ARTIGOS

Medicina, psicossomática e neurociências: possibilidades de intersecções e aplicações na prática clínica


Medicine, psychosomatics and neurosciences: possibilities of intersection and application in clinical practices
Helly Angela Caram Aguida
Luciana Pires de Lima

RESUMO
O presente artigo abordará alguns aspectos históricos das ciências médicas, passando pelo início da psicanálise e seus autores mais contemporâneos que contribuíram com a psicossomática, até os dias atuais, que contemplam os avanços científicos e tecnológicos das neurociências. Questiona-se como o arsenal de conhecimento no campo biológico, quando concebido de forma dinâmica e individualizado, pode contribuir como recurso técnico e auxiliar na relação e na ação terapêuticas.

Palavras-chave: Medicina e Psicanálise, Psicossomática, Neurociências e Psicanálise

ABSTRACT
First, this paper focuses on some historical aspects of medical science, starting from the beginning of psychoanalysis and its more contemporary authors who contributed to the psychosomatic area, until the current day, contemplating scientific and technological advances in neuroscience. Additionally, this paper questions how the set of knowledge in the biological field, when conceived in a dynamics and individualized way, can contribute as a technical resource to helping the patient-therapist relationship and therapeutic treatments.

Keywords: Medicine and_Psychoanalysis, Psychosomatic, Neuroscience and_Psychoanalysis


O todo é maior que a simples soma de suas partes

(Aristóteles)

 

Introdução

Desde os primórdios das civilizações, as dinâmicas envolvidas no complexo binômio saúde-doença intrigam e despertam a atenção e o interesse do ser humano. A multiplicidade de apresentações do sofrimento de alguma forma mobiliza o olhar e o cuidado do outro, diante da demanda implícita ou explícita de auxílio, socorro, alívio e cura para tantos males. Nesse contexto relacional se desenvolveu a medicina, com o atributo de "arte", envolvendo sensibilidade, observação, criatividade e pesquisa.

Apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos dos últimos tempos nos campos da biologia, genética, neurociências, farmacologia, bioengenharia, com novos e sofisticados métodos de diagnóstico e tratamento, vale ressaltar que a essência das práticas terapêuticas tem sua origem e fundamento no encontro humano, empático e sensível. Partindo dessa premissa, aquele que cuida se lança a buscar conhecimento, aprimoramento, qualificação afim de se equipar para o que propõe realizar como profissional da saúde.

Entretanto, são várias as possibilidades de percurso e formação, com diferenças na forma de conceber o ser humano, nos objetos de estudo, métodos científicos e terapêuticos, o que delimita o campo das ciências em humanas e biológicas ou naturais. Talvez por conta de tais diferenças e das identificações com foco nas humanidades ou na biologia, quando em caráter excludente, possam ocorrer afastamentos e polarizações entre áreas da saúde que têm muito a dialogar. Acreditamos que quando a biologia é atravessada pelas humanidades e as humanidades pela biologia, concepções estáticas e reducionistas dão lugar a perspectivas mais dinâmicas e integradas. Não se pretende caminhar para um "holismo ingênuo que nada quer separar ou tudo quer juntar indiscriminadamente..."(DE MARCO, 2010).Sem dúvida, é fundamental o desenvolvimento de cada área no campo da saúde, com seus próprios métodos e particularidades. E, diante desse movimento empreendedor das ciências na pesquisa e no conhecimento, cremos ser importante não descolar dos pontos que motivam a partida e a chegada de todo investimento profissional e científico: buscar compreender e oferecer recursos adequados às necessidades dos pacientes que nos procuram, conforme a percepção e a disponibilidade de cada um. O conhecimento a serviço dele próprio e o aprimoramento profissional, por si só, podem não ser agentes de vida e transformação.

Por conta dessas questões, nos propomos a discutir as possíveis relações entre medicina, psicanálise, psicossomática e neurociências no campo da experiência clínica. Ainda que possam divergir quanto aos "porquês" dos processos e a "como" parecem ocorrer, talvez possam convergir de alguma forma quando "para quê" ou "para quem" ecoam como pilares do campo teórico-clínico, que sempre mobiliza, impulsiona e questiona nosso suposto saber.

Para balizar a discussão de tais aspectos, se faz útil olhar para trás e observar alguns pontos: como a medicina e, obviamente, a identidade médica foram se desenvolvendo ao longo da história, com ganhos, perdas e danos; a força e o impacto da psicanálise, seus desdobramentos e perspectivas de continuidade e expansão do conhecimento em campos menos explorados por Freud, como a psicossomática; os avanços tecnológicos e descobertas das neurociências que, se por um lado instigam e fascinam, por outro, afastam e confundem a muitos.

 

Aspectos Históricos

Desde os sumérios, na Mesopotâmia (por volta de 3.100 a.C.), e também na civilização egípcia, não havia muita discriminação entre medicina, magia e religião. A concepção da doença estava além da dimensão material do organismo, e não havia separação entre sofrimento da alma e do corpo.

Na Grécia Antiga, a "arte da cura", como era denominada, desenvolveu-se no contexto da mitologia, que, repleta de simbolismos, revela aspectos de suas bases e da identidade médica. Asclépio (em grego) ou Esculápio (em latim) surge como o deus da medicina, ou melhor, "semideus", por ser filho de Apolo (deus do Olimpo) e Corônis (uma mortal). O mito nos remete, de certa forma, à figura de um semideus entre os mortais, de um herói deificado, símbolo da unidade indissolúvel entre as naturezas humana e divina (KAUFMAN, 2010). Não é improvável que essas identificações tão "arcaicas e primitivas" possam contribuir para supostas desigualdades e dificuldades de diálogo e intersecções com outras áreas voltadas à saúde.

Os templos de Asclépio eram destinados ao cuidado integral dos doentes e também à formação dos médicos ditos asclepíades (filhos do semideus). Dentre eles, destacou-se Hipócrates (460-380 a.C.), com suas profundas contribuições à prática de uma medicina científica, humanizada, com visão integral do ser humano, sendo o médico "o servidor da arte". Hipócrates introduziu a ideia de unidade funcional do corpo, em que a alma (psique) exerce uma função reguladora de todo o ser. Segundo ele, cada doente tem sua história singular; cabe ao médico a tentativa de reconstituí-la e prever seus possíveis desdobramentos (VOLICH, 2010). Observa-se a forte relação do "pai da medicina" com os fundamentos da psicossomática atual.

Entretanto, foi na Idade Média que as bases do método científico e do modelo biomédico foram estabelecidas. René Descartes (1596-1650), exímio matemático e filósofo, influenciou sobremaneira a medicina com seu pensamento mecanicista, calcado na objetividade, exatidão e clareza. Instaurou-se uma cisão: de um lado, o corpo (res extensa), material, objeto de estudo da medicina; e, de outro, a mente (res cogitans), imaterial, destinada a pensar, sem relação com o corpo, aos cuidados da filosofia e da religião (VOLICH, 2010). Chamamos a atenção para a potência desse paradigma ainda nos dias atuais, com clara dicotomia entre os cuidados do corpo e da mente, do organismo e do psiquismo, entre saúde física e saúde mental. 

Somente mais à frente, com o Iluminismo, a concepção mais integrada do homem voltou a ganhar espaço entre os pensadores e na ciência. Em 1818, o psiquiatra alemão J. C. Heinroth (1773-1843) criou o termo "psicossomática" e, posteriormente, "somatopsíquico", como evidência da influência bidirecional entre o organismo e o psiquismo (STEINBERG,2012). Posteriormente, o desenvolvimento de novas tecnologias ao lado das descobertas no campo da microbiologia novamente influenciou o cuidar e a concepção e prática da medicina (VOLICH, 2010).

Entretanto, o fim do século XIX foi marcado pelo início do desenvolvimento do intrigante e ousado pensamento de Freud, inclinado a perscrutar e compreender o homem-sujeito e seu psiquismo. Apesar de todas as resistências ao olhar, à consistência teórica e ao seu polêmico método clínico, muitos médicos de sua época e de gerações seguintes, impactados com a psicanálise, procuraram expandir sua obra para campos menos explorados, como a psicossomática. Alguns se destacaram como clínicos e pensadores críticos e inovadores, como Georg Groddeck (1866-1934), Sándor Ferenczi (1873-1933), René Spitz (1887-1974), Franz Alexander (1891-1964), Wilhelm Reich (1897-1957), Donald Winnicott(1896-1971), que muito contribuíram para o desenvolvimento da psicossomática psicanalítica enquanto campo de pesquisa teórica e clínica.

 

A Psicossomática Psicanalítica e a Inclusão do Corpo na Subjetividade

Os estudos do francês Pierre Marty (1918-1993) e seus colaboradores possibilitaram ainda mais ampliação dos conceitos psicanalíticos no campo da psicossomática, com foco na importância de aspectos do funcionamento mental e suas relações com a ocorrência de manifestações e afecções somáticas. 

O próprio Marty (1998), destaca que:

Como individualidades encontramo-nos frequentemente submetidos a certo número de excitações de nossos instintos e pulsões. Os acontecimentos e as situações que se nos apresentam mais ou menos importantes na sua aparência atingem nossa afetividade e desencadeiam excitações que convém descarregar ou ecoar. (MARTY, 1998)

 

Somos afetados nos afetos... Eles circulam, excitam e buscam expressão. Todo esse movimento transita pela biologia, mesmo sem a permissão ou direção da consciência. Embora sejam células, circuitos, hormônios, proteínas, órgãos, sistemas, as reciprocidades nas interferências, regulações, associações e influências entre eles chamam a atenção quanto à especificidade singular do organismo de cada sujeito.

Seguindo o texto, Marty escreve:

 

As principais possibilidades de escoamento e descarga de que dispomos constituem, por um lado, um trabalho mental de elaboração das excitações sentidas e, por outro, os comportamentos motores e sensoriais diferentemente ligados ou não ao trabalho mental. Podemos, globalmente, adiantar que, quando as excitações que se produzem em nós não se descarregam nem se escoam, elas se acumulam e atingem, cedo ou tarde, de forma patológica, os aparelhos somáticos. O que vai me interessar particularmente é a via de escoamento que a dinâmica de nosso aparelho psíquico oferece, de modo diferente, para cada pessoa, em sua tarefa permanente de elaborar nossas excitações. (MARTY, 1998)

 

Marty se refere às alterações motoras e sensitivas reacionais que ocorrem no organismo como sendo um comportamento ligado ao que circula no indivíduo, conectado a algum afeto ou excitação. Esse comportamento do corpo "percebe e expressa" a desorganização antes que tomemos consciência desses processos.

Considerando que a principal função do aparelho psíquico é exatamente transformar as excitações em representações psíquicas (RANÑA, 2007), e que as mesmas constituem a base da vida mental de cada um de nós, a escola de Paris salienta a importância do conceito de mentalização, relacionado "à quantidade e qualidade das representações dos indivíduos, que variam em relação à presença e riqueza de conteúdo simbólico e afetivo" (MARTY, 1998). Pode-se dizer que a qualidade de tais conteúdos - simbólicos e afetivos - constitui um aspecto de suma importância na avaliação e no trabalho clínico. Quando o organismo se apresenta como demanda através do sintoma, cabe ao terapeuta buscar recursos para auxiliar na leitura do não dito, expresso no corpo, com vistas à possibilidade de integração psicossomática.

Nesse sentido, cabe lembrar a diferenciação entre dois tipos de representação: de coisa e de palavra. As representações de coisas surgem a partir das sensações e percepções vividas, podem estar ligadas a afetos e se associam aos comportamentos, sem associações com pensamentos e conteúdos mentais. As representações de palavras já se relacionam com a percepção de ideias, com a linguagem dos outros, nos variados níveis. Ranña (2007) ressalta que as representações de palavras, primariamente, são também representações de coisas, por serem inicialmente de ordem sensorial. As possibilidades de passagem de "coisa" para "palavra" ocorrem desde o início do desenvolvimento do indivíduo, com o contato e comunicações inicialmente com a mãe, ou com quem exerce sua função, e, então, com os outros. Assim, processos reflexivos, simbólicos e de linguagem vão progressivamente se desenvolvendo, como ferramentas para a associação de ideias.

Não podemos desconsiderar esse aspecto no campo de atuação clínica: representações de palavras ligam-se às representações de coisas. É extremamente frequente depararmos com situações nas quais o corpo, o órgão e a célula são concebidos pelos pacientes como "coisas". Nesse aspecto, abrem-se perspectivas importantes de trabalho clínico, no sentido de buscar tear, tecer, costurar, ligar, dar sentido aos movimentos da biologia, expressos nos sintomas, a fim de que a internalização eo reconhecimento desse corpo possam ser representados como "palavra".

As capacidades, disponibilidades e recursos do aparelho psíquico variam entre as pessoas, assim como em um mesmo indivíduo, dependendo do momento de sua vida, e podem se relacionar com processos de somatização. Ranña (2007) claramente discorre sobre essas questões, elucidando aspectos que nos propomos a discutir:

Uma sobrecarga de excitação pode exceder os limites de resposta do psiquismo, do ego, e "transbordar" para o corpo. As excitações somáticas necessitam do apoio do aparelho psíquico, o aparelho da linguagem, para terem um funcionamento integrado, harmônico e sintônico. Nos desequilíbrios do funcionamento fisiológico sempre estão implicados desequilíbrios entre pulsão de vida e pulsão de morte. O homem é, portanto, pulsional, e isto tem profunda implicação na sua fisiologia e na sua organização biológica, sendo esse aspecto um dos pilares conceituais da psicossomática. (RANÑA, 2007)

 

No parágrafo acima, palavras ou conceitos como "excitações, pulsão de vida, pulsão de morte, fisiologia, organização biológica" se destacam e expressam a relação sincrônica, não necessariamente afinada, entre mente e corpo, psicanálise e medicina. Daí a importância de valorizar a visão terapêutica voltada ao trabalho de "costura" desses elementos e ao auxílio na construção de associações e representações.

 

Contemporaneidade e Neurociências

Em tempos em que imediatismo e tecnologia se entrelaçam e se imbricam com o modo de vida contemporâneo, a otimização do tempo e a obtenção de informações e resultados de forma precisa, rápida e instantânea atraem a atenção e o interesse da sociedade moderna. Nesse sentido, os avanços neurocientíficos cresceram em caráter exponencial nas últimas duas décadas e se relacionam com a demanda de agilidade, precisão, inovação tecnológica e interação desses aspectos com a vida cotidiana.

Pretendemos discutir como esses avanços podem ser úteis na clínica, à medida que oferecem pouca resistência a muitos profissionais e pacientes e ao mesmo tempo despertam interesse por seu caráter mais informativo, fruto de investigação e pesquisa.

Entendem-se por neurociências as áreas que se dedicam ao estudo dos diferentes aspectos do sistema nervoso, englobando suas estruturas e funcionalidades até a bioquímica das células e a biologia molecular. Relacionam-se com várias disciplinas, como a neurofisiologia, neuroanatomia, neuropsicologia,psiquiatria, neurologia, entre outras. As novas técnicas de obtenção de neuroimagens, principalmente por meio da ressonância magnética funcional e da tomografia computadorizada com emissão de pósitrons, permitem observar o funcionamento ao vivo das estruturas encefálicas, o que até há pouco tempo não era possível. Dessa forma, demonstrou-se a correlação dos fenômenos mentais, entre corpo e mente, numa perspectiva dinâmica (DOIN, 2010). Essas tecnologias evidenciam a possibilidade de visualizar uma imagem de integração neurológica/psicológica em pleno funcionamento, em tempo real. (LENT, 2001; DAMASIO, 2018).

Para as neurociências, não existe separação entre corpo e mente, pois a influência entre ambos é recíproca. A constituição do Eu não deixa de se dar a partir e através do desenvolvimento e entrelaces de processos neurais de diversas partes do encéfalo e do organismo, em associação com as experiências emocionais e relacionais vivenciadas ao longo da vida (DAMASIO, 2012).

Kandel, prêmio Nobel de Medicina em 2000, chamou atenção para um curioso fenômeno, que denominou insight biológico. Por meio de técnicas de neuroimagem, observou-se que as ativações de alguns circuitos neurais eram acompanhadas, ao mesmo tempo, por experiências psíquicas prazerosas, de entendimento súbito, como algo do tipo: "Nossa, finalmente entendi! " (KANDEL,1999).

Quando pensamos em fragilidade, fragmentação de aspectos da construção subjetiva dos pacientes que nos procuram com suas dores, seus sintomas, cabe-nos avaliar as possíveis formas e recursos para estabelecer uma comunicação clara e acessível que possa buscar compreender o sentido da linguagem do corpo que demanda cuidado e socorro. Na verdade, se o sintoma pode aparecer como um apelo, não há dúvida de que a biologia se movimenta e se articula com nossas vivências e memórias, quer tenhamos ou não consciência desses processos. Os sistemas orgânicos estão ligados, intrincados, conversam-se, comunicam-se, estimulam-se ou inibem-se sem nosso conhecimento ou permissão. O corpo biológico não é estático diante das experiências vividas. Ele se apresenta em constante movimento e transformação, carregando em si nossa singularidade e expressando de alguma forma o que não pode ser dito.

Nesse sentido, os avanços das neurociências trouxeram inúmeras contribuições e continuam contribuindo para o entendimento das relações entre mente e corpo, com descobertas impressionantes a respeito dessa dinâmica articulada em conexões e redes associativas dentro do sistema nervoso, e deste com todo o organismo. Não há vida mental ou psíquica sem concomitantes atividades biológicas, físicas e químicas, que ocorrem, se desenvolvem e se expressam de forma absolutamente única e particular em cada sujeito.

 

Possíveis Intersecções na Prática Clínica

Em vários pontos deste texto, aspectos teóricos foram salientados com a perspectiva de diálogo com a clínica. Em nossa prática médica, sintomas no corpo, "vozes do corpo" comumente se apresentam como a única via de expressão de dor, transtorno ou angústia que possam estar presentes e relacionados com a queixa.

Ranña (2007) comenta que o sintoma é também um apelo sem linguagem, da ordem do grito ou do gesto. E também aponta que, segundo o pensamento winnicottiano, o paciente com distúrbios orgânicos apresenta uma qualidade particular de resistência e, portanto, demanda um trabalho também singular na transferência. Ele segue afirmando que:  

 

Os médicos, com frequência, também vivem uma cisão epistemológica, não sendo capazes de considerar os dois aspectos implicados nos estados clínicos, criando uma separação entre o psiquismo e o somático, desconsiderando a intersecção aí existente. (RANÑA, 2007)

 

Em outras palavras, cremos que a escuta do terapeuta (médico, psicólogo ou psicanalista) deva procurar se descolar da cisão cartesiana e investir na compreensão da linguagem do corpo que o paciente lhe apresenta. A clínica psicossomática demanda disposição interna daquele que cuida para o diálogo entre os profissionais e abordagem interdisciplinar.

Ainda em relação ao encontro clínico, vale ressaltar a importância da construção de um espaço terapêutico, que ao longo do tempo vai se constituindo como uma espécie de "prótese psíquica" que integra, na transferência, aspectos frágeis, pouco desenvolvidos e fragmentados do paciente (RANÑA, 2007).

Diante de tudo que já foi explanado, como poderíamos articular a escuta terapêutica com a atividade clínica nos dias atuais?

O que podemos observar na prática clínica é que aqueles que nos procuram, na maioria das vezes, já passaram por diversos profissionais, acessaram informações na internet, na incessante busca por respostas e alívio de seus sintomas. Em tempos em que a cultura do imediatismo promove o acesso digital a quaisquer informações em questão de segundos, fica a pergunta: como acolher, ouvir aqueles que nos procuram com discursos tão distanciados da subjetividade, demandas de prontidão e resoluções práticas o quanto antes? Citamos a seguir alguns exemplos clínicos, com fragmentos de falas de pacientes que nos procuraram para consulta médica especializada.

"Doutora, a senhora atende pessoas que têm déficit de atenção? Antes de te procurar, preenchi o questionário que encontrei na internet e vi que tenho déficit de atenção. Vi também que para este problema devo tomar um remédio chamado..."

"Estou vivendo muitos problemas no trabalho. Pesquisei na internet e vi que estou com síndrome do esgotamento profissional."

"Venho sentindo desespero, palpitações, mãos geladas, tremedeiras. Tive que parar meu carro, saí correndo pedindo ajuda, porque achei que estava infartando. Me levaram para o pronto-socorro, fizeram todos os exames e disseram que eu tinha que procurar um psiquiatra. Fui pesquisar na internet e lá dizia que o que eu tenho é pânico e tenho que tomar remédios."

"Meu pai morreu há um mês e não consigo me concentrar mais para fazer minhas coisas, estava pesquisando na internet e estou com muito medo de entrar num luto complicado..."

A contemporaneidade, com seus aspectos sociais e culturais, influencia o entendimento sobre o adoecer, a forma como é concebido e compreendido pela sociedade. A cultura também impacta nas formas de busca e acesso ao conhecimento das abordagens terapêuticas, bem como em relação à ajuda que pode ser oferecida pelos profissionais.

Pensadores e pesquisadores do passado que propuseram, com base nos desafios da clínica, flexibilização das técnicas e abordagens terapêuticas de seus campos do saber têm muito a contribuir na atualidade. A elasticidade da técnica proposta por Sandór Ferenczi reflete seu pensamento criativo e inovador, na expectativa de que "os artistas" (terapeutas) poderiam trazer novas perspectivas e progressos. Ferenczi fala ainda sobre a ideia do "tato" no ato psicanalítico, o "sentir com", o "falar com"; enfoca a importância da empatia e da afetividade, buscando uma comunicação em que a linguagem do paciente pudesse transitar mais livremente, e o profissional pudesse estar mais sensível à escuta (FERENCZI, 1927; KUPERMANN, 2008). A arte e a sensibilidade do terapeuta se associam à empatia e à capacidade de não considerar seu narcisismo afrontado e/ou atrelado à onipotência do suposto saber. "A modéstia do analista e/ou profissional não é, portanto, uma atitude aprendida, mas a expressão da aceitação dos limites de nosso saber" (FERENCZI, 1927).

Concebendo que as manifestações psicossomáticas podem se apresentar como tentativas de "cura psíquica" quando os conflitos, a dor, os sofrimentos não foram ou não puderam ser expressados, a presença sensível do terapeuta é de extrema valia e importância para a evolução do processo terapêutico. No encontro com os pacientes, existe a possibilidade de criação e/ou recriação da história psíquica, que pode ser transformada, ressignificada, o que pode deixar o corpo "livre" das tentativas incessantes de se reconciliar com a dor psíquica (McDOUGALL, 2000a).

Diante dessas colocações, apresentamos a seguir alguns casos com o intuito de mostrar experiências clínicas que contenham aspectos referentes à elasticidade da técnica e à utilização de informações e conhecimentos mais "concretos" das neurociências no encontro terapêutico.

Caso 1: Senhor P., 62 anos, engenheiro, procurou inicialmente a psiquiatria levado pelas irmãs, pois havia tentado suicídio com ingestão medicamentosa. Apresentava tiques na boca, como se estivesse mastigando o tempo todo, marchava, expressava inquietude (sentava-se, em segundos precisava levantar-se, repetia esse movimento diversas vezes), angústia, desespero, choro fácil e aperto no peito. Dizia que não fazia a menor ideia do porquê de tais sintomas. Sua empresa, uma empreiteira com 200 funcionários, tinha falido há 2 meses; a esposa saíra de casa para morar com um amigo da família há 1 mês e o pai tinha falecido há 15 dias. Após ouvir sua história, ficou notório que o paciente não fazia qualquer conexão entre os eventos recentes e seus sintomas. O tempo todo dizia que não fazia nenhum sentido ter relação entre aquelas manifestações e os acontecimentos citados. Falava que ele, por ser engenheiro, não conseguia conceber a ideia de que o corpo poderia de alguma forma expressar o estresse da vida. Além disso, verbalizava que todos os eventos eram "normais", ou seja, era normal uma empresa falir e dever milhões aos bancos, era normal um casamento acabar. Com relação à morte do pai, nem foi ao velório ou ao enterro, porque dizia que "morrer todo mundo vai um dia" e que ninguém precisava de sua presença no velório, já que havia acertado todas as despesas necessárias. Entendi que, como em seu universo e pensamento tudo era matemático, exato, concreto, seria interessante mostrar a ele, através dos conhecimentos neurobiológicos, como alguns eventos da vida poderiam afetar nossa mente e corpo. Apresentei ao senhor P. o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (eixo HPA), que é ativado quando estamos diante de um estresse físico ou psicossocial, liberando um hormônio chamado cortisol. Este hormônio, quando presente em nosso organismo, altera cronicamente todo esse eixo. Ele me disse com muitas risadas: "Ainda não faz nenhum sentido para mim, mas vou confiar em você e quem sabe eu melhoro". Na verdade, quando ele disse que iria confiar no que apresentei a ele, percebo que houve de alguma forma uma compreensão a respeito da ligação de seus sintomas com seu funcionamento mental, suas emoções, suas vivências, o que possibilitou a "sua entrega" ao acompanhamento e a expectativa de alguma melhora. Foi proposta psicoterapia, e ele aceitou. Durante o processo, o senhor P. começou a fazer conexões entre os seus sentimentos e as manifestações clínicas. Começou a perceber que, quando se lembrava de algo triste e frustrante, os sintomas retornavam. Aos poucos, o senhor P. passou a ligar o corpo aos afetos, e dizia: "Estou melhorando, muitos dos meus pensamentos e meus sintomas automaticamente estão sumindo... ainda não consigo imaginar como isso é possível, mas talvez aquilo que a senhora me explicou nas primeiras consultas seja verdade mesmo". Foram quatro anos em terapia. O senhor P. com muita frequência trazia que estava conseguindo entender que, de alguma maneira, aquilo que ele sentia dentro de si se ligava a algo no seu corpo, e que agora ele estava muito bem; já não se apavorava mais quando ficava preocupado, angustiado e/ou aflito; e que, surpreendentemente, conseguia aguentar todos aqueles sentimentos sem que o corpo falasse por eles.

Caso 2: Senhora S., 48 anos, separada, mãe de quatro filhos, empregada doméstica, alfabetizada, foi internada num hospital em São Paulo para a realização de transplante renal. A senhora S. contou que há quatro anos descobrira que seu filho mais velho havia se envolvido no mundo do crime e das drogas. Na ocasião, ele tinha 17 anos. Vou chamá-lo de L. A senhora S. passou a trabalhar sempre preocupada e angustiada, pensando que algo ruim pudesse acontecer com ele. Além disso, objetos da casa sumiam e ela, com muitas dificuldades financeiras, tentava repô-los para que não faltasse nada aos filhos mais jovens. Nessa época, foi diagnosticada com hipertensão arterial sistêmica. Um dia, ao retornar para casa, viu que o tênis que acabara de comprar para o filho mais novo havia sumido e logo imaginou que L. havia "furtado" para comprar drogas. L. nunca mais voltou para casa. A senhora S. percorreu diversas delegacias e IMLs, sem sucesso. Após 7 dias do desaparecimento de L., a senhora S. foi chamada para reconhecer um corpo que havia sido enterrado como indigente e que possivelmente seria de seu filho. Feita a exumação, ela constatou que era seu filho. Ela começou a gritar sem cessar. Após algumas horas, entrou em mutismo. Passou 22 dias deitada na cama, não comia, não falava e ficava o dia todo com o olhar fixo para a parede. A família percebeu que havia algo diferente nos últimos dias e decidiram levá-la para o pronto-socorro .A senhora S. foi diagnosticada com insuficiência renal, necessitando de cuidados na UTI, já que em poucas horas entrou em coma, foi entubada e permaneceu internada por quase um mês. Iniciando a hemodiálise, a senhora S. passou a ficar alegre demais, falante, com humor expansivo, aceleração do pensamento e da fala, fazia diversos planos, tinha vontade de comprar tudo que via, apresentava aumento de energia e ausência de necessidade de sono. A família já não conseguia mantê-la em casa dessa forma, procurou novamente o pronto-socorro, e a senhora S. foi diagnosticada com transtorno afetivo bipolar. Iniciou medicação com melhora significativa do quadro clínico psiquiátrico. Após quatro anos de hemodiálise, foi encaminhada para o transplante renal.

No contato com a senhora S., embora ela contasse com detalhes toda a sua história de vida, não conseguia associar a perda do filho com a descompensação orgânica. Certa ocasião, fiz uma associação entre o luto por L. e seus sintomas, e a senhora S. me questionou: "Nossa, nunca tinha pensado nisso! A senhora acha mesmo possível que, por eu ter ficado destruída pelo assassinato de L., meu corpo acabou sentindo também toda a minha dor?" Nesse momento, lancei mão de desenhos que pudessem explicar de forma simples como nossas emoções podem afetar o funcionamento do organismo como um todo. Depois de toda explanação, assenhora S. me pediu para ser acompanhada pela psicologia, já que tinha mais outros três filhos para criar e queria aprender a lidar melhor com seus sentimentos para não ficar tão doente de novo.

Este caso da senhora S. exemplifica claramente o quanto o corpo é o palco no qual se revelam conflitos psíquicos (FERNANDES, 2011). A presença sensível torna possível a escuta desse corpo, por meio da percepção delicada e de ouvir atentamente aquilo que pode estar velado ou oculto. Só um "bom ouvido" pode escutar e acolher o "choro" de um órgão (FERNANDES,2011; KUPERMANN, 2008). Pudemos observar, neste caso, os mecanismos de desafetação e forclusão, já que, para a senhora S. não havia qualquer relação entre a morte do filho e seu comprometimento orgânico. A manifestação somática se deu no corpo (insuficiência renal) e, quando o corpo estava mais equilibrado (já que o funcionamento dos rins havia melhorado com a hemodiálise), se apresentou como sintoma psíquico (transtorno afetivo bipolar), como uma gangorra que busca a sobrevivência mental e a não perda dos limites corporais (McDOUGALL,2000b).

 

Considerações Finais

Especialmente em função das experiências vividas na clínica, na relação com nossos pacientes é que podemos perceber que as articulações entre medicina, psicanálise, psicossomática, neurociências não só ampliam e enriquecem o conhecimento, mas também possibilitam importante auxílio no manejo clínico.

Uma vez que as relações entre os saberes são da ordem da complementaridade, concebê-la abre perspectiva para flexibilizar a escuta e também os recursos para que "a fala" do corpo possa ser acolhida e compreendida por ambos, paciente e terapeuta.

Nesse sentido, consideramos fundamental haver espaço não só para ouvir o corpo, mas também para falarmos sobre ele. Ainda que ele seja apresentado com o auxílio de diagramas ou desenhos, com explicações anatômicas, fisiológicas ou neurocientíficas para a compreensão das queixas somáticas e dos sintomas, é possível que, com base nesta linguagem, condições para algum grau de representação simbólica deste corpo possam emergir. Em substituição ao paradigma de uma biologia estática e pragmática, partimos para a concepção de uma biologia viva e dinâmica, que alcança, mobiliza e transforma células, sistemas orgânicos e a própria genética, de forma absolutamente única, particular e individualizada.


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ano - Nº 1 - 2019
publicação: 15-10-2019
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Autor(es)
• Helly Angela Caram Aguida
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

Médica cirurgiã geral pela Santa Casa de São Paulo. Mestrado em cirurgia geral pela Santa Casa de São Paulo. Membro Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgiões. Professora do Curso de Especialização em Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. 
E-mail: hellyaguida@uol.com.br

• Luciana Pires de Lima
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

Médica psiquiatra, Especialista em Psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria e Associação Médica Brasileira. Membro do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. Doutorado em Neurociências pela Unifesp / King’sCollegeof London.
E-mail: consultoriodralucianapires@outlook.com

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