RESENHA

O brincar e a fotografia. MACHADO, T. D. L. Da área de jogo à experiência do simbolizar: a fotografia como objeto de mediação na clínica do distúrbio psicossomático. PUC-SP.São Paulo. 2020

Cristiane Curi Abud


Ao introduzir seu texto, Machado localiza o leitor dentro do seu interesse de pesquisa, definindo o objetivo de refletir sobre os efeitos do uso da fotografia como objeto mediador no grupo terapêutico de pacientes com distúrbio psicossomático, com base na análise de um caso clínico. Sua dissertação alcança o objetivo proposto, proporcionando uma leitura da técnica de Fotolinguagem, com base em Winnicott, em um texto fluido e repleto de metáforas.

Para falar do processo de constituição psíquica e do fenômeno psicossomático em Winnicott, Machado utiliza a interessante metáfora da selva, explicando que este recurso será empregado no capítulo e na dissertação como símbolo dos territórios do corpo e do mundo. Nas palavras da autora:

 

Em meio ao contínuo cuidado oferecido pelo ambiente, podemos pensar nos processos que estão envolvidos para a possibilidade da habitação na selva. Na tentativa de ilustrá-los, recorremos à origem etimológica da palavra selva: silva em latim, que facilmente é associada ao tão comum sobrenome brasileiro, Silva. Nesta passagem se evidenciam não só variações linguísticas, mas também simbólicas, pois da selva ao Silva existe um caminho para aquisição da letra maiúscula, ou seja, para a apropriação do próprio nome e da própria história. Desta forma, habitar a própria selva tem a ver com o tornar-se si mesmo... (MACHADO, 2020, p. 19)

 

Com base em Winnicott (1966), a autora lembra que a parceria psicossomática não está dada desde o início da vida, mas é fruto de uma construção ao longo do processo de amadurecimento do sujeito.

Assim, o psiquismo pode se constituir a partir da inata criatividade primária do bebê, que, nesse início de vida, se orienta pelas funções biológicas do corpo, sobre o qual o psiquismo se apoia para se constituir. Winnicott (1966) também pressupõe uma tendência inata à integração psicossomática, que dependerá da qualidade relacional com o ambiente facilitador.

Para pensar a relação entre psiquismo e corpo, Machado retoma um conceito muito importante em Winnicott, que é a elaboração imaginativa. Segundo a autora, desde o início da vida, o infante pode elaborar imaginativamente as funções corporais, utilizando-se de relações exploratórias com os objetos, antes mesmo de descobrir a existência real deles.

A autora cita então Loparic (2000), que nos esclarece que a psicanálise winnicottiana não se prende ao lado mental, mais precisamente representacional, da existência humana, mas a coloca "diante da tarefa primordial de ‘elaborar’ o corpo, e ‘elaborar’ não significa originariamente ‘simbolizar’, mas ‘alojar-se’ no corpo, fazendo dele a nossa primeira morada neste mundo" (LOPARIC, 2000, p. 360).

Nesse ponto, Machado poderia problematizar o conceito de simbolização na psicanálise. Pela citação, a simbolização, para alguns psicanalistas, ficaria restrita à área representacional intrassubjetiva, dispensando o objeto para seu processamento. Sabemos, desde Winnicott (1971), que o objeto não fica de fora, e que ele colabora intensamente para a constituição da simbolização. Roussillon (2015) problematiza a questão quando destaca a participação quantitativa do objeto no processo de simbolização, lembrando a presença e a ausência intermitente do objeto, visto na noção de mãe suficientemente boa em Winnicott.

A autora destaca também a qualidade da presença do objeto, como teorizado por Winnicott, quando escreve sobre o rosto da mãe como espelho do bebê, em que a mãe refletirá para seu bebê os estados internos dele - se refletir os dela, a qualidade do reflexo será nociva para o bebê. Green (1990) conceituou o objeto enquanto revelador da pulsão, fazendo essa ponte entre relação objetal e representação e simbolização. Do meu ponto de vista, essa discussão avança para a psicanálise e mereceria uma problematização maior, já que um dos objetivos do trabalho é avaliar o ganho de simbolização a partir da técnica de Fotolinguagem.

Continuando o texto de Machado, aos poucos, o corpo torna-se soma e vai sendo estabelecida uma íntima conexão, de complexidade crescente, entre soma e psique, tornando real o caráter psicossomático da existência. A psique passa a habitar o corpo, tornando-o sua morada. Quando o trabalho da elaboração imaginativa das funções corporais é retido, a psique é mantida em estado de alerta, é "mentalizada".

As falhas ambientais traumáticas têm como resposta a ruptura da linha do ser, e, para não ser mais atingido, o sujeito se defende em um estado cindido. Podemos traduzir esse estado de coisas afirmando que essa cisão na personalidade paralisa o processo de elaboração imaginativa das funções corporais - na medida em que isola e encapsula o self verdadeiro, dificultando ou mesmo impedindo a sua alocação e articulação com o corpo. Assim, um conjunto de sensações e emoções, sediado no corpo, que não pode mais passar pela experiência - devido à cisão - não pode ser elaborado; não pode ser reconhecido como próprio, sendo percebido como se "corpos estranhos" invadissem ou atacassem o soma, gerando processos psicossomáticos que são interpretados como doença.

Na prática clínica com pacientes que apresentam distúrbios psicossomáticos, segue a autora, percebemos que eles não são capazes de viver experiências: ao invés de estarem ali, no acontecimento presente, elas estão fora de si, ocupados em defender-se de alguma invasão, prevenindo algum mal-estar que possa advir.

Esse constante estado de alerta remete Machado à imagem da selva. Nesses pacientes, parece estar presente uma selva ameaçadora, que não foi apropriada como um território que permite ser transitado. Experienciar suas trilhas torna-se uma atividade difícil, uma vez que tal indivíduo está paralisado ou mesmo vagando como alguém perdido - e não transitando como um habitante que constrói suas veredas, aprecia o percurso e, quando se perde, pode criar novos caminhos, em um movimento dinâmico.

Winnicott (1971) define a experiência como um trafegar constante na ilusão, e ter um ambiente de cuidado suficientemente bom poderá garantir que o bebê habite um mundo subjetivo, onde prevalece a ilusão de onipotência, permitindo a ele a possibilidade de criar os objetos que encontra. Caso isso não ocorra, esses objetos serão vividos como ameaçadores.

Por meio do controle onipotente, o bebê passa a manipular seu corpo e seus objetos e, aos poucos, através de um brincar imaginativo, vai surgindo a qualidade do objeto transicional. Este pode ser um substituto simbólico da mãe, mas o seu valor está na sua existência real, e não simbólica, pois só assim, vivo e com existência concreta, poderá ser usado pela criança como um facilitador na passagem do subjetivo puro à objetividade da realidade externa. Os objetos transicionais formam um espaço potencial, que consiste na sobreposição entre mundo subjetivo e mundo objetivo, entre fantasia e realidade.

Este ponto da dissertação é muito importante, porque é aqui que as fotografias, utilizadas na técnica de Fotolinguagem, podem ser conceituadas no grupo como objetos mediadores, uma vez que podem ser compreendidas enquanto objetos transicionais. Ao apresentar sua foto, o paciente fala daquilo que vê, que projeta ilusoriamente na foto, que é real ao mesmo tempo que se presta a essas projeções. Na foto, mundo objetivo e mundo subjetivo se sobrepõem.

Assim, já introduzimos o capítulo dois, no qual a autora teoriza um tanto sobre as fotografias com base no lindo texto de Barthes (1980), A câmara clara, em que ele nomeia como punctum o ponto da foto que, como uma flecha, transpassa o espectador da imagem, podendo ser um detalhe que, ao mesmo tempo, preenche toda a fotografia. O punctum seria este elemento que permite transitar entre dentro e fora, que escapa do studium, do contexto da imagem.

Como "O jogo do rabisco" desenvolvido por Winnicott (1968), a Fotolinguagem não acontece através de um brincar a ser decifrado pela interpretação, mas por meio da possibilidade de o analista ocupar um lugar no brincar do paciente, uma vez que o analista também escolhe fotos e fala sobre elas, o que o coloca em um lugar contratransferencial ambíguo, no qual brinca junto com o paciente, mas não de maneira ingênua.

A aposta de Brun (2013) nos recursos de mediação terapêuticos consiste na reativação, por meio do encontro com o meio maleável, das experiências subjetivas primitivas que nunca foram integradas e não puderam ser traduzidas em linguagem verbal, possibilitando o surgimento de uma linguagem do ato e do corpo. Na medida em que a situação clínica oferece uma mediação que possibilita o acesso às experiências sensório-afetivo-motoras, tais sensações alucinadas tomam forma no objeto mediador, e este ajuda a torná-las figuráveis e transformáveis.

Machado descreve então, com muita propriedade, o Método da Fotolinguagem, destacando a provocação que o analista faz ao grupo: falar o que viu de semelhante e de diferente na foto de cada participante, construindo elementos para o acesso ao campo da ambivalência, em um movimento de diferenciação, contrário à fusão objetal, tão frequente nesses pacientes.

Cabe ao analista, por meio do envelope psíquico grupal (ANZIEU, 1993), garantir um ambiente seguro, sustentando a experiência vivida e facilitando que o paciente tenha o seu olhar da fotografia legitimado, mas que este também possa ser reinvestido por novas perspectivas. Isto é fazer passar pela área da experiência (WINNICOTT, 1987), ou seja, a espontaneidade pode ser sentida como própria.

No campo do jogo com as fotografias, os movimentos simultâneos de criação e sobrevivência do objeto mediador favorecem o trabalho psíquico e, pela via da experiência, pode surgir um campo para a autoria do si mesmo e do próprio corpo e, a partir daí, simbolizações podem acontecer. A delicadeza desse trabalho está na possibilidade de tornar real o caráter psicossomático da existência, para que a psique possa habitar o corpo, tornando-o sua morada. Assim, eu diria que a selva se transmuta em Silva.

A autora, então, nos apresenta Lara, uma "menina" de 42 anos, que usava bengala e camisetas infantis. Perdeu sua mãe, a quem idealizava e se prendia melancolicamente, mas que, aos poucos, foi surgindo no grupo, através das imagens, como insuficientemente boa, desde o holding, que a imagem da catarata denunciava como não continente, até a imagem das mãos que seguravam apenas os pés do bebê, ou a imagem do olhar distante de uma mãe. Muitas metáforas foram sugeridas a Lara nas primeiras sessões, mas ela não as compreendia. Já as imagens diziam muito a ela, não apenas as imagens que ela via, mas aquelas que o grupo refletia para ela.

Machado seguiu a técnica firmemente; mesmo diante de tentações de investigar a vida de Lara com perguntas objetivas, resistiu e deixou a técnica seguir. De outra forma, talvez ela colhesse dados da vida da paciente, o que lhe permitiria formular alguma astuta interpretação, o que era visto por Winnicott com maus olhos. O analista deve propiciar a experiência, e não demonstrar sua astúcia com grandes interpretações, diria o autor em O brincar e a realidade (1971).

Lara pôde transitar em uma área de ambivalência, deixando de idealizar a mãe, sem que isso implicasse em uma ameaça de perda de partes de si mesma. Entretanto, continua a autora, é só através da passagem da experiência pela linguagem que a simbolização acontece, quando o indivíduo passa a ter recursos verbais para lidar com a experiência.

O grupo e as fotos, que funcionam como objetos transicionais pictóricos em direção à linguagem, auxiliam na construção de uma área intermediária, e, aos poucos, a paciente vem elaborando os processos de diferenciações e de acesso à simbolização pela construção do espaço transicional. Por estar lidando com a área dos fenômenos transicionais, é natural que surjam momentos de maior fusão objetal e outros de discriminação. No entanto, essa dinâmica só aparece como fruto do processo terapêutico, que aposta em um posterior atravessamento do estágio do concernimento, quando os impulsos agressivos destrutivos poderão ser integrados com os impulsos eróticos.

A partir das ilustrações clínicas, Machado demonstra como a sensorialidade é experimentada por Lara, para posteriormente ganhar figurabilidade e uma narrativa ligada a lembranças da sua história de vida. Está aberta a possibilidade para que a elaboração imaginativa aconteça. As fotos funcionam para a paciente analisada, conclui a autora, como objetos transicionais pictóricos em direção à linguagem, permitindo a construção de um espaço transicional, no qual as experiências podem ser legitimadas, atravessadas pela fala e, assim, constituir processos de simbolização.


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ano - Nº 3 - 2021
publicação: 20-11-2021
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Autor(es)
• Cristiane Curi Abud
Departamento de Psicossomática Psicanalitica do Instituto Sedes Sapientiae.

Psicanalista, professora e membro do Departamento de Psicossomática e. Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Doutora em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Escreveu o livro Dores e odores, distúrbios e destinos do olfato, São Paulo, Via Lettera, 2009. É coautora do livro Psicologia médica – Abordagem integral do processo saúde-doença, Porto Alegre, Artmed, 2012, e organizadora dos livros A subjetividade nos grupos e instituições, Lisboa, Chiado, 2015, e O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise, São Paulo, Perspectiva, 2017.
E-mail: criscabud@uol.com.br

Referências bibliográficas

ANZIEU, D. O grupo e o inconsciente: o imaginário grupal. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1993.

BARTHES, R. (1980) A câmara clara: notas sobre a fotografia. 7. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.

BRUN, A. (2013) Spécificité de la symbolisation dans les médiations thérapeutiques. In: BRUN, A.; CHOUVIER, B.; ROUSSILLON, R. Manuel des mediations thérapeutiques. Paris: Dunod, 2019. p. 143-182.

GREEN, A. Conferências brasileiras de André Green: metapsicologia dos limites. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

LOPARIC, Z. O "animal humano". Natureza Humana, v. 2, n. 2, São Paulo, p. 351-397, 2000.

ROUSSILLON, R. A função simbolizante. Jornal de psicanálise, v. 48, n. 89, São Paulo, dez. 2015.

WINNICOTT, D. W. (1971) O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

WINNICOTT, D. W. (1987) O gesto espontâneo. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017. 

WINNICOTT, D. W. (1968) O jogo do rabisco [Squiggle Game]. In: WINNICOTT, D. W. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed, 2005. p. 230-243.

WINNICOTT, D. W. (1966) Transtorno [disorder] psicossomático. In: WINNICOTT, D. W. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed, 2005. p. 82-93.

 


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