção das teorias desenvolvidas. E acontece atualmente, quando os determinantes psicodinâmicos são mais do que ignorados, são ativamente negados, tratados como um conto de carochinha em que só ingênuos podem acreditar. Para exemplo, um trecho de um texto escrito por um psiquiatra clínico sobre a “forma antiga” de pensar a obesidade:
“Durante muito tempo, notadamente nas primeiras seis décadas do século passado, entendeu-se a obesidade a um só tempo como resultante de dificuldades ou déficits morais e/ou como resultante de problemas psíquicos.Assim, o obeso era visto como uma pessoa de baixa auto-estima (só alguém que se odeia pode ficar assim deformado), com limitações intelectuais (deve ser burro... sabe que se comer tanto engorda, mas mesmo assim se entope de comida), com mau funcionamento mental (é muito ansioso: come para descontar a angústia, troca o afeto por comida, em vez de ter uma vida sexual adequada, sublima seus desejos através da comida), covarde (se esconde por trás daquela capa de gordura) e egoísta (fica deste tamanho para ocupar mais espaço no mundo).
Este pequeno parágrafo traz embutida uma série de desdobramentos; nenhum deles pode ser considerado bom.
Talvez o principal seja que uma grande parte de profissionais da Saúde ainda pense deste modo francamente inadequado e cientificamente não embasado. Isso faz com que a doença não seja encarada como tal e, portanto, o sucesso terapêutico só esteja presente quando a sorte do paciente for grande.”
Equiparando senso comum à abordagem psicológica, o autor pretende desqualificar o conhecimento psicodinâmico, não merecendo aqui qualquer apreciação a não ser servir como exemplo do discurso dito científico, bastante freqüente hoje em dia.
            Mas por falar em carochas, “que las hay, las hay”, creia-se nelas ou não. Pessoas continuarão a sofrer de hipertensão e azia quando em situações estressantes, agorafóbicos em qualquer grau não evacuarão por dias enquanto viajarem, hemorróidas doerão e sangrarão quando alguns tiverem medo e os ansiosos e depressivos atacarão as geladeiras em busca de seus alívios/prazeres imediatos. Poderão sim se submeter a cirurgias e remédios que serão eficazes e cujas virtudes não vacilo em reconhecer, mas de forma alguma estarão livres dos “fatores ambientais” e fatalismos genéticos sob os quais se tenta camuflar a dificuldade de lidar com o psiquismo. Casos como já pude acompanhar, das complicações de uma cirurgia bariátrica que não levou em consideração os aspectos psicodinâmicos envolvidos, felizmente não são a regra, pois bons médicos acabam por dar a devida importância às avaliações psicológicas pré-cirúrgicas, apesar do discurso oficial divulgado.
            Cabe ao profissional da psicodinâmica, entretanto, enfrentar o desafio de oferecer uma resposta efetiva às pessoas que quiserem ser tratadas nesta abordagem em que trabalhamos. Teorizar numa psicologia que remete o inconsciente a um espaço metafísico alhures situado, alienando o sujeito dele próprio ou, em nome de um purismo teórico ou operacional, dissociar o simbólico da demanda apresentada, são posturas que só fortalecem o equívoco de que pouco temos a fazer, de que somos ingênuos sonhadores (ou charlatões) de um tempo romântico que não cabe mais.

           
Voltarei a abordar algumas intervenções que venho praticando neste sentido, aonde a concepção de papéis do Psicodrama, na medida em que integra inconsciente e experiência como um todo único, tem grande importância no reposicionamento do indivíduo enquanto sujeito de sua própria saúde, reforçando os avanços e recursos da medicina atual.
           

 

Fevereiro 2009

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Mário C. Carezzato
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