ARTIGOS

Trauma: Onde estão suas marcas?


Trauma: Where are your spots?
Sonia Maria Rio Neves
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

RESUMO
Com base nas abordagens de diferentes autores, procura-se mostrar várias formas de se conceituar um trauma, destacando o papel central que ocupa na psicossomática psicanalítica. O ponto comum entre essas compreensões diz respeito à intensidade do que foi vivido, podendo ser desencadeado tanto por situações externas (incêndios, explosões, acidentes) como internas (sentimentos intensos de ódio, por exemplo). Por outro lado, há autores, como Khan e Winnicott, que destacam a importância de traumas cumulativos, em que a ênfase não está na intensidade da experiência, mas na repetição dessas vivências traumáticas. Situações traumáticas são sempre subjetivas e dependem tanto de fatores constitucionais como das experiências passadas de cada um. Em Freud, observa-se que a noção de trauma é apresentada inicialmente como uma vivência sexual intensa, não significada e reprimida; é reativada, em um segundo momento, quando então se converte em trauma. Mas, a partir de 1920, com a introdução do conceito de pulsão de morte, o traumático liga-se, então, à intensidade do vivido e não representado psiquicamente. A psiquiatria atual, no CID X e DSM IV, reúne vários diagnósticos sob a denominação de transtorno de estresse pós-traumático. Já outros enfoques, referentes ao trauma, veem a permanência dos sintomas físicos e psíquicos como resultantes de sua não descarga corporal.

Palavras-chave: Trauma, Trauma cumulativo, Representação psíquica, Transtorno de estresse pós-traumático, Descargas corporais.

ABSTRACT
Approaches of different authors make us try to show different ways to conceptualize a trauma by highlighting the central role it plays in Psychoanalytic Psychosomatics. The common point between these understandings concerns the intensity of what has been experienced and what can be triggered by both external situations (fires, explosions, accidents) and internal situations (intense feelings of hatred, for example). On the other hand, there are authors, such as Khan and Winnicott, who emphasize the importance of cumulative trauma where the emphasis is not on the intensity of the experience but on the repetition of these traumatic experiences. What is traumatic for a person is always subjective and depends as much on constitutional factors as on one’s past experiences. In Freud, the notion of trauma is initially presented as an intense, meaningless and repressed sexual experience; it is reactivated in a second moment, when it then becomes a trauma. But from 1920, with the introduction of the concept of death drive, the traumatic is then linked to the intensity of the lived and not represented psychically. Current psychiatry in CID X and DSM IV brings together several diagnoses under the name of post-traumatic stress disorder. Meanwhile other approaches related to trauma see the permanence of physical and psychic symptoms arising from the trauma as a result from their body´s non-discharging.

Keywords: Trauma, Cumulative trauma, Psychic representation, Pos-traumatic stress disorder, Body discharged


O conceito de trauma é um elemento central na teorização da psicossomática psicanalítica e também é relevante em vários campos do conhecimento:___ na psicanálise, ocupa um lugar de destaque desde as primeiras formulações de Freud e, ainda que tenha perdido o lugar inicial de importância, é retomado na conceituação de pulsão de morte. Na psiquiatria atual, também é um conceito importante, e as vivências traumáticas são reunidas sob a denominação de "transtorno de estresse pós-traumático".

O presente artigo abordará alguns aspectos comuns a vários autores e abordagens na conceituação de trauma, procurando averiguar o que torna uma vivência traumática; em decorrência, destaca a relevância dessas experiências pelas marcas que deixam na vida das pessoas a elas submetidas e a necessidade de intervenções clínicas mais específicas, em que o reconhecimento do trauma vivido aconteça e a possibilidade de nomear e representar essa experiência intensa e não ligada ao âmbito psíquico possa ocorrer.


 

1 Conceituações de Trauma

Trauma é uma palavra de origem grega que significa "ferida" e deriva de furar. Implica em um choque violento e consequências para o conjunto do organismo. Muitas são as situações possíveis de serem vividas como traumáticas: assaltos, acidentes, sequestros, violência sexual, presenciar situações violentas vividas por outras pessoas; situações internas, em geral ligadas a impulsos ou sensações intensas como raiva, ódio e desamparo também podem ser traumáticas.

Laplanche e Pontalis, no Vocabulário de psicanálise, dizem que trauma é

 

um acontecimento na vida do indivíduo que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que coloca o indivíduo para responder de forma adequada e pelos transtornos e efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica. (LAPLANCHE e PONTALIS, 1977, p. 678)

 

Acrescentam ainda, à sua definição, que "trauma e traumatismo, em termos econômicos, referem-se a afluxos de excitação que são excessivos, em relação à tolerância do indivíduo e à sua capacidade de dominar e elaborar psiquicamente estas excitações" (LAPLANCHE e PONTALIS, 1977, p. 678).

A característica comum à noção de trauma é o fato de ser uma vivência que ultrapassa o limiar de tolerância. Isto significa que houve um estímulo (estressor) que desencadeou uma reação intensa no indivíduo no momento da ocorrência, reação esta que pode ser de desespero e pânico, de frieza e aparente controle, de uma descarga somática ou ainda de desmaio. Sintomas motores como tremor, suor, perturbação ou enfraquecimento de funções psíquicas como atenção e sequência lógica e temporal também podem estar presentes. No dizer de Laplanche e Pontalis, "excesso, surpresa, sobressalto, paralisia e bloqueio designam o essencial do traumático" (LAPLANCHE e PONTALIS, 1977, p. 678).

Fenichel (1966) diz que estamos diante de uma situação traumática sempre que o estímulo for intenso quer pela sua violência, quer pelo acúmulo de excitações que isoladamente não seriam traumáticas. Estímulo intenso, além da capacidade de controle, é também uma situação subjetiva, isto é, há uma variação individual na capacidade de controle que, por sua vez, depende de fatores constitucionais e das experiências passadas. Algumas diferenças quanto à capacidade traumática dos fatos relacionam-se:

- à intensidade do estímulo;

- ao grau de desenvolvimento do ego;

- às condições físicas da pessoa no momento do trauma;

- às possibilidades ou não de reações motoras;

- às repressões prévias.

Portanto, para uma experiência ser vivida como traumática, entram em cena vários fatores, como a constituição do indivíduo, suas experiências prévias e as condições do trauma.

Marty cita várias situações possíveis de serem vividas de forma traumática:

 

perda de um ente querido, de uma função profissional ou familiar, perda de uma relação sexual ou de amizade, perda de um grupo ao qual se pertença, mas também perda de um sistema de vida anterior, perda de uma liberdade, perda de uma função fisiológica (menopausa, amputação, por exemplo) ou mental (no envelhecimento, por exemplo), perda de um funcionamento sexual, de uma atividade esportiva, de um projeto de trabalho ou de férias, mas também a figuração fantasmática, por ocasião de um acontecimento apenas sensível, de uma das perdas anteriores. (MARTY, 1993, p. 55)

 

Interessante observar, nos inúmeros exemplos que Marty (1993) cita, como podem variar as situações traumáticas de um indivíduo para outro e como o efeito traumático pode advir do fantasiar sobre algumas dessas situações; é como se, só de pensar, algumas pessoas já se sintam invadidas pelo medo, desorganizando-se.

Embora as conceituações de trauma destaquem os elementos do excesso, do intempestivo e da desorganização que provoca, há um outro conceito de trauma - trauma cumulativo - apresentado por Masud Khan (1984), psicanalista cujo pensamento é derivado da leitura de autores franceses, como Lacan, e ingleses, como Winnicott, de quem se aproxima bastante pela relevância que dá ao papel da mãe e do ambiente no desenvolvimento da subjetividade.

Trauma cumulativo, para Khan (1984, apud UCHITEL, 2001), é resultante da falha do papel materno em sua função de para-excitação, de barreira protetora e filtro para o excesso de estímulos que o bebê vivencia. Não se trata de um único acontecimento traumático intenso e desorganizador, mas de pequenos traumas repetidos que vão constituindo fendas na estruturação do ego ainda incipiente do bebê, que necessita, para que esta situação de trauma não se consolide, de uma mãe acolhedora e protetora. Ainda que o ambiente mais amplo e as características pulsionais próprias de cada bebê tenham um papel na constituição desse tipo de situação traumática, uma mãe intrusiva e instável, cuja capacidade de holding[1] é falha, não favorece o desenvolvimento de um ego integrado na criança, e os sentimentos de confiança no outro e de segurança diante da vida ficam abalados.

Winnicott (2000) é outro autor que dá destaque ao papel da mãe e do ambiente no seu percurso teórico-clínico; assim, a noção de trauma cumulativo, ligada a vivências repetidas de tensão e desproteção pelo ego da criança, também se encontra no mesmo. Reconhecer essas vivências traumáticas marcadas por microtraumatismos é importante não só para o diagnóstico, mas também pela necessidade de adequar a técnica no trabalho clínico com esses pacientes; um setting acolhedor e protetor é importante, bem como a restauração da função de para-excitação por parte do terapeuta.

Ferenczi é outro autor importante na conceituação de trauma, presente com destaque em toda a sua obra. Em Diário clínico (1985), Confusão de línguas entre os adultos e as crianças (1932) e Reflexões sobre o trauma (1932), escritos de seu último ano de vida, a noção de trauma passa a ocupar um lugar central em sua teorização.

Ferenczi retoma a importância da realidade do fato externo como desencadeante do trauma (ideia presente em Freud apenas em sua primeira teoria do trauma); retoma também a intensidade do vivido, o caráter imprevisível e de susto, para o qual não se estava preparado, como parte do que constitui um evento traumático. Acrescenta ainda o caráter de abuso (sexual ou não) desse ocorrido e inova ao atribuir ao desmentido, por parte de um adulto significativo ou pela própria sociedade, a negação ou a subestimação da experiência traumática vivida.[2]

 

2 Compreendendo o Trauma

Uchitel (2001) refere-se à importância do conceito de trauma na teoria freudiana, importância essa, diz ela, que oscila ao longo de sua obra, ocupando inicialmente um lugar de destaque, que vai perdendo força a partir da formulação da noção de fantasia; o fato traumático em si pode ou não ter ocorrido, e as fantasias, próprias do desenvolvimento sexual infantil, passam a ter um poder equivalente a um evento traumático, o que acaba por relativizá-lo. Sendo assim, a autora aponta que a ação do trauma, para Freud, se dá em dois tempos: no primeiro, ocorre uma cena de sedução, em que a criança sofreria uma tentativa sexual por parte de um adulto, e a excitação experimentada ficaria sem sentido; no segundo tempo, em geral na puberdade, algum fato se associa àquela cena e desencadeia um afluxo de excitação sexual que extrapola as defesas do ego. Esta segunda cena não é traumática em si, mas dá sentido à primeira cena, e o afluxo de excitação desencadeado é, em geral, recalcado.

Esta concepção de um segundo tempo que dá sentido ao primeiro é traumática pela associação e pela recordação, e abre caminho para a noção de fantasia e também para a ideia de que acontecimentos externos ativam e despertam excitações pulsionais; leva também à teoria do desenvolvimento da libido, mostrando que acontecimentos traumáticos para um adulto podem desencadear uma neurose, porque se ligam a acontecimentos infantis.

A questão do conflito, ligado a desejos sexuais infantis, relativiza o trauma, mas este não perde totalmente a importância como fato real. Nas séries complementares, Freud (1916/17) afirma que o fator traumático entra como um dos componentes que, juntamente com as fixações, as experiências infantis e a constituição hereditária, tem cada qual seu peso.

A segunda forma em que o conceito de trauma deve ser considerado aparece nos estudos das neuroses de guerra e de acidentes (neuroses traumáticas), abordadas por Freud em "Além do princípio do prazer" (1920). Nesse texto, Freud retoma a concepção mais econômica do trauma (intensidade e rompimento), levando à hipótese de que um afluxo grande de excitação, vindo do exterior, rompe a barreira de proteção e exige que o aparelho psíquico execute uma tarefa mais urgente do que a busca do prazer, tarefa que consiste em ligar as excitações para permitir depois sua descarga e/ou representação mental. O modelo do trauma seria, por exemplo, o nascimento do universo, do orgânico, dos organismos vivos e do humano. Aquilo que rompe o equilíbrio do inorgânico, do inanimado, é a vida, e sempre haverá uma tendência a querer voltar ao inanimado; essa tendência, diz Freud, é a pulsão de morte. Sobre essa tendência, funda-se a compulsão à repetição, tentativa de dominar o excesso de excitação provocado pelo trauma, através da ligação. O trauma, se não puder ser processado, ligado às representações psíquicas, apega-se ao movimento primitivo da repetição, anterior e independente do funcionamento do princípio do prazer.

O trauma é consequência do excesso de estimulação, da liberação de muita energia livre, do fracasso da ligação (em unir os estímulos às representações), do fracasso da defesa e da angústia-sinal. O indivíduo fica diante da desorganização, da surpresa, do susto, da sensação de perigo de morte. Como diz Myriam Uchitel,

 

na instalação do trauma, a excitação que deveria ter tomado o caminho da representação, da ligação, ficou presa no circuito incessante das excitações sem forma. Por isso, o trauma não fala, se faz sentir e atua... O que ele repete não é a representação, mas uma percepção sem palavras. (UCHITEL, 2001, p. 50)

 

2.1 Registros do Trauma

 

Se, para a Psicanálise, o trauma se relaciona a uma percepção sem palavras, é útil verificar que tipo de registro existe para ele.

Uchitel (2001), citando Felícia Knobloch, em seu livro O tempo do traumático (1998), faz distinções importantes entre os significados dos termos impressão, traço mnêmico e marca:

- Impressão é o ponto de partida do processamento psíquico; é diferente do estímulo, da sensação e da representação e é anterior à inscrição e posterior à sensação.

- Traço mnêmico designa a forma como os acontecimentos e as impressões se inscrevem na memória. Os traços inscritos sempre se relacionam com os demais traços, compondo a memória e constituindo, por sua vez, o aparelho psíquico.

- Marca é a impressão que não deixa traço nem é assimilada pela linguagem; são impressões que existem, não no campo do signo, mas no campo da marca expressiva; não pelo conteúdo, mas pela sua força, como fator energético.

Destaca-se que, para Freud, não há possibilidade de uma impressão ser conservada pela memória sem ser como traço ou representação.

Quando a situação é traumática e, portanto, houve um excesso de estimulação, a barreira de proteção se rompe, e não ocorre a transcrição da impressão traumática para o registro das representações. Segundo Uchitel,

 

para que o registro da representação ocorra é preciso que haja transposição da energia física para a psíquica (portanto da quantidade para a qualidade, da força para o sentido) e que ocorra a transcrição do registro sensorial-perceptivo em direção ao registro da representação-palavra. (UCHITEL, 2001, p. 69)

 

Portanto, ao falarmos de trauma, no âmbito da psicanálise, estamos nos referindo às marcas que ocorreram, mas que não se ligaram a representações psíquicas e que, assim, não constituem uma memória ou lembrança, porém existem no campo sensorial-perceptivo como registros sem palavras.

Em um trecho do livro O filho eterno, de Cristovão Tezza, encontramos uma descrição da vivência de uma situação traumática:

 

Só descobriu a dependência que sentia pelo filho no dia em que Felipe desapareceu pela primeira vez. É, talvez, ele refletirá logo depois, ainda em pânico, dando corda à sua rara vocação dramática, que agora lhe toma por inteiro, a pior sensação imaginável na vida... E há que preencher aquele vazio que aumenta segundo a segundo, com alguma coisa, qualquer coisa - estamos despreparados para o vazio. O sentimento de desespero nunca é súbito, não é um desabamento - é o fim de uma escalada mental que vai queimando todos os cartuchos da razão até, aparentemente, não sobrar nenhum, e então a ideia de solidão deixa de ter o charme confortável de uma ideia, e ocupa inteira a nossa alma, em que não caberá mais nada, exceto, quem sabe, a coisa-em-si que ele parece procurar tanto:___ o sentimento de abismo. (Não se mova, que dói.) (TEZZA, 2007, p. 161)

 

3 Transtorno de Estresse Pós-Traumático

 

A partir de 1980, com a publicação do CID X e DSM IV, a psiquiatria desenvolve o conceito de estresse pós-traumático, unificando várias categorias de transtornos emocionais relativos a acontecimentos traumáticos, descritos na classificação psiquiátrica sob denominações variadas, como neurose de guerra, de acidente ou mesmo neurose traumática; a classificação "Transtorno de Estresse Pós-Traumático" (TEPT) aparece já na 3ª. Edição do DSM III (Diagnostic and_Statistique Manual of Mental Disorders), embora a Organização Mundial de Saúde tenha reconhecido esta patologia e este nome só em 1994, na 10ª. Revisão do CID X.

O CID X e o DSM IV apresentam duas categorias diagnósticas relacionadas a situações traumáticas:

1ª - Reação aguda ao estresse (RAE), no CID X, ou transtorno de estresse agudo, no DSM IV.

2ª - Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), no CID X e no DSM IV.

Um dos critérios de distinção entre as duas categorias é a duração dos efeitos do evento estressor: de 2 dias a 4 semanas para RAE e mais de 6 meses de persistência de vários sintomas descritos na classificação diagnóstica para TEPT.

A inclusão e a descrição desses dois quadros nas classificações de doenças (CID e DSM) reforçam a importância dos efeitos traumáticos para as pessoas que vivenciaram o trauma, assim como chamam a atenção dos profissionais da saúde para eles e para a necessidade de um acompanhamento específico. Mas não se pode deixar de apontar que a descrição desses dois quadros contém muitos elementos encontrados na descrição de neuroses atuais feita por Freud, no final do século XIX.

É uma tendência atual a utilização de uma nova nomenclatura para patologias há muito descritas, como no caso do Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), para a neurose obsessiva, ou Transtorno de Pânico, para a neurose de angústia, todas estudadas pela psicanálise há mais de um século. Não se trata apenas de uma nova forma de nomear; a classificação diagnóstica atual (presente no CID X e no DSM IV) é fruto de uma necessidade da Medicina de elaborar sistemas classificatórios internacionais, buscando unificar os critérios diagnósticos, ressaltando a descrição precisa dos sintomas e acreditando, desta forma, não se ater a nenhum referencial teórico específico.

Entretanto, como diz Mário Pereira (2000, apud RUDGE, 2009), esta suposição é equivocada, porque o pano de fundo dessas classificações é uma visão de ciência positivo-experimental, dominante na área médica; não há ciência isenta de posição ideológica e filosófica, e a cultura de cada época marca a forma de ver o mundo, de pensar e de fazer ciência.

Ainda que classificações diagnósticas possam facilitar a identificação de vários quadros, a desvantagem que apresentam é deixar totalmente de lado as contribuições da psicopatologia e, em especial, a da psicanálise, por meio da não inclusão da subjetividade e do papel da história de cada um na determinação de seus sintomas.

 

4 Pincelando outras Compreensões sobre o Trauma

 

De uma forma bastante geral, podemos dizer que a compreensão do que torna uma situação traumática para a psicanálise e para a psicossomática psicanalítica relaciona-se à ausência de representações psíquicas para a situação vivida. Outras abordagens sobre trauma tendem a privilegiar as reações corporais. Entretanto, em que pese a peculiaridade de cada abordagem, pontos comuns sempre são encontrados quando se faz um estudo mais aprofundado.

Keleman (1989, apud SCARPATO, 2004, p. 12) denomina "padrão de distresse" quando os sintomas ligados a uma vivência de estresse excessivo não se desfazem, e acrescenta que "há uma relação intrínseca entre os estados somáticos e os estados subjetivos, pois são os padrões motores que organizam e sustentam a forma como uma pessoa sente e percebe o mundo" (KELEMAN, 1987 apud SCARPATO, 2004, p. 12). O padrão de distresse mantém a pessoa em um alerta constante, desconfiada e com medo; são organizações psicofísicas que levam a posturas próprias, ligadas à musculatura e que afetam o funcionamento visceral, a percepção e os estados emocionais.

Julio Peres (2010), em uma visão das neurociências, aponta que há alterações neuroendócrinas ligadas à atividade do córtex pré-frontal e da amídala nas pessoas que apresentam Transtorno de Estresse Pós-Traumático; essas alterações, resultantes do impacto traumático, mantêm o indivíduo em um estado de estresse constante.

É importante destacar também a contribuição de Levine (1999, apud UCHITEL, 2001) para a compreensão do trauma. Para ele, a tônica na vivência traumática é a grande quantidade de energia que ela mobiliza, mas que não é descarregada, devido ao impacto, à intensidade da vivência; essa energia fica bloqueada no interior do corpo, gerando os sintomas ligados ao trauma. Esta abordagem, conhecida como "Somatic Experience", possui pontos em comum com a teoria psicossomática proposta por Franz Alexander, em Medicina psicossomática (1989), segundo a qual o que pode gerar algumas doenças é a não descarga de reações corporais, suscitadas por estímulos emocionais, mas não liberadas pelo corpo. Há aproximações também com a descrição de estresse proposta por Hans Selye.

Cabe destacar, neste breve resumo de outras visões sobre trauma, que não há uma definição clara sobre os termos usados; assim, Julio Peres (2010) utiliza a classificação psiquiátrica (TEPT), enquanto Keleman (1997) usa o termo "padrão de distresse" e Levine (2012) fala em "experiência somática"; entretanto, todos eles referem-se à situação traumática de forma equivalente, utilizando ora o termo trauma, ora estresse.

 

5 Conclusão

 

Caracterizar uma situação como traumática e compreender o teor disso é algo de que se ocupam atualmente a psiquiatria, a psicanálise, a psicossomática psicanalítica e algumas abordagens corporais em psicologia. Embora este artigo tenha procurado se ater à concepção psicanalítica do trauma, incluir o que é conhecido na atualidade por Transtorno de Estresse Pós-Traumático é uma forma de facilitar a identificação dos pontos comuns aos vários enfoques.

A compreensão do que torna um evento traumático, para a psicanálise, está na ausência de representação psíquica, que não ocorre devido à intensidade, ao impacto e à surpresa que o trauma acarreta; essa experiência fica, então, no campo da marca sensorial e expressa-se no somático, justamente porque não pôde ser simbolizada. A psicanálise acrescenta ainda a esse entendimento do traumático as vivências abusivas, em que o adulto ou a criança sofre um abuso (sexual ou não) e não consegue se defender, seja pela paralisia que a situação provoca, seja por impossibilidades reais (como estar preso, ou amarrado, ou subjugado, ou oprimido). Segundo Ferenczi (1932), essa situação tem sua potência traumática aumentada se, ao solicitar ajuda ou apoio, a pessoa for desmentida ou subestimada em sua experiência (com expressões do tipo "isso não é nada", "logo você esquece", "não foi tudo isso!", "você está inventando!").

Já nas abordagens não psicanalíticas, como as de Keleman (1987) e de Levine (2012), a dificuldade de elaboração do trauma relaciona-se mais ao fato de o corpo não ter conseguido descarregar tudo que foi mobilizado fisiologicamente pelo evento traumático.

É necessário conhecer as características de uma situação traumática (seja ela constituída de uma única vivência intensa e desorganizadora, seja marcada pelos seus efeitos cumulativos ou também pelo desmentido) pelo que ela acrescenta à compreensão da dinâmica de funcionamento mental do paciente, em que defesas primitivas, como a cisão, estão presentes, acarretando desorganizações importantes e que desestruturam o ego.

O trabalho clínico com esses pacientes vai solicitar adaptações no atendimento; assim, a ausência de representações psíquicas para o que foi vivido traumaticamente requer uma posição mais ativa por parte do analista, que, por vezes, empresta ao paciente suas próprias associações, despertadas no contato com o paciente. Entretanto, acompanhar bem de perto as reações e mudanças no comportamento e nas expressões visuais do paciente faz com que o terapeuta fique mais apto a dosar o que vai comentando, inclusive para não retraumatizá-lo.

Incluir na prática terapêutica o "reviver" o trauma em uma situação protegida, em que o reconhecimento da relevância do vivido seja reafirmado, também favorece a importante tarefa de nomeação e atribuição de significação ao episódio traumático.

As vivências traumáticas também marcam uma diferença básica entre quadros neuróticos e a grande diversidade de patologias não neuróticas (como os quadros de pânico, as alterações psicossomáticas, os distúrbios alimentares, entre outros), frequentes na atualidade. Essa diferença diz respeito à dificuldade de representação simbólica que vivências traumáticas acarretam devido, principalmente, à sua intensidade; esta não favorece a ligação psíquica do vivido no âmbito sensório-perceptivo com o plano psíquico, onde a ligação se dá. Não podemos esquecer, também, que a precariedade de recursos mentais presentes, em muitos indivíduos, acentua a dificuldade de elaboração do trauma.

Para concluir, qualquer que seja a abordagem ou o referencial teórico adotado, é importante favorecer a identificação e a compreensão das vivências traumáticas para poder minimizar o sofrimento e as limitações que estas acarretam àqueles que estão submetidos a elas.



[1] O conceito de holding e de falha nos cuidados maternos é encontrado na obra de Winnicott; um resumo desse conceito encontra-se em Uchitel (2001), na nota de rodapé 52, p. 89.

[2] Remeto o leitor interessado no tema do desmentido ao artigo de Mészaros, J. Elementos para a teoria contemporânea do trauma - a mudança de paradigma de Ferenczi. Revista Percurso, São Paulo, ano XXIII, n. 46, 2011. Disponível em: <http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=acervo&id_edicao=46>. Acesso em: 27 set. 2019.

 


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ano - Nº 1 - 2019
publicação: 15-10-2019
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Autor(es)
• Sonia Maria Rio Neves
Psicóloga clínica, psicanalista, especialista em Psicanálise e em Psicossomática Psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae.
E-mail: soniario.neves@gmail.com

Notas

1. O conceito de holding e de falha nos cuidados maternos é encontrado na obra de Winnicott; um resumo desse conceito encontra-se em Uchitel (2001), na nota de rodapé 52, p. 89.

 

2. Remeto o leitor interessado no tema do desmentido ao artigo de Mészaros, J. Elementos para a teoria contemporânea do trauma - a mudança de paradigma de Ferenczi. Revista Percurso, São Paulo, ano XXIII, n. 46, 2011. Disponível em: <http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=acervo&id_edicao=46>. Acesso em: 27 set. 2019.

 

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