ARTIGOS

A Psicossomática Psicanalítica no contexto da Política de Assistência Social


Psychoanalytic Psychosomatics in the context of Social Assistance Policy
Aline Carla da Rocha Soares Bento

RESUMO
O presente artigo visa apresentar algumas intervenções psicológicas realizadas com crianças e adolescentes em situação de acolhimento que apresentavam comportamentos agressivos e hipersexualizados. Foram utilizadas atividades lúdicas, orientações e capacitações com as cuidadoras e demais profissionais no contexto das políticas públicas de Assistência Social e intervenções nas famílias acompanhadas. Para tanto, o referencial teórico da Psicossomática Psicanalítica trouxe contribuições para a compreensão dos casos e seus respectivos encaminhamentos à rede de saúde.

Palavras-chave: Psicossomática psicanalítica, Assistência social, Instituição.

ABSTRACT
This article aims to present some psychological interventions carried out with sheltered children and teenagers who presented aggressive and hypersexualized behaviors. Were used playful activities, guidance and training with caregivers and other professionals in the context of public policies for Social Assistance and interventions to monitored families. Therefore, the theoretical framework of Psychoanalytic Psychosomatics brought contributions to the understanding of the cases and their respective referrals to the health network.

Keywords: Psychoanalytic psychosomatics, Social assistance, Institution.


Introdução

As atuações do psicólogo e dos demais profissionais nas políticas públicas de Assistência Social sustentam o princípio de garantia de direitos, desenvolvendo uma visão crítica e reflexiva da realidade social, histórica e das relações de poder. Com o objetivo de promover a transformação da realidade, por meio de práticas emancipatórias e comprometidas, buscam desenvolver a autonomia dos indivíduos e famílias.

O intuito é dar aos usuários suporte para superar as fragilidades por meio de ações desenvolvidas em equipamentos socioassistenciais, como o CRAS - Centro de Referência de Assistência Social na prevenção e o CREAS - Centro de Referência Especializado de Assistência Social, que visam à superação da violação de direitos. O Serviço de Proteção Social Especial de Alta Complexidade tem por finalidade ofertar serviços especializados, primando pela preservação, o fortalecimento ou o resgate da convivência familiar e comunitária nos serviços de acolhimento em Abrigo institucional, Casa Lar, Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora etc.

A equipe interdisciplinar realiza intervenções conforme as diretrizes que regem a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS, 1993). Assim, considera as normativas e orientações que fundamentam e definem as Políticas de Assistência Social, reguladoras do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e da Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004), no intuito de romper com o ciclo da violência para que não se perpetue nas próximas gerações.

Quando o ambiente familiar se torna hostil e a família perde a capacidade de cuidar de suas crianças e protegê-las, uma das alternativas utilizadas para lidar com a violência intrafamiliar é a transferência dos cuidados parentais para uma instituição de acolhimento, mais conhecida como "Abrigo" e "Casa Lar".

Nesse contexto, a psicóloga utilizou, em suas abordagens, o referencial teórico da Psicologia Social, Psicologia Comunitária, Psicologia Institucional, Psicologia do Desenvolvimento e também conceitos da Psicossomática Psicanalítica, que foram relevantes para a compreensão e intervenção nos casos que serão apresentados.

Apresentação da problemática

As instituições de acolhimento exercem um papel importante, oriundo da função materna, no sentido de cuidar, estabelecer relações de afeto e acolher as angústias de crianças e adolescentes. No entanto, percebe-se que há dificuldades tanto em exercer a função materna quanto em estabelecer uma função paterna, através da instauração de regras e limites. Marin (2002) observou que essa ausência da função paterna era um aspecto comprometedor, pois havia uma "predominância da ideologia do amor", em que a criança não era frustrada e não se estabeleciam limites definidos. Ressaltou ainda que a função paterna coloca o indivíduo num lugar social.

Ranña (2003) menciona que a constituição do sujeito pode ser estudada a partir de três eixos, dos quais destacamos o intersubjetivo, em que ressalta a importância da função paterna, com o seu papel estruturante. O pai, ao se interpor na fusão mãe e bebê, implica o filho na triangulação edípica, e ocorre o recalque como organizador psíquico.  

Falar com as crianças sobre sua história, ou sobre a sua saída da instituição, pode causar angústia nos profissionais do abrigo. Em vista disso, muitas instituições apresentam dificuldade para falar sobre esses assuntos, deixando a criança num estado de desamparo, à mercê de suas pulsões, tensões e excitações. Ressalta-se que, por exercerem um papel importante na instituição de acolhimento, é necessário que as cuidadoras também recebam suporte emocional e capacitação, para que possam realizar melhor suas funções e promover um ambiente adequado para o desenvolvimento físico e psíquico das crianças e dos adolescentes acolhidos.

As crianças e os adolescentes que se encontram acolhidos, além de terem de lidar com as situações traumáticas vivenciadas no contexto familiar, precisam se adaptar às mudanças e rotinas dos abrigos. Tais mudanças geram sentimentos de desamparo, insegurança, ansiedade, angústia e medo do futuro. Destaca-se a importância de os profissionais que os acompanham possibilitarem condições para que consigam superar seus traumas, estigmas e os preconceitos que sofrem, por serem consideradas, pela sociedade, "crianças de abrigo".

Para Winnicott (1978), as excitações do id podem ser traumáticas se o ego ainda não estiver em condições de incluí-las. A saúde mental de cada criança é influenciada pela mãe durante sua preocupação com o cuidado do bebê. Com isso, o cuidado dispensado à criança permite a integração entre psique e soma, contribuindo para um desenvolvimento saudável do ser humano. A privação do amor e do cuidado materno, a violência física e psicológica podem ser caracterizadas na ordem de um trauma, prejudicando o desenvolvimento da personalidade e a saúde física e mental. Segundo Bowlby (2006), o círculo vicioso da violência deve ser rompido, pois crianças que sofreram negligência e privação afetiva podem tornar-se pais incapazes de cuidar de seus filhos.

Sobre o conceito do amadurecimento proposto por Winnicott (2011), compreende-se a importância da função materna, referindo-se à mãe suficientemente boa ou ao ambiente facilitador, à possibilidade de ocorrer a integração psicossomática, tornando-se um indivíduo em sua totalidade ou self verdadeiro. A mãe suficientemente boa oferece três funções essenciais para o desenvolvimento do bebê: o holding, o handling e a apresentação de objetos.

O holding caracteriza-se pela sustentação do bebê no colo, o suporte físico e psíquico ao segurar nos braços com firmeza para amamentar, aquecer, acalentar. Já o handling trata da maneira como o bebê é manipulado, o contato e o cuidado do corpo do bebê através das mãos da mãe. A apresentação de objetos consiste em oferecer outros objetos de satisfação ao bebê, possibilitando o interesse para além da cuidadora. Porém, diante de falha ambiental num momento primitivo do amadurecimento, se for preciso adaptar-se e reagir a esse ambiente, surge um falso self, que oculta o verdadeiro self.

Volich (2010) retoma a teoria freudiana do trauma. Freud o define como um aumento abrupto da excitação no aparelho psíquico, cuja assimilação ou elaboração é impossível pelas vias normais, motoras ou mentais, possibilitando a desorganização do aparelho psíquico. Cita as diferenças entre as pulsões, sendo a pulsão de vida aquela que tem a função de autoconservação, e as pulsões sexuais, em que a fusão, a ligação e a integração tenderiam à manutenção, uma condição essencial para o desenvolvimento humano e também para a constituição de estruturas, dinâmicas e funções psíquicas mais complexas. Porém, a pulsão de morte é vista como regressiva e desintegradora, na medida em que buscaria a restauração de um estado anterior, não dotado de vida, que se manifesta pela destrutividade, quebrando vínculos, com a redução completa das tensões e a aniquilação do ser vivo, reconduzindo-o ao estado inorgânico.

Freud (1924) declara que parte da pulsão de morte será canalizada para o exterior, que se voltará contra o objeto, na forma de destruição. O trauma pode ser físico ou psicológico, provocando angústias e um estado de desamparo devido às experiências sofridas em sua primitiva infância. Ao relacionar traumas psicológicos com um estado de desamparo, ele descreve que "o ego se sente desamparado, atordoado e abandonado à sua sorte diante de um aluvião de excitações demasiado poderosas para que os processos mentais do ego possam-nas manejar" (FREUD, 1926 apud ZIMERMAN, 1999, p. 111). Portanto, a situação de desamparo revela um excesso de excitação que não pode ser simbolizada, e o indivíduo fica à mercê de suas pulsões.

Conforme Marty (1993), no pensamento operatório, há um empobrecimento na capacidade de simbolização, das demandas pulsionais e da elaboração por meio da fantasia. Assim, em situações de conflito e sobrecarga de excitações, há uma descarga das excitações por meio de comportamentos automáticos ou sintomas somáticos. Kreisler (1999) cita as desorganizações de bebês e crianças causadas pela privação ou pelo excesso de cuidados dos pais, em que as descargas são efetuadas através do comportamento, no fazer e agir.

Segundo Ranña (2014), os excessos são descarregados diretamente pelo corpo ou pelo ato. O autor se refere à ideia de mentalização, estudada por Marty, um conceito central no paradigma psicossomático, a concepção de que, diante de excesso de estímulos e acontecimentos, a mente pode não dar conta de criar novas representações. Quando os excessos pulsionais não são metabolizados pelo aparelho psíquico, não ocorre simbolização ou expressão pela linguagem. As falhas nesse mecanismo ou extravasamento pulsional resultam em somatizações, ocasionando doenças e distúrbios.

No seminário sobre a angústia, Lacan (2005) cita que a passagem ao ato ocorre quando o sujeito é tomado por uma angústia incontrolável e, diante da impossibilidade de simbolização, reage de modo impulsivo e se precipita numa ação extrema. Busca o agir para descarregar a angústia.

Referente à passagem ao ato, Bento (2015) observou que, na instituição de acolhimento, crianças e adolescentes apresentaram sintomas e descargas pelo comportamento; devido ao fato de não conseguirem elaborar situações traumáticas, apresentaram dificuldades ao lidar com suas emoções e sentimentos. As excitações foram descarregadas através de sintomas físicos, comportamentos agressivos e agitação psicomotora.

De acordo com Marty (1993), o pré-consciente é fundamental na regulação do funcionamento psicossomático. É nessa instância que acontece a ligação entre as pulsões vindas do inconsciente e as representações possíveis de acesso ao consciente.

Segundo Aberastury (1982), o brincar proposto por Melanie Klein baseia-se no entendimento de que a criança vence realidades dolorosas e domina medos instintivos, projetando-os no exterior por meio dos brinquedos. Através de desenhos, atividades projetivas, jogos de modelagem e outros recursos lúdicos, a criança representa seu mundo interno e situações que a angustiam. O brincar permite vencer os medos dos objetos e dos perigos internos, sendo uma ponte entre a fantasia e a realidade.

Há uma contribuição de Klein (1978) ao afirmar que a experiência dolorosa e frustrante mobiliza na criança a pulsão de morte, com seus componentes destrutivos; no entanto, a experiência prazerosa mobiliza a pulsão de vida, com seus componentes estruturantes.

Para Winnicott (1975), o brincar é diferente da brincadeira e mais amplo, pois vem de um lugar e um tempo na existência humana na relação inicial entre mãe e bebê. A mãe suficientemente boa possibilita um período de ilusão e desilusão no bebê; com isso, a mãe passa de um objeto subjetivamente concebido para um objeto objetivamente percebido. Nessa interface, cria-se o espaço potencial, intermediário entre o mundo interno e o mundo externo, lugar para ilusão de onipotência e utilização de símbolos, favorecendo a independência emocional, que não é completa, possibilitando a criatividade e a espontaneidade.

Ao abordar os fenômenos transicionais e o espaço potencial, o autor menciona que há uma evolução direta dos fenômenos transicionais para o brincar, do brincar para o brincar compartilhado e para a experiência cultural. Ressalta que não é o objeto que é transicional, mas sim o uso que o bebê faz dele. Assim, o bebê elege um objeto real e representante da sua transição de um estado em que está fundido com a mãe para um estado de diferenciação, pois a percebe como algo externo e separado de si. O objeto transicional contribui para o progresso emocional, pois possui a função de acalmar o bebê e pode ser solicitado na hora de dormir, em momentos de ansiedade, solidão e humor deprimido.

Quando o bebê alcança sua integração e passa a distinguir a realidade interna da realidade externa, ele fica sozinho na presença de alguém. A criança brinca com base na suposição de que a pessoa a quem ama, em quem confia e que lhe dá segurança está disponível. E assim, vai ficando pronta para o próximo estádio, que é permitir e fruir uma sobreposição de duas áreas da brincadeira, a área da criança e a área do outro, no brincar conjunto num relacionamento, ou seja, no brincar compartilhado.

Winnicott (2011) cita que a formação grupal madura tem, em sua essência, a multiplicação de unidades individuais. O grupo beneficia-se da experiência pessoal dos indivíduos quando cada um recebe assistência em seu momento de integração e cobertura dos cuidados maternos, um suporte diante das ansiedades paranoides.

Com isso, no brincar, as crianças pensam, imaginam, fantasiam e constroem significados, surgindo um espaço potencial para o desenvolvimento de uma forma autêntica de ser e estar no mundo. Na psicanálise, o brincar e a associação livre possibilitam estar ao mesmo tempo no mundo real e imaginário; possibilitam também a compreensão de sua história, permitindo a criatividade e a ressignificação de suas vivências, saindo de uma posição passiva para uma ativa, tornando-se sujeitos atuantes.

As vinhetas de casos apresentadas a seguir exemplificam algumas vivências na instituição de acolhimento e na família acompanhada. Após essa exposição, será realizada a discussão e articulação dos casos com os conceitos teóricos.

Vinhetas de casos

Os casos apresentados resultam do acompanhamento pela equipe técnica interdisciplinar psicossocial do Serviço de Proteção Social Especial de Alta Complexidade, da Assistência Social.

V., menina de 9 anos de idade, institucionalizada devido à negligência e exposição sexual materna, apresentava comportamentos agressivos e hipersexualizados, com masturbação excessiva, palavras e gestos de cunho sexual e dificuldades em compreender e demonstrar afetos. A criança era acompanhada por psiquiatra, fazendo uso de medicamentos, e por psicólogo clínico, através de psicoterapia. Num atendimento psicossocial, foi identificado que V. e alguns acolhidos mantinham práticas sexuais entre si.

O fato foi comunicado aos responsáveis pelo abrigo, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, para medidas pertinentes, e foram realizadas intervenções lúdicas individuais e grupais, com orientações às crianças acolhidas e às cuidadoras, visando combater tais práticas. O psiquiatra e o psicólogo clínico também foram informados.

Nos primeiros atendimentos, individuais ou em grupo, com a psicóloga e a assistente social, a criança apresentava comportamentos hipersexualizados e agressivos. Foram realizadas orientações a V., com o objetivo de que compreendesse quais gestos de afeto e carinho eram aceitos, ressaltando que criança não namora.

Através de observações e orientações no período de aproximadamente 6 meses, verificou-se que os comportamentos agressivos e hipersexualizados de V. diminuíram significativamente, apresentando um senso crítico sobre tais comportamentos. Após um atendimento, enquanto esperava a cuidadora, a menina perguntou à psicóloga se poderia fazer um desenho na lousa branca. Ao desenhar, disse que iria pedir à cuidadora que comprasse um vestido bonito, igual ao da psicóloga, demonstrando uma identificação com a profissional e elogiando-a de uma forma terna, sem cunho sexual. Desenhou uma casa fechada, dizendo que estava ali; também desenhou a assistente social de um lado, com os pés no chão, e a psicóloga do outro lado da casa, voando com um paraquedas. 

Associou o paraquedas da psicóloga e o voar com a liberdade, pelo fato de saber que a psicóloga iria embora para outra cidade, e disse que gostaria de ser livre e ir embora também. De forma espontânea, verbalizou que gostaria de ser adotada e pediu à psicóloga que encontrasse uma família para ela. Por estar passando pelo momento de destituição do poder familiar, demonstrou estar mais receptiva à possibilidade de uma nova família. Assim, foi realizado relatório de acompanhamento ao Judiciário, com indicações sobre o momento que estava vivenciando, visando a possibilidade de uma família substituta.

O caso seguinte refere-se a M., menino de 10 anos de idade, com histórico de negligência, exposição sexual pela genitora, tendo presenciado um homicídio e, em seguida, perdeu o contato com o genitor. A criança apresentava comportamentos agressivos e hipersexualizados, proferindo palavras pejorativas e de conteúdo sexual aos profissionais. Demonstrava identificação com figuras de bandido e assassino; durante suas crises de raiva, dizia que iria pegar uma faca e matar as cuidadoras, repetindo a cena traumática do homicídio que havia presenciado. Fazia acompanhamento psiquiátrico, com uso de medicações, e psicoterapia com psicólogo clínico.

Foram realizados atendimentos individuais e grupais com a equipe técnica, e, durante um dos atendimentos individuais, M. apresentou-se agressivo e irônico, proferindo palavras pejorativas às profissionais. Disse que tinha uma faca em seu bolso e que queria matar a psicóloga; a profissional, de uma forma acolhedora, disse que não tinha medo dele, pois ele era uma criança, e não um "bandido". M. expressou surpresa e sorriu. A psicóloga disse que compreendia que ele havia passado por situações muito difíceis e sofria por ter presenciado algumas coisas ruins, por isso repetia alguns comportamentos. M. sorriu, disse que estava brincando, tirou do seu bolso uma bolinha de gude, sentou-se no chão, passou a brincar com a bolinha e falou espontaneamente sobre as expectativas de visitar os avós paternos no fim de semana e sobre seu desejo de morar com eles.

Ao realizar visita domiciliar aos avós paternos de M., a avó mencionou que estava surpresa, citou que o neto M. passou a brincar como uma criança durante as visitas em sua residência, brincando de carrinho e outros brinquedos, o que não fazia desde que presenciara o homicídio. Esse acompanhamento com os avós resultou em indicações ao Ministério Público e ao Poder Judiciário sobre o desejo da criança de morar com os avós e os vínculos observados entre eles. Após o período de acompanhamento pela equipe técnica do Poder Judiciário, a guarda de M. e seu irmão mais novo foi determinada por ordem judicial aos avós paternos.

Durante as visitas na instituição de acolhimento, as cuidadoras e uma assistente social, que prestava serviços através de um projeto particular, foram orientadas a inserir na rotina das crianças momentos lúdicos e brinquedos diversos, pois observou-se que o espaço lúdico da instituição não era usado de forma efetiva. Portanto, foram inseridas atividades lúdicas, brinquedos, filmes temáticos, contação de histórias, desenhos livres, pinturas, passeios pela natureza e artes em gesso.

Devido aos comportamentos agressivos e hipersexualizados de algumas crianças, notou-se muita angústia entre os profissionais da instituição, sentimento de desamparo e ansiedade, principalmente as cuidadoras. Foi identificada uma proibição ou certa restrição entre as cuidadoras, referente aos bebês acolhidos, para que não fossem segurados no colo. Em vista disso, foram realizados momentos de escuta das cuidadoras sobre suas dificuldades, e orientações diante das demandas e capacitação. Ocorreu capacitação com as cuidadoras e outros profissionais da instituição, através de grupo psicoeducativo, visando informar e pensar sobre a rotina do abrigo e ocasionar reflexões, adotando e promovendo práticas saudáveis referentes aos cuidados das crianças, dos adolescentes e bebês acolhidos.

As orientações e a capacitação ocorreram sobre vários temas: a negligência e a privação de afetos na ordem de um trauma e suas consequências; a constituição do sujeito; a importância do brincar e a possibilidade de ressignificação da história dos acolhidos; o papel da instituição de acolhimento e a construção da identidade das crianças. Também foi apresentado e discutido o documentário O começo da vida, sobre a importância dos cuidados nos primeiros anos de vida do ser humano, conceitos referentes ao cuidado e ao afeto, provenientes da função materna, e o estabelecimento de limites e regras, referentes à função paterna.

Então, ressaltou-se a importância da instituição de acolhimento na vida de cada criança ou adolescente, pois, para muitos, o Abrigo ou a Casa Lar era a única possibilidade de terem cuidado, afeto e saberem de seus limites e regras. Assim, teriam a possibilidade de lidar com suas tristezas, medos e frustrações, ocasionando mudanças e transformações. Foram feitas recomendações à responsável pelas instituições de acolhimento, para que as cuidadoras participassem de outras capacitações mais aprofundadas e que realizassem psicoterapia de grupo na rede de saúde, visando lidar melhor com a ansiedade, a angústia e o sentimento de desamparo, e assim desenvolver melhor suas funções.

Relatamos a seguir o caso de uma família acompanhada pela equipe técnica, que se refere ao segundo acolhimento de três irmãos, devido à negligência dos pais e ao risco. Uma das crianças teria sofrido abuso sexual por um vizinho que frequentava a residência da família. Duas delas apresentavam comprometimento mental e uma limitação motora, sendo acompanhadas por neurologista e ortopedista.

Por meio de visita domiciliar e atendimento psicossocial à família, foi constatado que o genitor trabalhava em uma fazenda e permanecia ausente de sua residência por vários dias. Embora demonstrasse preocupação com os filhos acolhidos, não acreditava na denúncia de que um deles poderia ter sofrido violência sexual. A genitora, senhora C., apresentou dificuldades em compreender as orientações, demonstrando um comprometimento mental leve.

Também foi observado que a senhora C. apresentava uma dificuldade visual, então foram realizados encaminhamento e agendamento de avaliação oftalmológica. A psicóloga da equipe a acompanhou à consulta e foi informada pelo médico oftalmologista de que ela apresentava um comprometimento grave e irreversível do sistema visual, de origem congênita, devido a uma doença ou uso de alguma substância durante a gravidez de sua mãe, incapacitando-a para realizar funções laborais básicas.

O laudo sobre seu diagnóstico foi encaminhado à equipe do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) para a realização de encaminhamentos; foi realizado o requerimento do Benefício de Prestação Continuada (BPC) no INSS - Instituto Nacional do Seguro Social, e a família foi inserida em cadastro de Programa de Habitação. Após a consulta com o médico oftalmologista, a senhora C. demonstrou hostilidade e tristeza, atribuindo à mãe suas dificuldades e condições de saúde.

Devido ao histórico de faltas anteriores da senhora C. nos agendamentos com profissionais da saúde, a psicóloga a acompanhou na primeira consulta aos demais profissionais - neurologista, psiquiatra e psicólogo clínico -, e estes foram informados sobre a demanda. Nos próximos atendimentos, a senhora C. passou a ir sozinha, visando desenvolver sua autonomia, autocuidado e autoestima.

A senhora C. passou a residir numa casa no mesmo quintal de sua mãe, a senhora T. e seu companheiro, porém o companheiro da senhora T. não aceitava a presença da enteada, surgindo conflitos entre eles. Numa das visitas domiciliares de atendimento familiar, a senhora T. demonstrou tristeza e a intenção de se separar do companheiro devido às suas atitudes, pois se sentia humilhada. Em vista disso, foram realizadas intervenções, visando a conscientização sobre a violência psicológica e suas consequências. Em razão de também demonstrar um comprometimento mental, foi realizado o encaminhamento da senhora T. para avaliação neurológica, e, por apresentar relatos de alterações no humor e ansiedade, foram realizados encaminhamentos para avaliação psiquiátrica e psicológica. Nesse atendimento familiar, constatou-se que a senhora C. também passou um período de sua adolescência em instituição de acolhimento, devido a situações de conflitos com sua mãe, ou seja, violência intrafamiliar. Observou-se que a família apresentava um histórico de negligência, conflitos, hostilidade e questões não elaboradas que se repetiam.

A senhora C. e seu esposo se mudaram para outra residência, em razão dos conflitos existentes na residência de sua mãe. Fizeram algumas modificações positivas, visando a possibilidade de os filhos serem integrados novamente em sua família, porém retrocediam às orientações e ainda não acreditavam que um dos filhos havia sofrido violência sexual. Ao ser questionado sobre sua família, o genitor respondeu que moravam longe, não tinham contato e nem endereço, demonstrando resistência ao falar sobre seus familiares e impossibilitando buscas na família extensa. Percebeu-se que o acolhimento dos filhos atualizou suas histórias de vínculos rompidos, fragilizados e sentimentos de desamparo.

Por isso, a equipe técnica que acompanhava a família solicitou um estudo de caso com as equipes das redes de saúde, de proteção e de assistência social, do qual participaram as equipes do CRAS, do Conselho Tutelar e do Programa Saúde da Família (PSF), e foi estabelecido que tais equipes também realizariam um acompanhamento mais próximo e sistematizado da família, visando seu desenvolvimento e evolução.

Constatou-se a força do fenômeno transgeracional, padrões que se repetem ao longo de várias gerações e que devem ser interrompidos com a interdição do agressor e/ou tratamento do agressor e da vítima. Devido à complexidade do caso, ressalta-se a importância, tanto na prevenção quanto na intervenção, de a violência intrafamiliar ser considerada sempre de forma interdisciplinar e multiprofissional, envolvendo diferentes olhares, segmentos e práticas profissionais, considerando também os aspectos histórico e social, visando estabelecer uma rede de proteção às crianças e aos adolescentes.

 

Discussão e considerações finais

É importante ressaltar que o psicólogo, no contexto da Assistência Social, faz parte de uma equipe interdisciplinar que realiza intervenção e acompanhamento psicossocial, não se tratando especificamente de psicoterapia. Porém, destacamos que alguns conceitos da Psicossomática Psicanalítica trouxeram contribuições no contexto das políticas públicas de Assistência Social, na compreensão da dinâmica dos casos e nas intervenções psicossociais às crianças, adolescentes, famílias e na escuta às cuidadoras, assim como orientações e capacitações das mesmas.

Por meio dos conceitos sobre traumas, pulsão de morte e especialmente sobre mentalização e passagem ao ato, foi possível identificar que, tanto no caso de V. como no caso de M. e demais crianças acolhidas, havia falhas na mentalização em razão da precariedade do funcionamento do pré-consciente. Por não conseguirem elaborar suas vivências traumáticas pelas vias mentais, descarregavam seus excessos pulsionais, oriundos da pulsão de morte, através da passagem ao ato, uma descarga pelo comportamento. Não conseguiam brincar, representar e simbolizar suas experiências que causaram sofrimento; em vista disso, apresentavam alguns sintomas físicos e agitação psicomotora, predominando os comportamentos automáticos e impulsivos de agressividade e hipersexualidade.

Conceitos sobre a função materna, a função paterna, falhas ambientais e constituição do sujeito, abordados na capacitação e nas orientações às cuidadoras, foram de extrema relevância. A utilização desses temas possibilitou a reflexão sobre a importância de a função materna ser desenvolvida pelas cuidadoras na instituição. Elas compreenderam que a função materna é condição fundamental para promover o desenvolvimento das crianças, em especial dos bebês. Também foi ressaltada a função paterna, quando o pai se interpõe na relação entre mãe e bebê, rompendo a vivência simbiótica e narcísica entre ambos, função importante para o estabelecimento de regras e limites no desenvolvimento das crianças. 

O intuito dessas intervenções foi proporcionar, às cuidadoras e demais profissionais da instituição de acolhimento, informações e orientações para que desenvolvessem os cuidados de uma mãe suficientemente boa na rotina do abrigo e, assim, ocorressem mudanças na rotina da instituição, com a possibilidade de criar um espaço potencial para o desenvolvimento dos acolhidos, tornando-se um ambiente suficientemente bom para o crescimento e contribuindo para sua integração psicossomática.

Algumas cuidadoras passaram a desenvolver melhor a função materna; houve maior investimento afetivo nos cuidados com as crianças e os vínculos se tornaram mais fortalecidos. Passaram a contar histórias para as crianças na hora de dormir, brincavam com elas, ouviam suas histórias e conversavam sobre seus sentimentos, demonstrando com isso que, na relação com as crianças, estava ocorrendo um investimento libidinal e maior capacidade de continência das excitações pulsionais.

Por meio dos conceitos sobre a importância do brincar na psicanálise, compreende-se que experiências prazerosas mobilizam a pulsão de vida, com seus componentes estruturantes. No espaço potencial onde ocorre o brincar, há simbolizações e representações, favorecendo o desenvolvimento, a criatividade e a espontaneidade. A inserção de brinquedos, brincadeiras, artes, canções de ninar, contação de histórias na rotina das crianças facilitaram os fenômenos transicionais que intermediaram a realidade interna e a externa.

Através do brincar, as crianças passaram a fantasiar, simbolizar e fazer representações de suas vivências traumáticas. O manejo da rotina e o funcionamento da instituição facilitaram a promoção de representações pelas crianças, que conseguiam expressar melhor seus sentimentos e emoções, verbalizando suas experiências e histórias. Em vista disso, ocorreram mudanças significativas no comportamento delas; começaram a brincar individualmente, com as cuidadoras e em grupo, houve uma diminuição significativa dos comportamentos agressivos e hipersexualizados, e as práticas sexuais entre elas não foram mais identificadas.

No caso da família, ao observar fenômenos transgeracionais, relação hostil e vínculos fragilizados da senhora C. com a sua mãe, as ideias sobre a função materna e a integração psicossomática colaboraram na elaboração da hipótese de ter ocorrido falhas ambientais na fase inicial de sua vida. Dessa forma, foi prejudicada a integração entre psique e soma, causando danos à saúde física e mental, além de acarretar dificuldades na proteção e cuidado dos filhos. Diante da complexidade do caso, tanto a senhora C. quanto a sua mãe foram encaminhadas a outros profissionais, para que tivessem um acompanhamento e suporte interdisciplinar e multiprofissional, visando o desenvolvimento individual e familiar e a possibilidade de cuidarem dos filhos e netos.

A Psicossomática Psicanalítica também contribuiu na realização de orientações e recomendações aos gestores da Secretaria de Assistência Social, responsáveis pelas instituições de acolhimento, Conselho Tutelar, Ministério Público, Poder Judiciário e principalmente nos encaminhamentos feitos à rede de saúde (PSF - Programa Saúde da Família; CAPS - Centro de Atenção Psicossocial; Centro de Especialidades Médicas) para avaliações médicas gerais, psiquiátrica, neurológica e psicológica. Dessa forma, favoreceu ações visando a prevenção e a superação da violência aos indivíduos e às famílias em vulnerabilidade e risco social, a reconstrução e o fortalecimento dos vínculos e, sobretudo, um melhor funcionamento da instituição de acolhimento.


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ano - Nº 2 - 2020
publicação: 28-11-2020
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Autor(es)
• Aline Carla da Rocha Soares Bento
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

Psicóloga com atuação na clínica e em Assistência Social, no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e no Serviço de Proteção Social Especial de Alta Complexidade. Especialista em Psicologia Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP). Especialista em Psicossomática Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae. Especialista em Intervenção Psicossocial no Contexto das Políticas Públicas pelo Instituto Superior de Educação do Vale do Juruena. Membro do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. E-mail: alinecarlars@yahoo.com.br


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