ARTIGOS

Trauma, desamparo e memória: a escuta da psicossomática psicanalítica na clínica dermatológica


Trauma, helplessness and memory: the psychoanalytic psychosomatic listening in the dermatological clinic
Noemi Evelina de Weber Wahrhaftig
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

RESUMO
Apresento artigo sobre dois pacientes sobreviventes do Holocausto que apresentaram quadro clínico dermatológico de prurido psicogênico. Seus sintomas pioravam com a memória do trauma, e a melhora foi observada pela escuta com base no referencial da psicossomática psicanalítica.

Palavras-chave: Holocausto, Sobreviventes, Prurido, Psicossomática psicanalítica

ABSTRACT
I present an article about two holocaust survivors, who had a dermatological clinical picture of psychogenic pruritus. Their symptoms worsened with the memory of the trauma, the improvement was noted by listening according to the psychoanalytic psychosomatic referential.

Keywords: Holocaust, Survivors, Pruritus, Psychoanalytic psychosomatic


Os eventos traumáticos que ocorrem durante a vida do indivíduo colocam-no em uma situação mais vulnerável ao sofrimento, e sua capacidade de elaboração psíquica pode ser afetada. As recordações dolorosas podem gerar uma quantidade excessiva de excitações, que transbordam do aparelho psíquico para o corpo.

A questão do sentido dos sintomas no adoecer sempre foi discutida por vários autores, por meio de conceitos de que a doença teria um sentido para ser interpretado, ou nenhum sentido, ou um sentido a ser construído posteriormente. Quanto ao envolvimento do outro no adoecer, as opiniões vão desde pensar na somatização em uma perspectiva intrassubjetiva até um contexto de intersubjetividade.

O adoecer é uma maneira de obter a atenção, o olhar e o cuidado do outro. Em minha prática clínica, observo que alguns pacientes idosos, quando estão doentes, podem ser escutados, olhados, tocados e tratados.

Apresento artigo sobre dois pacientes sobreviventes da Segunda Guerra Mundial (Holocausto), que apresentaram um quadro dermatológico de prurido psicogênico.

Inicialmente, expressarei alguns conceitos relativos à pele e ao sintoma prurido.

 

A Pele

A pele é o maior órgão do corpo humano e representa 15% do peso corporal. Qualquer pessoa apresenta, ao longo de sua vida, alguma lesão de pele.

Contém uma variedade de estruturas anexiais, incluindo cabelos, unhas, glândulas, estruturas sensoriais que conferem funções de homeostase, proteção, termorregulação, transmissão de sensações de tato, frio, calor, dor, pressão e reparação imunológica.

A pele faz a mediação dos nossos primeiros contatos com o mundo externo, com as pessoas ao nosso redor e com o ambiente. É a roupa que jamais tiramos.

As primeiras relações de toque ocorrem, principalmente, pela função materna e pelos cuidados que o bebê recebe. Dessa forma, a internalização das relações com o outro constitui a imagem corporal.

Anzieu (2000) propõe a seguinte correlação entre a função orgânica da pele e o sentido psíquico.

1. Sustentação: A pele tem a função de sustentação do esqueleto e dos músculos. Quanto ao sentido psíquico, essa função é desenvolvida inicialmente pela mãe e pelo ambiente próximo, pois a mãe que segura o bebê lhe confere um eixo vertical e favorece sua sustentação, que evolui para sentar, engatinhar e andar. As falhas ligadas a essa função aparecem nas angústias de vazio e de sensação de falta de apoio e suporte.

 

2. Continente: A pele é um envelope que precisa ser preenchido, uma superfície que envolve e delimita o corpo, enquanto o ego é continente das sensações e dos impulsos vividos. Quanto ao sentido psíquico, ele se dá a partir dos cuidados e estimulações realizadas pela mãe e das trocas contínuas entre ela e o bebê. As falhas nessa função levam a angústias difusas, mal contidas ou não identificadas, como se a pele estivesse esburacada. O prurido ou a dor física poderiam funcionar como tentativa de delimitar esse contorno, de uma limitação vivida no corpo real.

 

3. Proteção: A pele funciona como uma película protetora; é na derme que se encontram as terminações nervosas. Quanto ao sentido psíquico, seria a função materna de para-excitação, responsável por regular a quantidade de estímulos que o bebê pode suportar, fazendo com que sejam transferidos aos poucos para a criança. As falhas dessa função poderiam levar a angústias paranoides de intrusão.

 

4. Individualização: A pele diferencia os indivíduos e favorece a identidade por meio de suas características de cor, textura e odor. Separa como uma membrana o interior e o exterior e distingue os corpos estranhos. Quanto à função psíquica, se poderia falar na questão de aceitar ou rejeitar o estranho.

 

5. Sensualidade: A pele é uma superfície de contato, a fonte de sensações e percepções. O autoerotismo se desenvolve através dos agradáveis contatos corporais entre mãe e bebê durante a alimentação e os cuidados que essa mãe fornece. Tocar e ser tocado são experiências essenciais para o bebê, seja no prazer ou no desprazer, e têm importante papel na construção da imagem corporal.

 

6. Comunicação: A pele funciona como primeiro sistema de comunicação importante e transmite experiências de aconchego e proteção, principalmente quando o contato com a mãe for adequado e caloroso.

 

7. Autodestrutividade: A pele funciona como uma pulsão de morte. Relaciona-se principalmente aos fenômenos autoimunes, quando o sistema imunológico é ativado e reage ao próprio órgão do indivíduo como se fosse um corpo estranho. Quanto à sua reação psíquica, se poderia pensar num quadro em que o indivíduo se volta contra si mesmo, como o caso de uma dermatite artefacta associada ao masoquismo.

Diz Montagu, em seu livro Tocar, baseado no conceito de que a pele e o sistema nervoso têm a mesma origem embrionária do folheto ectoderme:

 

O sistema nervoso é uma parte escondida da pele, ou a pele pode ser considerada como uma parte exposta do sistema nervoso, dessa forma a pele poderia ser considerada como um sistema nervoso externo. (MONTAGU, 1988, p. 23)

 

Através de suas várias funções, a pele faz a interface entre o interno e o externo. Estabelece os limites do mundo do sujeito e do objeto. Representa uma das melhores metáforas do funcionamento emocional, um elo simbólico entre a realidade física e a psíquica; ela reflete os sinais dos sentimentos, dos conflitos, frustrações e amarguras.

 

Prurido Psicogênico

O prurido ou coceira, como sintoma na pele, sempre me interessou. É uma queixa diária na rotina médica e interfere muito na qualidade de vida do sujeito.

A definição de prurido é uma sensação desagradável que leva ao ato de coçar. Pode ter uma causa primária dermatológica ou ser a manifestação de alguma doença. A pesquisa desse prurido é minuciosa, e o médico investiga e correlaciona o sintoma a uma causa física para esse quadro.

As principais causas de prurido são: medicamentos, causas sistêmicas como diabetes, problemas renais, hepáticos, neoplasias internas, dermatites alérgicas, gravidez, perda rápida de peso, desordens neuropsiquiátricas, doenças dermatológicas, envelhecimento etc.

O sintoma prurido, pelo desconforto que causa, é bem semelhante ao sintoma de dor, que é um sintoma subjetivo, com limiares muito diferentes entre as pessoas. Essa sensação segue o caminho rumo ao cérebro ao longo dos mesmos nervos. Segundo a teoria da intensidade, a estimulação neuronal fraca causaria o prurido, e a forte causaria a dor. O prurido se torna uma dor quando é crônico, e passa a ser considerado crônico quando persiste por mais de seis semanas.

O que se observa na prática médica é que o prurido psicogênico ou somatoforme se mantém como diagnóstico de exclusão.

O grupo francês de psicodermatologia liderado por Laurent Misery (2007) propôs a definição de "transtorno funcional de prurido" em vez de prurido psicogênico, pois no transtorno funcional de prurido este estaria no centro da sintomatologia, e os fatores psicológicos exerceriam um papel evidente no desencadeamento, intensidade, agravamento ou persistência do prurido.

Ao avaliar a questão do adoecer através de várias leituras e vivência clínica, coloco a hipótese de que a pessoa adoece porque não pode suportar a sua história. Como médicos e psicoterapeutas, respeitamos e escutamos o paciente e muitas vezes recuperamos a história inconsciente.

O prurido é a queixa dermatológica mais comum entre os idosos (11,5% entre os idosos e 19,5% entre os idosos maiores de 85 anos).

Percebo na clínica com os pacientes idosos que apresentam queixa de prurido que, se não encontrar uma causa física, através do entendimento de sua história e do acesso a suas emoções, procuramos juntos compreender seus sintomas e patologias.

Esses pacientes apresentam movimentos diferentes: alguns passam por uma desorganização progressiva, e outros estão sempre se organizando. Aprofundarei esses conceitos mais à frente, na discussão dos casos.

A maioria desses indivíduos sofre com a fragilidade do envelhecimento e o medo da morte. Quando estão doentes, ficam infantilizados, sofrem o fenômeno de regressão, já não se sentem senhores de seus corpos, e sim reféns. A psique também se transforma sob a influência da doença física.

 

Dois Casos Clínicos de Pacientes Sobreviventes do Holocausto

A senhora M. e o senhor T. são sobreviventes do Holocausto que apresentaram quadro clínico dermatológico de prurido psicogênico.

Eles têm em comum o fato de serem nonagenários, judeus europeus, casados, politizados, lúcidos, têm filhos, netos, nunca fizeram terapia e cultivam orquídeas.

A senhora M., 90 anos, sobrevivente de campo de concentração, é muito dinâmica, faz ginástica, realizou palestras pelo Brasil e pelo mundo, tem vida social ativa. Em 2013, ela passou por duas cirurgias de colocação de próteses nos joelhos e apresentou uma recuperação excepcional.

O senhor T., 93 anos, europeu, ourives, introspectivo, inteligente, educado, está casado pela segunda vez após uma viuvez. Sua segunda esposa é quinze anos mais nova e o trata como bebê.

No feriado de 15 de novembro de 2013, fui chamada para um atendimento domiciliar de urgência para a senhora M. Ela apresentava queixa dermatológica de um prurido intenso na cabeça. Eu a examinei, e realmente o couro cabeludo estava sensível, mas não apresentava lesões.

Depois que apresentei o diagnóstico, ela me contou que se sentiu aliviada, pois pensava que fossem piolhos. Recordou que teve vários episódios de piolhos durante os dois anos em que ficou no campo de concentração.

Contou-me que, apesar de ter dado um rumo a sua vida, muitas vezes acordava sobressaltada, suada, sentindo os cheiros do campo de extermínio. Disse que optou pela vida e o faz constantemente.

O que a machuca muito ainda é a morte de um neto em uma avalanche na neve durante um passeio com a escola. Essa tragédia ocorreu há cerca de quinze anos.

A senhora M. ainda sente a perda do neto e fica mais entristecida pela dor que sua filha sente pela perda do filho.

Coincidentemente, naquele mesmo dia, eu teria que atender o senhor T., pois ele vinha apresentando um prurido no corpo, que aparentava ser um prurido senil e também psicogênico.

Acompanhei esse senhor com outros profissionais médicos, e o processo era difícil. Ele foi internado duas vezes no mês de setembro de 2013, com diabetes descompensada, falta de ar, hipertensão e erisipela na perna direita.

Eu teria que examinar o senhor T. na sua residência, no feriado de 15 de novembro de 2013, e a esposa me telefonou dizendo que ele iria receber o filho que iria viajar e não gostaria de ser examinado por mim naquele dia. A esposa também me confidenciou que, no dia anterior, estava fora de casa e teve que retornar imediatamente. O senhor T. teve uma crise de choro, pois lembrou-se do pai. Ele foi internado dois dias após essa crise nervosa e disse à esposa que se sentia desmoronando.

Conversei depois com a esposa e perguntei sobre a crise de choro antes da internação; ela me informou que o choro fora provocado pela lembrança que teve do pai quando o mesmo foi preso na Alemanha, no dia seguinte à "Noite dos Cristais", em que propriedades de judeus foram saqueadas e sinagogas foram queimadas por toda a Alemanha. Isso ocorreu em novembro de 1938, quando ele tinha 15 anos de idade.

Ele apresentou outra crise de choro, com intenso prurido no corpo, quando sua esposa ficou hospitalizada durante uma semana para ser submetida a uma cirurgia ortopédica. O senhor T. relatou que se sentiu inseguro, sozinho, apesar de ter sido cuidado por um enfermeiro nesse período de ausência da esposa.

 

Trauma

O trauma é um fator de desorganização da economia psicossomática. É a ruptura de um invólucro.

Poderia ser definido como uma experiência de contato com a alteridade, com o estranho e também com o "outro" em si mesmo. Aquele que necessitamos ao mesmo tempo esquecer e recordar.

O Holocausto, conhecido como Shoá, foi o maior genocídio em massa do século XX, em que seis milhões de judeus foram mortos durante a Segunda Guerra Mundial; cerca de dois terços da população judaica que morava na Europa foi exterminada.

O nazismo fez vítimas de diferentes origens, culturas, gêneros, religiões e nacionalidades: poloneses, negros, ciganos, homossexuais, comunistas, prisioneiros de guerra, soviéticos, Testemunhas de Jeová, deficientes físicos e mentais. Houve um genocídio equivalente a onze milhões de pessoas.

De acordo com registros históricos, os judeus foram o bode expiatório mor, sofreram um alijamento social com requintes de crueldade que nem sempre incidiram sobre outros povos. A própria condição de ser judeu implicava em um não ser. Foi negada aos judeus a condição de viver, mesmo quando havia a negação de identidade. Os nazistas assimilaram a ideia de que os judeus não seriam seres humanos.

Essa experiência traumática perdurou mesmo após o fim da Segunda Guerra Mundial. A necessidade de dar uma continuidade à vida e de seguir em frente não impediu o sobrevivente de ainda sofrer e relembrar por gerações.

O trauma transgeracional é um impacto, uma transferência na qual a dor emocional, física ou social sofrida por uma pessoa em um dado momento é transmitida às novas gerações.

O Holocausto, esse genocídio ontológico, é um forte exemplo de trauma transgeracional.

No caso da senhora M., ela foi levada aos 14 anos para um campo de concentração, com perda de familiares, e sobreviveu. Foi libertada aos 16 anos, com 31 quilos, e internada num sanatório com tifo e tuberculose, e lá ficou durante três anos. Já a família do senhor T. conseguiu fugir e emigrar para o Brasil antes do início da guerra.

 

Desamparo

O ser humano sofre alguns desamparos durante a vida e nem sempre desenvolve recursos para lidar com eles, ou desenvolve e perde os recursos devido à experiência traumática.

Nesses casos, os pacientes apresentavam piora do quadro à noite, ao deitar; quando tiravam as roupas e estavam sozinhos com seus pensamentos, deparavam com a possibilidade de entrar em contato consigo mesmos. A roupa funcionava como uma segunda pele, que os restringia de coçar-se e sentir, como uma contenção.

A senhora M. falava que as histórias dos campos de concentração fazem adultos terem pesadelos como se fossem pequenas crianças indefesas.

Escreveu: "O que sabia com convicção é que haviam me tirado da escola, arrancando-me brutalmente da minha casa, da minha vida, e então vivia esperando por um destino que não mostrava o menor sinal de otimismo".

 

Memória

A hipótese que considera o inconsciente como o local que transita entre as dinâmicas de recordar e esquecer é uma importante contribuição da psicanálise para os estudos da memória.

Observam-se na clínica psicanalítica cotidiana as dinâmicas do des-lembrar (o percebido consciente que foi esquecido); do mal lembrar (do que não pode ser inteiramente lembrado a não ser pela via de sinais e sintomas); do lembrar-encobrindo (aquilo que se lembra precisamente, para que não seja possível ser lembrado o difícil e doloroso).

Enquanto a senhora M. relatava suas memórias sensoriais, como os piolhos e os cheiros dos crematórios após as pessoas passsarem pelas câmaras de gás, relacionava as dores nas pernas edemaciadas com insuficiência vascular às longas horas em que ficou em pé durante o período em que esteve presa no campo.

O prurido piorava quando essas memórias, sonhos e pesadelos estavam presentes.

Ela falou e escreveu algumas frases muito significativas:

"Infelizmente, não existe o botão ‘delete’ na minha mente. Gostaria de poder apagar o que vi e vivi, especialmente a sensação de sofrimento. Esse sofrimento não estava só dentro de mim, estava fora. Eu respirava o sofrimento, ele fazia parte do meu mundo."

"Eu lembro para poder viver, porque esquecer é morrer e perder de vez a família."

A senhora M. fala que o Holocausto faz parte de sua vida e por isso nunca será deixado para trás. A partir de 1999, iniciou um trabalho pela memória do Holocausto, ministrando até hoje palestras para contar sua história e a dos judeus na Segunda Guerra Mundial.

 

Discussão

Em 1896, ao escrever sobre as neuroses atuais, Freud apresenta uma teorização na qual a psicossomática atual se apoia. Já com o conceito de pulsão, que seria uma fronteira entre o mental e o somático, ele vislumbrou todo esse cenário da psicossomática.

Estamos constantemente nos organizando e desorganizando para estabelecer essa homeostase entre a pulsão de vida (Lebenstrieb) e a pulsão de morte (Todestrieb).

Tudo começa a fazer sentido com as construções do corpo que levam a uma construção mental, as situações de excesso que levam a um movimento de desorganização, um movimento contraevolucionista.

De acordo com Marty (1976: "os acontecimentos e as situações que nos apresentam mais ou menos importantes na sua aparência, atingem nossa afetividade, desencadeiam excitações que convém descarregar ou escoar".

Se essas excitações que são produzidas não se descarregam ou escoam, elas irão atingir nossos órgãos somáticos.

A senhora M. e o senhor T. possuíam bons recursos psíquicos. Apresentavam movimentos bem diferentes, ele passando por movimento de desorganização progressiva, e ela sempre se organizando.

Pierre Marty (1976) introduz o conceito de desorganização progressiva e explica que eventos traumáticos podem levar a dois modelos de funcionamento da economia psicossomática: a regressão e a desorganização progressiva. A primeira fase de desorganização progressiva é a depressão essencial (depressão sem objeto), indicativa da fragilidade do instinto de vida, seguida pelo pensamento operatório, que pode ou não evoluir até a destruição dos equilibrios primários da vida individual, numa desorganização progressiva dos aparelhos somáticos.

Os dois pacientes tiveram que lidar com o evento catastrófico que foi o Holocausto, sofr  perderam entes queridos e ainda sofrem com as fragilidades do envelhecimento. No entanto, durante esse processo, ela parecia ter um quadro de uma neurose bem mentalizada, e ele, uma neurose mal mentalizada.

Segundo Marty (1976), a mentalização se refere à quantidade e à qualidade de representações em um dado indivíduo. As representações psíquicas constituem a base da vida mental. As fantasias, os sonhos e a criatividade são fundamentais na regulação do equilíbrio psicossomático.

Os indivíduos bem mentalizados são mais fortalecidos, com representações psíquicas variadas e enriquecidas, tendem a desenvolver patologias leves; já os mal mentalizados são indivíduos que tendem a reprimir suas representações mentais, a desenvolver afecções somáticas severas, como câncer e doenças cardiovasculares.

A senhora M. apresentava um quadro de neurose bem mentalizada, pois observei as seguintes características: boa mentalização; envolvimento afetivo com os acontecimentos; relações pessoais significativas; sensibilidade à perda e separações; vida não operatória; discurso rico, elaborado, cativante. Apresentava também raciocínios complexos, boa associação de ideias, gestualidade a serviço das palavras. Escutá-la sempre foi uma grande viagem.

Quanto à questão da transferência, ela apresentava bons recursos de vínculo transferencial, e a sensação contratransferencial era viva, repleta de afetos. Pude observar também uma boa organização do pré-consciente, riqueza quantitativa e qualitativa nas representações. No que se refere à desorganização psicossomática, diria que apresentou doenças do tipo regressivo organizadoras, sem risco vital, e desorganizações psicossomáticas leves e eventuais.

O senhor T., por outro lado, apresentava um quadro de neurose mal mentalizada, irregularidade no estado de luto, oscilações no significado de perdas e separações. Percebi que sentia falta da primeira mulher. O seu discurso era muitas vezes plano; descrevia as suas lesões de pele concretamente, com poucas associações de ideias. Observei que suas representações eram quantitativa e qualitativamente empobrecidas, muitas vezes indisponíveis em função da repressão ou evitamento. Seu pré-consciente se apresentava precário. Quanto à questão transferencial, apresentava resistências na qualidade de vínculo, mostrava-se um pouco desconfiado. Quanto à questão contratransferencial, também notei um certo desinvestimento da minha parte.

No que se refere à desorganização psicossomática, o quadro clínico do senhor T. se mostrava progressivo, crônico, e as manifestações psicossomáticas e comportamentais eram evidentes. Era uma surpresa como iria encontrá-lo na consulta. O seu quadro passou de uma neurose bem mentalizada para uma neurose mal mentalizada. Ficou evidente a desorganização progressiva pela qual passava: algumas internações em um curto período de tempo com doenças cardiovasculares, diabetes descompensada e infeccções que o levaram a um prognóstico ruim.

No caso desses dois pacientes, penso no sintoma prurido como uma dor afetiva a uma perda. Nasio (2006) define a dor como sendo o resultado da perda brutal ou violenta de uma unidade, seja na dor física, em que se perdem a harmonia e a integração equilibrada das diferentes partes do corpo, ou na dor psíquica, em que a perda diz respeito a um ente querido.

O autor afirma que, para falar de dor, é necessário que haja uma perda violenta e imprevista de uma unidade e, se essa perda não for brutal, ela é um sofrimento, pois para ele a dor estaria ligada ao tempo, à imediatez, ao imprevisto.

A dor física ou psíquica é um fenômeno misto de limite entre o corpo e a psique, entre o eu e o outro, entre um funcionamento regulado ou desregulado do psiquismo. Portanto, do ponto de vista psicanalítico, não existe diferença entre emoção dolorosa e dor psíquica.

Ele diz que a dor não é monolítica e a classifica em três fases:

Fase de ruptura: pode ser uma agressão aos invólucros externos do corpo ou aos seus órgãos internos. Toda lesão é imaginariamente sentida, pelo eu que a sofre, como uma agressão exterior ao eu. A dor da lesão tem três aspectos: real, simbólico e imaginário.

O aspecto real é a própria percepção somato sensorial de uma excitação violenta que afeta o orgânico. O aspecto simbólico se refere à formação súbita de uma representação mental e consciente do local do corpo onde a lesão se produziu. O aspecto imaginário é a sensação dolorosa percebida imaginariamente como se fosse transmitida do ferimento, como algo do qual se quer se livrar.

Fase de comoção: aparece um afluxo súbito e maciço de energia no psiquismo, constituído por "neurônios de lembrança". A homeostase do sistema psíquico é rompida, e o princípio de prazer é momentaneamente abolido. Aparece então a emoção dolorosa.

A dor da comoção retornará, assumindo outras formas além da lembrança exclusiva de um episódio infeliz. Ela surgirá muitas vezes sob a forma de outra dor, uma dor psicogênica, ou então no próprio corpo, sob a forma de uma manifestação psicossomática, um outro afeto desagradável ou um impulso autodestrutivo.

Fase de reação: a dor corporal não se deve apenas a uma lesão e ao transtorno que a acompanha, mas também ao imenso esforço do eu para se defender desse transtorno. Quando se é privado da integridade do próprio corpo ou de um objeto de apego, produz-se um excesso de investimento afetivo da imagem do local lesado ou da imagem do objeto perdido. Esse excesso compensatório aumenta ainda mais a dor que foi provocada pela agressão. Portanto, a dor física torna-se também um esforço de defesa, mais do que uma simples manifestação de uma agressão.

O autor fala de uma dor inconsciente, não como uma sensação ancorada no inconsciente, mas o elo entre uma dor que aconteceu no passado e uma dor atualizada que se repete.

Observo nos casos clínicos apresentados que a dor do passado retorna no presente como uma nova dor, um outro sintoma, no caso, o prurido, uma passagem ao ato, um quadro psicossomático.

Joyce McDougall (2013) diz que os pacientes somáticos têm dificuldade de elaborar psiquicamente seus afetos potencialmente destruturantes e, como mecanismo de defesa, tendem a ejetar os afetos do aparelho mental.

Esses afetos dos pacientes somáticos não são convertidos, deslocados ou transformados, e são expulsas do psiquismo as percepções, ideias e fantasias relacionadas a vivências traumáticas primitivas.

A psicanalista introduz o termo "desafetação", referindo-se a um distúrbio da economia afetiva típico dos pacientes somáticos. Os indivíduos têm dificuldade de discriminar seus próprios afetos e os das outras pessoas em seu meio, resultando em vínculos pouco consistentes. Em situações de sofrimento psíquico, eles podem estabelecer relações simbióticas que visam recriar a ilusão da relação que tinham com a figura materna, e com isso surge a dificuldade do indivíduo em se diferenciar do outro, gerando angústia e possíveis sintomas somáticos. O corpo se pronuncia mediante a utilização dos poucos recursos defensivos dos quais ele dispõe.

Observa-se na desafetação que a pessoa troca o trabalho mental pelo ato, no sentido de dar vazão às tensões. Tal mecanismo funciona como protetor do aparelho psíquico.

Ainda segundo McDougall (2013), os processos de pensamento dos somatizantes de certa maneira esvaziam a palavra de sua significação afetiva. Nos estados psicossomáticos, o corpo se comporta de uma forma delirante, hiperfuncionando ou inibindo funções somáticas normais, e o faz de modo insensato no plano fisiológico. O corpo então enlouquece, ele psicotiza.

Ficam evidentes os efeitos do trauma sobre a pele. No caso da senhora M., é uma sensação na pele que evoca os eventos traumáticos e que possibilita o discurso sobre eles. No caso do senhor T., são o desamparo e a fragilidade que trazem à tona a vivência traumática insuportável, que ocasionaria a descompensação traumática.

Percebo que a melhora desses pacientes se apresentou por meio das consultas e retornos, pois, à medida que contavam suas histórias, o prurido, se não melhorava, era mais suportado.

A angústia levou à necessidade de encontrar um sentido para esse sintoma.

De acordo com Dejours (1991), o sentido do sintoma está na sua realização na análise da transferência e pelos efeitos mutativos no analista. É necessário compreender o outro, em primeiro lugar, e interpretá-lo em seguida. O autor diz que o sentido do sintoma somático, se é que existe, não está no sintoma, mas no trabalho dialógico de interpretação eventualmente desencadeado por ele. Trabalho cuja possibilidade sugere o funcionamento do sintoma como uma ação sobre outros.

A função materna cumpre várias finalidades para promover o desenvolvimento e o equilíbrio da economia psicossomática:

- satisfazer às necessidades básicas, fisiológicas e instintivas;

- descobrir os ritmos próprios das crianças para conseguir acompanhá-las;

- com sua função organizadora, propiciar a passagem do corpo biológico para o corpo erógeno, do instinto à pulsão;

- ter o papel de para-excitação, ou seja, proteger, regular as excitações do bebê, antes de o psiquismo adquirir o seu funcionamento protetor autônomo;

- captar e interpretar os comportamentos de competência e responder por meio de contatos verbais e gestos e, portanto, estabelecer as interações.

Winnicott (1983) diz que a pele tem um papel que faz o limite entre o eu e o não eu, e, desse modo, as doenças de pele podem estar ligadas a um desejo regressivo aos cuidados maternos de contato constante.

Os psicanalistas Pierre Marty (1976) e Joyce McDougall (2013) consideram como importantíssimo e imprescindível o exercício da função materna no contexto da clínica psicanalítica com pacientes somáticos que apresentam pensamento operatório e desafetação. Concordam que situações em que a mãe não consegue atender às necessidades e decifrar os sinais não verbais emitidos pelo bebê podem ter como consequência um comprometimento da criança em simbolizar suas experiências.

Atualmente, apesar de estarem mais fragilizados pela idade avançada, tanto a senhora M. como o senhor T. não apresentam mais o quadro de prurido psicogênico. Continuam frequentando o consultório por outras questões dermatológicas, e observo que as memórias mais trágicas foram aos poucos sendo substituídas por lembranças agradáveis, como a comida que suas mães preparavam nas festas judaicas, recordações de viagens, brincadeiras com familiares e amigos de infância.

O trabalho de testemunho que realizaram para muitas organizações, relatando suas histórias, ajudou muito nesse processo de elaboração, construção da verdade e no próprio valor histórico.

O ato de narrar o evento traumático foi composto por esses três elementos: o sofrimento, a escuta e a necessidade de contar.

O que sempre me encantou nesses pacientes sobreviventes foi a sua resiliência, e acho oportuno lembrar que os dois adoram e cultivam orquídeas. A senhora M. tem um belo jardim com orquidário, e o senhor T. cultiva as flores na sua lavanderia; ambos espalham as orquídeas em pequenos vasos em suas casas. Recebi de cada um uma de suas orquídeas.

Quando penso em orquídeas, flores bonitas, singulares, delicadas, mas ao mesmo tempo resistentes, que precisam de cuidado e se adaptam, a conexão com esses pacientes é imediata.

 

Conclusão

Minha postura como médica, e já com alguns instrumentos da psicossomática psicanalítica, foi de ser mais ativa na consulta, melhorar a comunicação com esses pacientes, instrumentalizá-los a nomear e expressar seus afetos.

Observamos no prurido que o paciente apresenta uma certa culpabilidade, num jogo circular que envolve autoerotismo e autopunição. Pode também significar a atração sobre si, sobre a pele, na medida em que a pessoa não pode ter, por parte da mãe e do meio familiar, os contatos quentes, próximos e tranquilizadores que tinha nos primeiros anos de vida.

O sentir coçar é o desejo de ser compreendido pelo objeto amado e pelo outro. Como existe uma automação de repetição, o sintoma físico do prurido aparece sob a forma de uma linguagem cutânea e reaviva as frustrações antigas, com seus sofrimentos exibidos e sua raiva reprimida. A irritação da epiderme se confunde com a irritação mental, devido à indiferenciação somatopsíquica a que tais pacientes permanecem fixados. A erotização da parte da pele lesionada ou machucada sobrevém mais tarde, para tornar toleráveis a dor e a raiva, e para reverter esse desprazer em prazer.

De qualquer forma, penso que existe um componente psíquico em todo tipo de prurido, seja ele orgânico ou psicogênico.

O paciente é capturado pelo sintoma, e cabem ao médico o acolhimento e o investimento.

O médico oferece a escuta a esses pacientes, que propicia encontrar um sentido para esse sintoma ou que facilita a inclusão do mesmo numa rede simbólica. Empresta também aos pacientes seu aparelho de pensar, suas capacidades psíquicas para facilitar o trabalho imaginativo.

Acredito que, em muitas situações, fiquei neutralizada pelo funcionamento dos pacientes, assim como pela própria dinâmica e pelo setting na consulta dermatológica. Desempenhar a função materna foi meu objetivo para ajudá-los nesse processo de dessomatização.

Todo paciente gostaria de um remédio para aliviar o seu sintoma e ser curado, no entanto, com o approach da psicossomática psicanalítica, ele é convidado a sair de sua passividade, escutar seu corpo e perceber o que de profundo ocorre na superfície de sua pele.

A senhora M. e o senhor T. sobreviveram ao Holocausto, conseguiram reconstruir suas identidades e suas vidas, não estavam mais ameaçados, nem impedidos de existir, o que reforçou suas possibilidades de ação.


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ano - Nº 1 - 2019
publicação: 15-10-2019
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Autor(es)
• Noemi Evelina de Weber Wahrhaftig
Médica dermatologista.
E-mail: noemiww@gmail.com

Referências bibliográficas

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