A Convivência da Psiquiatria com a Psicoterapia

Mário Costa Carezzato

 

Pinel, ao libertar os asilados de Bicêtre durante a Revolução Francesa, lançou a pedra fundamental da psiquiatria científica, dando início ao estudo e à classificação dos distúrbios mentais, antes relegados ao campo do moralismo religioso ou da superstição.

A evolução desses conhecimentos originou duas escolas: na Alemanha a psiquiatria dita “pesada” era voltada ao estudo das psicoses, das demências, das bases anatômicas e neurológicas das doenças; já na França, tendo como seu maior expoente Jean-Martin Charcot, desenvolveu-se a psiquiatria dita “leve”, interessada na  compreensão da histeria e no estudo de fenômenos como a hipnose. Logo essas duas vertentes se colocaram como inconciliáveis.  

Nada muito preocupante conquanto à psiquiatria orgânica coubessem as psicoses e patologias evidentemente de base orgânica, como as demências e epilepsias, e aos psiquiatras dinâmicos os casos de neuroses. De fato, até há alguns anos atrás, pouco a psiquiatria orgânica podia fazer pelos sofrimentos neuróticos além de ministrar alguma variação de diazepínico, em doses que poderiam chegar até a uma “sonoterapia”.  Por outro lado, também o trabalho psicodinâmico com psicóticos, por mais efetivo que possa ser, acaba sem atingir a estrutura da doença.

Nos últimos 30 anos, devido ao aparecimento de novas drogas (em especial os novos antidepressivos), este nunca pacífico “acordo de cavalheiros” então vigente se desequilibrou. Armados de seu novo arsenal, os defensores da psiquiatria orgânica podem hoje apresentar resultados bastante efetivos na resolução de sintomas, confirmando-se no valor da base científica positivista, a medicina baseada em evidências.
Bem, quanto a ser cientifico ou não...  Se a psicanálise de Freud, apesar de todo seu esforço não adquiriu o status de ciência, o que dizer do Psicodrama, cujo autor confessou que frente ao dilema de fundar uma nova religião ou desenvolver uma nova psicoterapia preferiu o segundo caminho?

Porém, o que parece inconciliável reflete, de fato, visões complementares dos fenômenos psíquicos, cujo antagonismo deve muito às questões políticas envolvidas.

A psiquiatria clássica sempre se organizou descritivamente, distinguindo sintomas e organizando categorias. Como disciplina médica, a questão do normal sempre se contrapôs à doença, tratando as peculiaridades individuais como variações. O individual é avaliado apenas frente aos modelos de normalidade ou de doença: todos nós já ouvimos as queixas de “frieza dos médicos” e como eles não se importam com “o que o paciente sente”. Também, pelo modelo médico, a terapêutica pretende ser normalizadora, buscando-se a padronização dos diagnósticos e das condutas.

A abordagem psicodinâmica, por outro lado, sempre busca o significado individual do sintoma. O individual é justamente aquilo que se manifesta fora da ordem. O ato espontâneo, para Moreno, resulta necessariamente no novo, na Criação daquilo que ainda não existia e que surge dos indivíduos através da relação.

Lidamos portanto com duas formas de verdade: para a Psiquiatria positivista, tal como em Direito, a verdade é aquilo que se mostra. A verdade sem provas não é verdade. Para o psicoterapeuta a verdade, se é que existe, é multifacetada e freqüentemente oculta. Sabe-se a verdade mesmo que não se possa prová-la. 

Moreno ainda fala da verdade que o grupo constrói, aquela verdade que se escreve a partir dos fragmentos individuais recolhidos e reformulados coletivamente. E é claro, uma verdade que se transmuta a cada grupo reunido, já que verdade do grupo, e que não corresponde a nenhuma verdade individual anterior a sua formulação.

E é para falar destas duas abordagens (com as mais variadas verdades), uma a partir do coletivo e a outra a partir da individualidade e, por ser Psicodrama, através da relação, que aceito o gentil convite de escrever nesta coluna, tentando, não conciliar, tarefa além de minha capacidade, mas mostrar que há possibilidades de enriquecer nossos trabalhos articulando recursos, idéias e conceitos de ambas as vertentes de conhecimento. Tentarei abordar temas que merecem discussão, referentes à terapêutica, ética, papel social da profissão, entre outros.

Sem dúvida uma oportunidade pela qual agradeço ao Departamento de Psicodrama do Sedes e à Silvia Petrilli.

 

Agosto 2008

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Mário C. Carezzato
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