Se Freud respondesse...

Vera Rolim

 

Após assistir uma aula sobre análise do sonho do Dr. Freud, em Viena de 1912, o jovem Moreno relata que o encontrou e, inquirido por ele sobre o que estava fazendo, responde:

“Bom, Dr. Freud, eu começo onde o senhor deixa as coisas. O senhor vê as pessoas no ambiente artificial do seu gabinete, eu vejo-as na rua e na casa delas, no seu ambiente natural. O senhor analisa os sonhos das pessoas. Eu procuro dar-lhes coragem para que sonhem de novo.”1

O professor Freud parece que nem te respondeu, não é Moreno? Mas hoje ele se dispôs a te responder.

Freud: Você sabe que, ao analisar os sonhos, um dos meus propósitos é que as pessoas se sintam mais livres e possam conhecer a si mesmas e entrar em contato com suas verdades mais profundas, às vezes até muito incômodas?

Moreno: Pois eu busco a espontaneidade criativa das pessoas e, como comecei falando do método, vou focar por aí. Meu caminho é pela ação e implica sempre num trabalho relacional entre as pessoas. Vou também buscando a verdade subjetiva, mas através da ação dramática, onde o corpo todo da pessoa está envolvido e não só a palavra.

Freud: Eu não nego o corpo do paciente, mas este corpo para mim é erógeno e quero escutar o que ele tem a me dizer através da palavra. Analisar a fala me fascina, chegar à palavra plena, como diz Lacan.

Moreno: Ora, chegar à palavra encarnada eu também chego, resgato o simbólico de um jeito mais à vontade, divertido, intenso, onde o paciente dramatiza cenas, joga papéis, vivencia relações, emoções e conflitos. E claro que há um trabalho integrativo de tudo isto.

Freud: Considero também o humor importante no trabalho com os pacientes. Até já escrevi sobre este tema.

É interessante falar do método de cada um de nós através da idéia que você trouxe no início do trabalho com os sonhos. Penso que o sonho é a via régia para a compreensão dos processos inconscientes e é aí no inconsciente que o desejo infantil, sexual, reprimido está inserido. Qual é o motor do sonho? É a busca da realização desse desejo inconsciente. Será a nossa verdade mais profunda?

Vou constatando também que o sonho é o guardião do repouso e do desejo de dormir. Esta atividade psíquica, os sonhos, foi muito investigada e trabalhada por mim, foi o meu mais completo trabalho. Mesmo você, Moreno, que faz uma outra abordagem dos sonhos, aconselho-o a ler a “A interpretação dos sonhos”, que escrevi. Vai enriquecê-lo.

Vou te dar um “thriller” dele. Vejo o sonho com um roteiro figurativo, curto, sintético, como uma carta enigmática a ser decifrada. Esse deciframento nos conduzirá aos pensamentos oníricos latentes e daí ao desejo que tinha sido reprimido. Como você sabe, há dois registros do sonho: conteúdo manifesto e pensamentos latentes. Cada um aparece numa linguagem diferente com leis e articulações distintas. Cada sonhador cria sua própria gramática dos sonhos e faz suas distorções usando os conhecidos processos de condensação, deslocamento e figuração, característicos da construção dos sonhos. Processos estes que constituem os principais modos de funcionamento do inconsciente. Estas deformações permitem burlar a censura e fazer o desejo circular pelo sujeito.

Moreno: É curioso seu ponto de vista, mas a minha visão é outra.  Quanto ao seu livro sobre  Interpretação dos sonhos, já o li. Não considero, como você, que a verdade do sujeito está determinada pelo eterno desejo infantil, sexual, reprimido. Este é um universo fechado e determinado pelo passado. Entendo o seu parecer, por você partir sempre nas suas pesquisas do homem doente, neurótico, a ser curado. Eu parto de outros pressupostos sobre o homem [alguns já falados anteriormente aqui nesta coluna], como o encontro eu-tu e eu-isso. Busco que o homem se aproprie de suas energias criativas num tempo presente e em um universo aberto e realize-as na sua vida. E nesta apropriação, não separo as questões ditas neuróticas, se não são incapacitantes, mas acho importante conhecê-las, trazê-las à luz e integrá-las à vida. Penso, Freud, que o homem não nasce sonhando, começa a sonhar só a partir do 2º universo com a fome de sonhos, que sucede a fome de atos do 1º universo. E no meu trabalho com o sonho, diferente de você, em vez do sujeito relatar o sonho, vai representá-lo dramaticamente, trazendo os elementos do sonho original, que vão sendo ampliados e recriados. Depois o paciente faz uma extensão psicodramática do sonho, continuando o sonho para além do final que tinha originariamente. Vejo o sonho como um impulso criativo e acho melhor que a compreensão dele, sonho, seja alcançada não pela análise, mas pela própria experiência que ocorre na ação dramática.

Freud: São visões e abordagens diversas, mas não inteiramente incompatíveis. O tempo e os nossos seguidores talvez possam fazer mais integrações e recriarem nossas idéias e nossa metodologia.

Moreno: Também acredito nisto. Sonhar é condição fundamental da nossa existência e, como dizem alguns, sonho que se sonha junto é realidade.
 
Obs.: O diálogo acima é fictício. Embora Moreno fale sobre o encontro com Freud em 1912, hoje se acredita que este encontro não existiu de fato.


1 Moreno, no seu livro “Psicodrama”.

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julho 2008

 

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