MONOGRAFIA

Dor: Trincheira contra o insustentável (1)

Parte do trabalho apresentado no curso de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae para obtenção do título de especialista em Psicologia Clínica

Pain: trench against the unsusteintable
Susan Masijah Sendyk
Departamento de Psicanálise Instituto Sedes Sapientiae

RESUMO
A frágil conexão que o paciente doloroso faz entre a manifestação de dor e a sua subjetividade, assim como a dificuldade que ele apresenta em abrir mão dessa dor, uma vez que ela exerce uma função asseguradora, são as questões que propulsionam este trabalho. Poderia a dor ser a manifestação de um sofrimento inominável, cuja essência é o desamparo? A psicossomática psicanalítica refere que a insuficiência das funções psíquicas impede que este paciente se aproprie da dor para incorporá-la em suas próprias vivências. O paciente que funciona dentro desta economia não consegue alçar voo para a esfera psíquica e fica aprisionado na corporeidade. É possível pensarmos na dor como tendo duas funções: uma desorganizadora, resultante do despreparo e da fragilidade do ego na forma de lidar com os traumas na medida em que se ocupar da dor poderia ser uma forma de não se ocupar de outro sofrimento; e outra, organizadora do aparelho mental, na medida em que funcionaria como um anteparo frente à desorganização progressiva, como um alerta para o sujeito. No paciente doloroso a articulação mental-somática está bloqueada, dificultada, mas não é totalmente inexistente, pois acontece também uma forma de apropriação, ou utilização, desse fenômeno somático, uma vez que é por meio de suas dores que eles são olhados e cuidados. Ou seja, se a dor ocupa um lugar na relação com o outro, ela tem, portanto, uma função simbólica. Neste sentido, podemos levantar a hipótese de que o fenômeno da dor poderia ser de natureza mista, somática e neurótica, um fenômeno que sugere uma irregularidade do funcionamento psíquico.

Palavras-chave: Dor, Paraexcitação, Ruptura, Narcisismo

ABSTRACT
The fragile link that the aching patient makes between the manifestation of pain and his subjectivity, as well as the difficulty that he introduces in giving up this pain, since it exercises a secure function that cannot be underestimated, are the questions that drive this work. Could the pain be the manifestation of an unnamed suffers which essence is vulnerability? Psychosomatic psychoanalytic believes that an insufficient psychic function avoids this patient to appropriate the pain in order to incorporate it in his own living. The patient who function into this way doesn’t succeed to approach to the psychic sphere and remain physically captured. It is possible to think of the pain as having two functions: one disorganizer, resulting of the unprepared and the fragility in the way that the ego struggles with the traumas, although get involve with pain, means not get involve with psychic suffering, and one that improves, and in this way, could be a factor of mental organization while functioning like a shield in front of a progressive disorganization. For the aching patient the mental-somatic articulation is blocked, troubled, but it is not totally non-existent. It happens to be also an appropriation or use of this somatic phenomenon, once it is through its pain that he is looked on and are cared. If the pain holds a place in the relationship with the other, it has then a symbolic function. In this sense we could suggest a hypothesis that the phenomenon of pain could be of mixed, somatic and neurotic nature, a phenomenon where there is a misdeed of the psychic functioning.

Keywords: Pain, Para-excitement, Break, Narcissism


Sentir Dor: Cuidar é Curar?

Há alguns anos, trabalhei em um hospital particular de São Paulo, no setor de Medicina do Trabalho, e participava como psicóloga de uma equipe no atendimento multidisciplinar a grupos de funcionários que apresentavam dor crônica. O diagnóstico variava entre LER/DORT, fibromialgia e dores de coluna cervical e lombar. Tratava-se de um programa de reeducação para o tratamento da dor, em que trabalhavam médicos, fisioterapeutas e psicólogos, e tinha como objetivo ampliar o campo de consciência dos fatores envolvidos no adoecimento de cada um.

Para muitos, ainda que fosse uma questão antiga, a dor não tinha historicidade, mas era um fenômeno que aparecia desvinculado de dificuldades de outra ordem. Do ponto de vista do participante desse programa, a relação entre a dor e a maneira como conduziam suas vidas, ou enfrentavam situações conflituosas, era tênue, quando não inexistente. Eu notava que a sensação física protagonizava seu estado e que a percepção de si, por sua vez, era empobrecida. Isso me levou a pensar no grau de exterioridade, mais do que interioridade, do fenômeno somático em relação ao próprio sujeito.

Mostravam-se interessados em participar do grupo, demonstravam preocupação com o funcionamento do corpo, mas chamava-me a atenção certa condescendência com a dor. Paradoxalmente, parecia ser difícil abrir mão dela, pois a dor parecia exercer um efeito assegurador. Havia um pedido para tratar a dor, mas ao mesmo tempo não podiam abdicar da mesma totalmente.

Muitas questões foram me intrigando! Poderia a dor estar a serviço de algo que não poderia ser abandonado? O que seria deles, se não fosse a dor? A dor parecia lhes conferir alguma identidade. Que função, afinal, teria a dor para essas pessoas?

Observava que o interesse recaía mais em receber os cuidados do que na cura propriamente. É interessante notar que a dor exige, para o seu tratamento, a participação de vários profissionais e, portanto, de várias possibilidades de cuidados. Nesse sentido, parecia haver nesses participantes um padrão de comportamento marcado pela passividade e dependência para com a equipe.

Apresentavam uma sobrerreação frente às situações consideradas estressantes, em que o corpo reagia, e uma intensificação da dor era sentida; demonstravam um despreparo para lidar com situações conflituosas. Parecia haver uma comunicação não pela via da palavra, que era escassa, mas através do fenômeno somático. Seria uma forma de comunicação primitiva e somática de um sofrimento?

No decorrer de nossos encontros, eu percebia que começavam a identificar suas dores com situações conflituosas, e a dor ia assumindo uma posição de sinal de alerta de que alguma coisa não ia bem em suas vidas. Parecia que os atendimentos psicológicos sensibilizavam essas pessoas a construir uma história de sua dor, o que parecia muito difícil, a princípio.

Os resultados, no entanto, eram efêmeros. As dores melhoravam, mas retornavam, e os participantes do programa seguiam à procura de uma solução mágica e imediata, na busca de um método terapêutico que se ativesse mais às questões físicas. O efeito mais nitidamente observado era sobre a autoestima. Faziam referência a uma melhora de suas dores, associada à situação de ter um espaço onde se sentiam acolhidos, o que parecia revelar um pedido para serem olhados. 

Seria a dor o correlato da angústia do bebê diante da ameaça de ausência da mãe? Ou do outro? Poderia a dor encenar no corpo a possibilidade de aproximação com a mãe? Ou de afastamento dela? Será que a dor teria como eficácia denunciar o desamparo? Isto é, a condição imposta a todos os humanos de não poder prescindir do outro?

Porte (1999) afirma que apenas recentemente psicossomatistas, como Pierre Marty, se ocuparam dessa questão, articulando-a com um mecanismo somatopsíquico. Segundo Porte (1999), Marty distingue entre as dores que repousam em bases lesionais incontestáveis e são, desta forma, desorganizadoras do aparelho psíquico quando insuportáveis, e aquelas que, ao contrário, não se apoiam em um substrato orgânico e podem ser objeto de investigação afetiva. E também aquelas manifestações dolorosas que têm uma base orgânica incerta e deixam o observador dividido entre a ideia de uma desorganização psíquica secundária ao fenômeno doloroso e a ideia de um investimento em que ele mesmo seria o objeto. 

Neste trabalho, privilegiarei a segunda e a terceira categorias mencionadas por Marty (PORTE, 1999).


Manifestação Dolorosa: Estudo das Articulações entre a Psicanálise e a Psicossomática

Os conceitos gerais de uma teoria da dor encontram-se na obra de Freud, em "Projeto para uma psicologia científica" (1895) e em "Inibição, sintoma e angústia" (1926).

Pontalis (2005) reforça que o tema da dor também está presente de forma implícita em toda a obra de Freud. Por exemplo, em "Sobre o narcisismo: uma introdução" (1914); na noção do trauma como invasão; na definição do masoquismo primário, em que a dor se articula ao conceito de pulsão de morte; e na reação terapêutica negativa.

No "Projeto" (FREUD, 1895), explica Pontalis (2005), a dor se caracteriza por um fenômeno de ruptura de barreiras que ocorre quando quantidades de energia excessivas invadem os dispositivos de proteção seguidas por uma propensão à descarga. A dor é apresentada nesse texto de Freud (1895), segundo o autor, como diferente do desprazer e exige mecanismos particulares que evocam mais o funcionamento de um "organismo ou de uma máquina hidráulica do que uma atividade mental" (PONTALIS, 2005, p. 268); um excesso de excitação que entrava toda atividade de ligação, mesmo ao nível do processo primário: "o cheio demais cria um vazio" (PONTALIS, 2005, p. 268). O autor afirma que, no "Projeto", Freud, de fato, opõe vivência de dor e vivência de satisfação. O par de opostos assim criado não seria prazer-desprazer, mas prazer-desprazer por um lado, processo que rege o curso da vivência de satisfação, e, por outro, dor.

Pontalis (2005) refere ainda que é no apêndice C de "Inibição, sintoma e angústia" (FREUD, 1926) que encontramos a tentativa mais direta de Freud de diferenciar angústia e dor. Num primeiro tempo, ele explica que angústia e dor são pensadas ambas em relação à perda do objeto:_____ a dor seria a reação própria à perda do objeto, e a angústia seria a reação ao perigo dessa perda, que é a perda de amor.

Pontalis (2005) explica que, no que tange à vivência de dor, diferentemente do que acontece com a vivência de satisfação - que separa entre o simples apaziguamento da necessidade vital e a composição complexa da sequência fantasmática -, não há metáfora, ou seja, criação de sentido. É como se, com a dor, o corpo se transformasse em psique e a psique, em corpo.

Sabemos que a pulsão nasce no corpo e repercute no psíquico. Os aspectos subjetivos encontram-se assim, apoiados sobre uma estrutura somática, sendo o somático a condição de possibilidade de existência do psíquico, que por sua vez tem como especificidade a proteção do soma.

A estruturação e o funcionamento do aparelho psíquico, assim como a construção do processo de representação a ele pertencente, se constituem pela mediação da presença disponível e afetiva de um outro que ampara, dá continência e satisfaz.

A marca deixada pela experiência de satisfação cria o movimento desejante como tentativa de restabelecer o prazer que tem lugar nesta situação. Somente um desejo é capaz de pôr em movimento o aparelho psíquico, retirando o sujeito da exclusividade das manifestações corpóreas e produzindo assim sua mobilização para fora de si mesmo.

No bebê, a aparição da angústia é sentida nas mudanças somáticas desprazerosas e se relaciona com a pouca produção mental, sendo traumático qualquer estímulo que supere as possibilidades do aparelho psíquico de ligá-lo a representações.

Quando a função de paraexcitação realizada pelo outro falha, pode provocar uma brecha por onde "escorre" uma inundação de excitação. Como sinaliza Meltzer (1995), um corpo que tenha podido vivenciar desde o início da vida mental uma experiência de revêrie materna pode se articular à psique num contínuo entre corporalidade e pensamento, em que a psique assume sua função de protetora do soma. O aparelho psíquico, incapaz de controlar o excesso de excitação, deixa de exercer sua função protetora frente aos estímulos, levando o bebê a se confrontar com uma excitação traumatizante, que transborda. Nessa circunstância, ficam comprometidos o mundo das representações, bem como os processos de elaboração e simbolização das experiências emocionais.

Freud (1895) nomeia esta função materna como "ação específica":

A estimulação só é capaz de ser abolida por meio de uma intervenção que suspenda provisoriamente a descarga de Qn no interior do corpo; e uma intervenção dessa ordem requer uma alteração no mundo externo (fornecimento de víveres, aproximação do objeto sexual), que, como ação específica, só pode ser conseguida através de determinadas maneiras. Ela se efetua por meio de assistência alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é atraída para o estado em que se encontra a criança. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária de comunicação. Quando a pessoa prestativa efetuou o trabalho da ação específica no mundo externo para o desamparado, este último se encontra numa posição, por meio de dispositivos reflexos, de cumprir imediatamente no interior de seu corpo a atividade necessária para eliminar o estímulo endógeno. (FREUD, 1980, p. 422)

 

Joyce McDougall, ao se referir a essa questão, afirma:

Deve ocorrer a eliminação do estado de estimulação interna que só pode se dar através de uma ação específica no mundo exterior, que não é alcançada pelo organismo despreparado do bebê. O choro funciona como uma demanda para que um organismo mais preparado realize a ação pelo bebê, o que o introduz no registro da comunicação, ou melhor, na ordem simbólica. (McDOUGALL, 1983, p. 98)

 

Os acontecimentos traumáticos seriam os desorganizadores do psiquismo, determinando alterações nos processos de pensamento e na atividade fantasmática. Esses fenômenos predispõem à criação de barreiras que bloqueiam o acesso da comunicação do indivíduo consigo mesmo; a mente perde seu controle e aspectos emocionais mais arcaicos, ligados à sensorialidade e à corporiedade, tendem a prevalecer. Estamos aqui no terreno do trauma, condição propulsora, segundo os psicossomatistas, para a ocorrência das manifestações psicossomáticas.

O aparelho psíquico empobrecido, que não realiza o resgate da angústia para alçá-la às suas possíveis vicissitudes, deixa à excitação expressa no corpo o trabalho de realizar o movimento de uma "pseudopulsão" (FREUD, 1895) que consiga, por sua vez, alcançar uma função simbólica. Sendo assim, a dor traduziria uma manifestação que corresponde a uma tentativa de pulsionalização do corpo pelo psiquismo. No caso dos pacientes dolorosos, a pulsão nasce e morre no corpo, pressiona o corpo e não anima o psiquismo.

Assim, não conseguem apropriar-se da dor nem incorporá-la a suas próprias vivências, o que deixa à dor a eventualidade de viver na beira, no limite, entre o físico e o psíquico. O corpo expressaria emoções que nunca foram representadas ou aquelas que, depois de representadas, foram reprimidas, elididas, eliminadas; e o sujeito, em vez de experimentar e elaborar a emoção, sofre modificações no corpo. O retorno ao soma seria devido a uma falha no processo de criação das representações. Os processos representacionais associados a vivências de falta ou privação tendem a não se completar, mas a serem substituídos por reações de descarga sobre o corpo, talvez menos custosas para a economia psíquica.

Joyce McDougall aponta que:

O aparente distanciamento, a relação deslibidinizada, operatória, e a pobreza de expressão ao captar e comunicar vivências afetivas possuem algo de positivo. Ambos atestam a existência de um arranjo protetor, no sentido de que uma organização desse tipo pode constituir uma defesa massiva contra dor mental em todos os seus aspectos: na relação com a própria imagem, frente às exigências pulsionais, e na relação com os outros. Sem dúvida, trata-se de uma defesa perigosa, na medida em que corre o risco de esbater a distinção entre interior e exterior, entre dor emocional e corporal. Os indivíduos dominados por esse tipo de arranjo da relação com eles mesmos e com o mundo externo criaram um espaço "estéril", aparentemente desprovido de afeto e de investimentos libidinais, no intuito de proteger-se contra a desarticulação do sentimento de identidade, contra o temor da frustração potencial inerente a toda relação objetal e, por fim, contra o fantasma inconsciente de ser incapaz de conter os afetos mobilizados pelo contato interpessoal e de resistir aos problemas, dores psíquicas, ou mesmo somáticas dos outros. (McDOUGALL, 1983, p. 162)

 

Sabemos também que para Marty (1998) é a boa mentalização que protege o corpo das descargas de excitação, à medida que esta encontra abrigo nas representações existentes no pré-consciente. Um grau pobre de mentalização, ao contrário, deixa o corpo desprotegido, entregue a uma linguagem primitiva basicamente somática.

O pensamento operatório pode ser entendido como uma forma resultante de diferentes graus de negatividade do funcionamento mental. Nessa perspectiva, o pensamento operatório adquire função de defesa radical, com vistas a proteger o sujeito dos processos de realização alucinatória de desejo. O sobreinvestimento do factual se torna assim um contrainvestimento antitraumático.

Aisenstein e Smadja (2001) relacionam a concepção da pulsão de morte com a destruição dos processos de pensamento constatados durante os estados operatórios e em certas patologias comportamentais. Esta pulsão seria mais do tipo de um princípio de morte psíquica que, sob a forma de impulso desencarnante, ataca e mata o pensamento durante o próprio processo do mesmo.

Daí, poderíamos supor que a dor seria então uma defesa para conter essa submersão do psiquismo? Uma defesa não no sentido de um mecanismo de defesa, até porque o funcionamento psíquico se encontra insuficiente, mas uma defesa no corpo, a própria trincheira, contra um excesso que não consegue ser elaborado mentalmente. A dor física, nesse sentido, seria uma barreira contra a dor mental? Contra o surgimento de uma dor profunda, insuportável e que cumpre assim uma função defensiva no psiquismo inundado pela excitação libidinal não elaborada? Poderíamos pensar que não deixa de ser um recurso: quando há dor, não há sofrimento psíquico.

A questão da trincheira me soa muito próxima da noção de uma proteção que precisou ser adaptada como a única possibilidade disponível contra uma exposição que poderia ser dolorosa psiquicamente. Aproximamo-nos aqui da ideia de uma função protetora da dor; a dor física viria como que para ajudar a suportar um sofrimento mental devastador e irrepresentável.

Freud (1920) expõe a questão do trauma assim:

Chamamos de traumáticas as excitações externas suficientemente fortes para causarem efração no pára-excitações... Um evento como o traumatismo externo provocará, certamente, uma perturbação de grande envergadura no funcionamento energético do organismo e colocará em movimento todos os meios de defesa. Já não se trata de impedir o aparelho psíquico de ser submerso por grandes somas de excitações, portanto, diferente do modelo da dor, onde se produzia, na proximidade do ponto de efração, uma espécie de guerra de trincheiras, uma barreira, aqui o conjunto da vesícula é invadido por essas quantidades de excitações. (FREUD, 1980, p. 45)

 

Para Marty (1998), a dor pode compensar uma perda objetal, que apareceria se a dor cedesse. A fragilidade psíquica desses pacientes, decorrente de uma situação traumática original que não pôde ser elaborada, os coloca cronicamente submetidos a vivências traumáticas, no que se refere ao desamparo gerado pela perda do objeto. Entendo então que a dor possa revelar a fragilidade de um eu cujo sentimento de perda não pode ser representado, por isso tampouco elaborado, buscando assim sua manifestação através do corpo.

O que se observa nos pacientes dolorosos é um extremo desamparo, é como se a dor fosse o choro do bebê, que requer constantemente a presença do outro, cuja falta, matriz da vida psíquica, não consegue ser suportada, confirmando que na dor o objeto não pode ser reencontrado por meio da representação. Porte afirma: "Onde existe dor, é o objeto ausente, perdido, que está presente" (1999).

Da incapacidade de elaborar esta vivência surge a renúncia ao objeto, porque a libido, que teria como destino o objeto, é dele subtraída.

Green (1993) explica que todos os processos que tendem a substituir o investimento do objeto, a princípio voltando-se para os investimentos narcísicos e depois para os autoeróticos, e que desqualificam o objeto, mesmo quando mantêm sua existência trabalham no sentido da pulsão de morte. Cada vez que é retirada do objeto uma parte dos investimentos que lhe são vinculados, é um pouco de vida que é retirada do sujeito. Assim, o negativo da atividade psíquica, a exposição às manifestações somáticas, nos coloca de frente à pulsão de morte.

Para Marty (1998), a dor absorve quase todo o investimento, esvazia o mundo e leva a uma depressão essencial, caracterizada pela falta de desejos, de interesse na vida afetiva e social; condutas automáticas e mecânicas; ausência de simbolismo e de metáforas no discurso, com todo o perigo conhecido para a saúde.

É certo que, no curso de uma depressão essencial, angústias difusas - verdadeiras relíquias dos estados de desamparo do bebê - podem se apresentar, sendo estas manifestações clinicamente diferentes daquelas que provêm das angústias objetais comuns.

Na dor, há algo que não pode, ou melhor, que nunca pôde ser elaborado, que é a perda traumática do outro. Da incapacidade de elaborar esta vivência surge a renúncia ao objeto, porque a libido que teria como destino o objeto é dele subtraída. Não há procura por outro objeto. A carga libidinal se concentra no ego, reconstituindo-se o primitivo estado narcisista. Por meio da redistribuição narcísica da libido, torna-se possível que tal excitação se torne imobilizada sob a forma de dor corporal. O paciente doloroso parece encontrar-se no limite entre um investimento narcísico e a relação objetal. "A dor é a possibilidade de se alcançar uma relação objetal sem abrir mão do narcisismo" (PORTE, 1999, p. 154).

Para Freud (1926):

A dor é assim a reação real à perda do objeto, enquanto a ansiedade é a reação ao perigo que essa perda acarreta e, por um deslocamento ulterior, uma reação ao perigo da perda do próprio objeto. Quando há dor física, ocorre um alto grau do que pode ser denominado de catexia narcísica do ponto doloroso. Essa catexia continua a aumentar e tende por assim dizer a esvaziar o ego. A transição da dor física para a mental corresponde a uma mudança da catexia narcísica para a catexia do objeto. (FREUD, 1980, p. 196)

 

A condição de inabilidade para representar ou simbolizar as próprias vivências e a questão da descarga e da falta de mediação, demarcadas como elementos nucleares dessas manifestações dolorosas, remetem-nos à noção freudiana das neuroses atuais.

Freud (1920) alerta para o fato de que há duas formas diferentes de processar a excitação pulsional: transformando-a diretamente em angústia, a partir da qual resultariam fenômenos somáticos, ou realizando-se a mediatização simbólica, da qual podem, ou não, resultar sintomas psíquicos. A impossibilidade de elaboração psíquica fragiliza o plano somático, na medida em que deixa livre o acesso da excitação não representável. No caso das neuroses atuais, Freud (1920) destacava a existência de uma área de formação de sintoma destituído de simbolização.

Retomo uma questão colocada no início deste artigo, a menção à manifestação de duas categorias de sofrimentos: aquele que toca diretamente o corpo físico, mais evidente, mas também o que toca o psíquico. Entendo que nos pacientes dolorosos, a que me refiro neste artigo, a articulação mental-somática está bloqueada, dificultada, mas não é totalmente inexistente. Há também um uso desse fenômeno somático, numa espécie de uso histérico, porque há benefícios; é através de suas dores que eles são olhados, cuidados. Isto é, se a dor ocupa um lugar na relação com o outro, ela teria, portanto, uma função simbólica. Haveria algum ponto de contato entre a dimensão propriamente somática e a dimensão neurótica?

Na clínica de pacientes dolorosos, o sofrimento se manifesta essencialmente sob a forma de sintomas narcísicos, em sujeitos que apresentam dificuldades para articular as próprias histórias, vivências e dores. Apresentam uma situação de fragilidade que não lhes permite abrir mão da sensação dolorosa, ancorados em sua dor como forma de não sucumbirem em um vazio aterrador de desamparo.

Do ponto de vista da psicopatologia, encontramos nesses pacientes dolorosos certa organização histérica sobreposta a uma infraestrutura psíquica frágil, que aflora em situações de maior demanda emocional. A dor, portanto, aparece ocupando uma posição mediana entre a angústia e o sofrimento do luto, mas também entre o investimento narcísico e o investimento objetal. Essa questão pode nos reconduzir à hipótese de que o fenômeno da dor, nesses pacientes, poderia ser de natureza mista, somática e neurótica, um fenômeno de neurose de mentalização incerta, em que há uma grande irregularidade do funcionamento mental.

Assim, é possível pensarmos na dor com tendo duas funções: uma desorganizadora, resultante do despreparo do eu, de sua fragilidade na forma de lidar com os traumas em decorrência de uma insuficiência da potência simbólica; e outra, organizadora do aparelho mental, na medida em que funciona como um anteparo à desorganização progressiva, podendo ser um alerta para o sujeito.

Minha hipótese é de que os pacientes dolorosos exibem uma tentativa de vinculação psíquica da experiência traumática que passa pela mediação do outro que cuida, em direção do qual apela a dor. É através dela que realizam parte significativa de seus relacionamentos. De fato, a dor revela uma experiência mista: ela lembra o sujeito o tempo todo de que ele está vivo e de que não prescinde do outro, destinatário de todo apelo. É sentida como manifestação de vida e fonte de subjetivação. Por tudo isso, não conseguem abrir mão dela. Ou seja, agarrar-se à dor funciona como defesa contra um processo de desorganização e seu investimento é uma forma de reorganização vital. De maneira geral, arriscaria dizer que, no paciente doloroso, comparado com outras afecções psicossomáticas, a repressão parece menos intensa, como se a dor intermediasse sua relação com o mundo.

O terreno que encontramos é de um sofrimento gritante por parte do paciente e uma dificuldade do analista para acessar a singularidade da dor, a mesma dificuldade que o paciente tem em associar sua dor às próprias vivências. O trabalho clínico visaria a transformar o imperativo da sensação, que impede o sujeito de apropriar-se de suas vivências subjetivas, em investimento pré-consciente, lugar de emergência das representações, na medida em que se analisa o conflito na origem da manifestação somática. Para isso, o tratamento analítico buscaria recuperar o objeto perdido através da presença e da palavra do analista, proporcionando a passagem da dor corporal à dor psíquica, bem como a transformação do investimento narcísico ao objetal. Podemos supor que, se o eu puder suportar a ausência do objeto e substituir a dor pelo sentimento de frustração, isto é, pelo afeto que caracteriza a experiência de insatisfação, o objeto poderá ser incluído no eu, submetido aos processos de pensamento e finalmente simbolizado. Para Green (1993), a ausência se evidencia pela relação simbólica. É ela que permite que o negado seja experimentado por atividade psíquica, protegendo o corpo.

Entre somatização e simbolização, a dor traduz o grito "pseudopulsional" (FREUD, 1895) oriundo da experiência traumática, que jamais pôde transformar-se em inscrição de falta.

Para concluir, nos pacientes dolorosos a falta é vivida como uma angústia que transborda para o corpo, porque não engancha no psíquico, e a dor ocupa o vão que se estabelece na unidade psicossomática, no limite entre corpo e mente, fronteira que demarca essa dissociação, ao mesmo tempo que tenta organizá-la.

A verdadeira doença desses pacientes é a divisão entre psiquismo e soma; é a desarticulação da unidade psicossomática construída para evitar que a dor profunda pudesse emergir.


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ano - Nº 1 - 2019
publicação: 15-10-2019
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Autor(es)
• Susan Masijah Sendyk
Psicóloga e Psicanalista, Especialista em Psicossomática Psicanalítica
Alameda Joaquim Eugenio de Lima, 881, Cj. 504, São Paulo, Brasil.
susanms@terra.com.br


Referências bibliográficas

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________. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução. E.S.B., v. XIV.

 

________. (1920) Além do princípio do prazer. E.S.B., v. XVIII.

 

________. (1926) Inibição, sintoma e angústia. E.S.B., v. XX.

 

GREEN, A. El trabajo de lo negativo. Buenos Aires: Ed. Argentina, 1993.

MARTY, P. Mentalização e psicossomática. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.

 

McDOUGALL, J. Em defesa de uma certa normalidade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.

 

MELTZER, D. Ausência de mente - Relação desenvolvimentalista entre psicossomática, hiperatividade e alucinose. In: MELTZER, D.; HARRIS, M. H. A apreensão do belo. Rio de Janeiro: Imago, 1995.

 

PONTALIS, J. Entre o sonho e a dor. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2005.

 

PORTE, J. M. La douleur: concept limite de la psychanalyse. Rev. Franç. Psychosom., v. 15, p. 149-166, 1999.

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