ARTIGOS

Enodamentos do desejo materno e função paterna inoperante na anorexia feminina


Entanglements of maternal desire and inoperative parental function in female anorexia
Lara Giacometti Herrera

RESUMO
A escuta semanal de pacientes acometidas por anorexia, realizada no PROATA – Núcleo de Atenção aos Transtornos Alimentares da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e no CAISM – Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental, reverbera discussões acerca dos enodamentos do desejo materno na vida desses sujeitos. Inquietantes questionamentos sobre a importância da entrada de um sujeito que exerça a função de terceiro na relação mãe-filha propiciaram a realização destes escritos, de forma que se possa estabelecer a discussão aqui proposta, sobre quais os possíveis paralelos entre a função paterna inoperante e a história da anorexia na vida do sujeito. Para tanto, retomarei a constituição do sujeito para Freud, de forma a explorar a importância do momento pré-edípico da relação com a figura materna, enviesando, em seguida, para a entrada da função paterna e questionando como isso se daria na história do sujeito anoréxico.

Palavras-chave: Anorexia, Função paterna, Transtornos alimentares, Pré-edípico.

ABSTRACT
The listening of patients affected by anorexia during weekly psychoanalysis sessions, held at PROATA – Center for Attention to Eating Disorders at the Federal University of São Paulo (Unifesp) and CAISM – Center for Integrated Attention to Mental Health, reverberates discussions about the entanglements of maternal desire in their lives. Unsettling questions about the importance of the third subject’s entry into the mother-daughter relationship led to these writings in order to establish the discussion proposed here, about what are the relations between the inoperative paternal function and the history of anorexia in the subject’s life. Therefore, I will resume the Freud’s constitution of the subject, in order to explore the importance of the pre-oedipal phase of the relationship with the maternal figure, then towards the entry of the paternal function and questioning how it would happen in the history of the anorexic subject.

Keywords: Anorexia, Paternal function, Eating disorders, Pre-oedipal.


"Por um instante, retive-me em ti

Formei contigo um único poro

Por onde penetrou a consciência unívoca de nossa posse

De nossa perda

Estou em mim

Estou no outro

Estou na coisa que me vê

E me situa 

[...]"

 

Francisco Alvim

 

 

As questões alimentares e a forma com que os indivíduos se relacionam com a alimentação têm atraído os holofotes para discussões. É inegável que vivemos, atualmente, uma grande fixação dos sujeitos em seus corpos e formas, assim como em suas rotinas alimentares e de exercícios, adoecidos pelo excesso da imagem de perfeição e eficiência. Nesta seara de tamanha exigência, salta às nossas escutas o corpo em cena na face da patologia alimentar.

Frequentemente, tendo seu aparecimento na adolescência, os transtornos alimentares caracterizam-se por uma alteração no comportamento alimentar do sujeito e, de acordo com Fernandes (2006), evidenciam uma marcada preocupação com a imagem do corpo, com perturbação na percepção da forma e do peso corporal. Na psicanálise, trata-se de entender, então, "de que forma a relação do sujeito com seu próprio corpo e, consequentemente, com os outros que o cercam vai interferir no seu comportamento alimentar" (FERNANDES, 2006, p. 38). Como sugerem Melin e Araújo (2002), devido a fatores culturais ou, ainda, a dificuldades na elaboração do diagnóstico em homens, os transtornos alimentares são considerados patologias predominantemente femininas. Isto é, a maior porcentagem de diagnósticos se refere a mulheres, ainda que não de forma exclusiva.

Dentre os amplos estudos e diagnósticos de transtornos alimentares, destaco nestes escritos a anorexia nervosa, que se caracteriza pela recusa alimentar e a negação do sujeito a manter-se em uma faixa de peso corporal normal mínima. Além disso, de acordo com o DSM-IV (1995), há perda de peso importante em curto período de tempo, resultado da prática de jejuns ou dietas altamente restritivas, com ou sem a presença de métodos compensatórios ou purgações, como a autoindução de vômitos e o uso abusivo de laxantes. A diferença diagnóstica entre a anorexia e a bulimia reside no fato de que os sujeitos acometidos por esta última conseguem manter um peso corporal em nível normal ou acima deste.

Embora se considerem o papel da cultura e os aspectos da contemporaneidade sobre o adoecimento com relação à própria imagem, há delicados desenlaces na constituição do sujeito que se fazem presentes na história destes pacientes. Zalcberg (2003) defende a hipótese de que os transtornos alimentares, mais especificamente a anorexia feminina - recorte que me proponho a abordar - não se configuram apenas numa fixação por ideais estéticos, e, portanto, há que se investigar na história do sujeito a relação mãe-filha, pois, existe na mulher uma especial dificuldade de separação com a figura materna, resultante da fase que antecede o Complexo de Édipo e se estabelece diferentemente para homens e mulheres.

Assim como Zalcberg (2003), as ideias propostas por Fuks e Ramos (2015) salientam a presença da sintomatologia alimentar em tempos mais remotos: houve anoréxicas na Idade Média, no século XIX, e há anoréxicas nos tempos atuais.

Com manifestações anoréxicas típicas, uma jovem será considerada uma enferma, uma mística ou uma bruxa, segundo a época e o contexto cultural em que viva. No plano individual, trata-se sempre de uma jovem que se inscreve em uma história particular, e que luta por expressar o que julga que deve ser a vida de um ser humano, utilizando os valores sociais femininos dominantes: espiritualidade, castidade e jejum, na cristandade medieval; magreza, idealização do corpo sadio e controle de suas manifestações, nos séculos XX e XXI. (FUKS e RAMOS, 2015, p. 47)

 

Ao relatar casos de neurose histérica, Freud menciona os sintomas alimentares que acometiam suas pacientes e procurava explicá-los com base em suas teorias psicopatológicas referentes à neurose em questão. Fuks e Ramos (2015) mencionam uma carta que Freud teria escrito a Fliess, em 1895 (Manuscrito G - Sobre melancolia), em que propõe, de forma bastante breve, pensar a anorexia nervosa como uma melancolia combinada a uma sexualidade ainda inacabada, não plenamente desenvolvida. "A paciente assegura não comer simplesmente porque ela não tem fome. Perda de apetite é, no domínio sexual, perda de libido" (FUKS e RAMOS, 2015, p. 33).

Entende-se que, naquela época, a anorexia era compreendida por Freud como uma saída conversiva da histeria, pois a sintomática estaria relacionada em seus estudos com o funcionamento histérico. Atualmente, observa-se que a anorexia se tornou uma problemática autônoma, nem sempre diretamente ligada à histeria, podendo transitar seus sintomas em outros tipos de estrutura psíquica. Em todo caso, trata-se de uma falha no que se entende como os primórdios da relação mãe-bebê - momento em que a função materna como nutriz e narcisizante se desenlaça.

A amamentação é um momento em que a criança é investida pela mãe não só pela ação de ofertar a ela o leite - objeto de necessidade, mas também por envolvê-la em uma série de outras tantas sensações que compõem este embalo do aleitamento. É a partir deste encontro, deste olhar, que o sujeito passa a ser atravessado pelo mundo e pode entender a existência de um outro que o atende em suas necessidades e o protege e acalenta em suas tensões. Constata-se que o sujeito não se nutre apenas de alimentos sólidos ou líquidos, como bem salientado por E. Lemoine-Luccioni (1990) apud Fernandes (2006, p. 123), mas, sobretudo, nutre-se de significantes: "A criança come, como disse, o olhar de sua mãe. Come também sua voz, os sons..."

A falha desta função importante de para-excitação que a mãe possui nos primeiros momentos do bebê com o mundo, que possibilita oferecer significantes e representações para que o mesmo possa investir sua energia pulsional e não vivenciá-la como uma abundância ameaçadora, é um dos pontos mais evidentes na clínica dos transtornos alimentares. De acordo com Fernandes (2006), pode-se observar com clareza a precariedade da fusão pulsional no início da vida do sujeito, especialmente quando se fala de anorexia. 

Essa precariedade, segundo minha hipótese, pode ter sido instalada pelas dificuldades ou descontinuidades no exercício da função de para-excitação materna, particularmente em sua dimensão de libidinização do corpo do bebê. (FERNANDES, 2006, p. 261)

O comprometimento da constituição de um corpo libidinal, o corpo do autoerotismo, acaba por trazer dificuldades em suportar a ausência do objeto, já que não pode contar com a satisfação autoerótica para lidar com esta falta, gerando a sensação de desamparo. Entende-se que estas bases possibilitariam à criança manter-se com seus próprios recursos, por permitirem que se constitua um sentimento de segurança e continuidade. Isso acontece porque, segundo Fernandes (2006), esta função de para-excitação é parcialmente substituída pela introjeção, em que se constitui um objeto interno capaz de garantir o enfrentamento das adversidades de seu crescimento, mesmo com a ausência materna. Por meio desta mediação é que a criança pode identificar suas sensações, afetos, necessidades; podendo distinguir seus amores e seus ódios e, sobretudo, promover prazer e suportar o sofrimento. Sem esta mediação, no início da vida, o bebê não é capaz de diferenciar os incômodos que vêm do mundo ou de dentro de si mesmo. A distinção que se faz entre o que vem de dentro e o que é de fora do sujeito é uma conquista gradual do contato com a mãe, seu olhar, sua voz, seu toque.

De acordo com Fernandes (2006), a escuta e a interpretação das sensações corporais do bebê feitas pela mãe possibilitam a construção da imagem do corpo e, sendo assim, de uma identidade para a criança. É por meio desta nomeação, deste trabalho tão delicado e laborioso, que se dará a possibilidade de que o corpo venha a se constituir como um corpo próprio.

Se a mãe falha nessas funções, se não tem a condição psíquica necessária para perceber as necessidades do bebê, para discriminar suas sensações corporais, ela interpretará os apelos dele segundo suas próprias necessidades, não estabelecendo uma diferenciação entre ela mesma e o seu bebê. Nessas condições, o bebê se desenvolve preso na impotência e na dependência desse objeto primário. (FERNANDES, 2006, p. 215)

É importante ressaltar que, diante desta falha, a criança fica à mercê do mecanismo da incorporação do objeto, sem que se faça possível a introjeção - processo que integrará continuamente as pulsões deste sujeito, ampliando, assim, seu campo psíquico. Fernandes (2006) avança sobre a questão da introjeção das pulsões e menciona que, a rigor, seria necessário supor, primeiramente, uma introjeção da função materna de para-excitação para que, posteriormente, se possa dizer da introjeção de outras funções. Sem que haja, de antemão, a introjeção da função mencionada, o processo identificatório primário fica restrito ao mecanismo de incorporação.  

A incorporação, por sua vez, caracteriza um modo de relação objetal característico da fase oral, mantendo uma relação privilegiada com a atividade bucal e a ingestão de alimentos. Embora a oralidade constitua o modelo da incorporação, esta não se limita à atividade oral propriamente dita nem exclusivamente à fase oral. A introjeção e a incorporação constituem, assim, os protótipos do que se denomina identificação primária, que remete à relação pré-edípica do bebê com a mãe. (FERNANDES, 2006, p. 264)

Sendo assim, o que a anorexia e outros transtornos alimentares nos trazem à luz como núcleo de sua problemática é uma elaboração precária do narcisismo, de forma a estabelecer um modo de relação especular, indiscriminado, com os objetos. Isto seria resultado de um investimento materno precário na criança, o que faria com que a mesma permanecesse fixada numa relação primitiva com a figura materna.

Partindo do pressuposto de que há uma estreita relação entre a anorexia e esta falha na função materna nos primórdios da constituição do sujeito, como se desenha então a entrada da função paterna nesta "dança de dois"? E, além disso, qual seria a importância desta função nos casos de anorexia?

Em seu texto "Sobre a sexualidade feminina" (1931), ao discutir sobre as diferenças do Complexo de Édipo para a menina, Freud nos traz a delicada importância deste primeiro momento da fase nomeada como pré-edípica. De acordo com Fernandes (2006), a importância desta fase não deixa passar despercebida a intensa ligação entre o corpo da mãe como fonte de alimentação/necessidade e as vicissitudes da oralidade no processo de construção da feminilidade.

Assim como acontece com os garotos, a menina também terá como primeiro objeto de amor a mãe, isto porque é nesta figura que se apoiam os primeiros cuidados, como já mencionado. Freud (1931) dá o nome de "complexo negativo" a este momento de apaixonamento da menina pela mãe.

Por um lado, pode-se dar ao complexo de Édipo um conteúdo mais amplo, de modo a abranger todas as relações da criança com os dois genitores; por outro lado, também se podem levar em conta as novas experiências afirmando que a mulher atinge a normal situação edípica positiva somente após haver superado uma época anterior, dominada pelo complexo negativo. (FREUD, 2010 [1931], p. 204)

A diferença entre os caminhos do Complexo de Édipo na menina, com relação ao do menino, reside em que, no primeiro, ao final do processo, deve haver uma mudança, em que o pai se torna o novo objeto de amor. Além disso, para o menino, a angústia de castração marca o fim do processo do Complexo de Édipo, de forma que, optando por preservar seu genital, a criança escolhe suspender a função do mesmo para a dinâmica incestuosa, a fim de retomar a função deste para o mundo. Ou seja, abandona o desejo incestuoso pela mãe frente à ameaça da castração. Por outro lado, no Complexo de Édipo na menina, a angústia de castração é o ponto de partida: ao notar-se privado do falo assim como a mãe, o sujeito se depara com um conflito de sentimentos ambivalentes pela mesma, uma mistura de amor e hostilidade. Sendo assim, volta-se para o pai - detentor do falo, acreditando que este possa dar o que lhe falta, tornando-o, assim, seu objeto de amor secundário.

Para Freud (1931), a passagem das ligações afetivas do objeto materno para o paterno constitui o teor principal do processo que leva à feminilidade. Porém, além desta, menciona que existem outras duas saídas possíveis:

A primeira leva ao afastamento da sexualidade em geral. Assustada pela comparação com os meninos, a garota fica insatisfeita com seu clitóris, renuncia a sua atividade fálica e, com isso, à sexualidade mesma, assim como a boa parte de sua masculinidade em outros campos. A segunda direção consiste em se apegar, com teimosa autoafirmação, à masculinidade ameaçada; a esperança de voltar a ter um pênis se mantém viva até uma época incrivelmente tardia, é transformada em objetivo de vida, e a fantasia de apesar de tudo ser um homem prossegue, com frequência, atuando formadoramente em longos períodos de vida. Também esse "complexo de masculinidade" da mulher pode resultar em manifesta escolha homossexual do objeto. (FREUD, 2010 [1931], p. 207)

Retomo aqui a importância da relação pré-edípica para a constituição do Complexo de Édipo feminino, salientando que, em minha hipótese, há uma especial intensidade nesta fase quando se trata de sujeitos acometidos por questões alimentares como a anorexia. Isto porque, justamente nos primórdios da construção dos mecanismos de incorporação e introjeção, mencionados anteriormente, há uma falha na autonomia do sujeito para a contenção e significação de suas sensações - o que acentua, mais ainda, a dependência daquele que exerce ou pode exercer as funções maternas de para-excitação. Haveria então, na anorexia feminina, uma ligação intensa com a figura materna no momento pré-edípico, que imporia ainda mais obstáculos à passagem do objeto de amor materno para o paterno - residindo neste ponto, inclusive, a hipótese de que se fariam mais presentes os casos de anorexia em mulheres do que em homens. Alguns autores consideram que "o que parece se encontrar no centro da problemática da anorexia é a presença de uma falha significativa, ao nível do registro pré-edípico, aliada à falência da função paterna" (GASPAR, 2005, p. 633).

Como consequência da ligação exclusiva que a menina estabelece com a mãe na fase pré-edipiana, ela permanece com mais facilidade, de algum modo, alienada ao desejo materno. De tal modo que, a alienação ao desejo materno produz dificuldades para uma menina separar-se de sua mãe e ter seu próprio desejo, além do que o Outro materno deseja. (ZALCBERG, 2003 apud GERALDO e LANGE, 2016, p. 41)

Entende-se por função paterna aquilo que se entrepõe à mãe (ou o sujeito que encarna a função materna) e a criança; aquilo que interdita o vínculo fusional entre os dois sujeitos em questão, fazendo com que a criança abandone o sentimento onipotente de ser aquilo que falta à mãe, seu único objeto de desejo e, portanto, o que lhe traz a completude. É o que permite à criança diferenciar-se do lugar que lhe foi conferido pela mãe, que a inscreve em um registro do laço simbólico e permite que possa transitar para além do "saber materno infinito e misterioso" - o que, posteriormente, lhe permitirá criar para si uma marca singular. Para Dor (2011), a importância da função paterna consiste, sobretudo, na diferenciação da criança e do Outro e, sendo assim, na constituição de seu processo de subjetivação. Ao interditar a relação fusional da mãe com a criança, intervindo por meio do estabelecimento de limites, a figura paterna encarna, então, o representante da castração e da lei. A intrusão paterna faz com que a criança coloque em dúvida sua convicção onipotente, ingressando na incerteza psíquica quanto ao seu desejo e podendo, então, confrontar-se com a castração suscitada por meio da presença paterna. Conforme Dor (2011),

O pai real aparece gradativamente perante a criança como um sujeito que possui privilégios quanto ao desejo da mãe. Ele surge como um obstáculo na relação fusional por se constituir como portador da lei e por proibir o incesto. O segundo tempo do Édipo se sustenta pela presença paterna, que surge como uma presença privadora mediada pelo discurso materno. Assim sendo, a função paterna não exige um pai real. Quando a mãe faz referência a algo externo a ela, remete a uma instância terceira nessa relação mãe e filho, e alude ao discurso paterno, pois se expõe submetida à falta para a criança. A mãe deixou de ser "toda" e se tornou castrada agora, apresenta-se como "não toda". Dessa forma, a mãe demonstra para a criança que não é completa, pois também precisa de alguma coisa exterior. (DOR, 2011 apud GERALDO e LANGE, 2016, p. 40)

Importante ressaltar que "mãe" e "pai" são tidos como significantes; a mãe não necessariamente será uma mulher ou a genitora em sua concretude, assim como o pai, uma vez que tratam de funções significantes a serem conferidas aos sujeitos. "A falta da figura concreta do pai não desencadeia uma falha na inscrição do Nome-do-Pai, uma vez que este conceito se relaciona a um ordenador simbólico do discurso, e não à concretude do genitor" (VORCARO et al, 2008, p. 142). Justamente por se tratar de um significante, a função paterna é muitas vezes exercida com êxito por sujeitos que se tornam referências para a criança, mesmo não sendo seu próprio genitor.

O momento da interdição paterna que propicia a desfusão da relação da mãe com a criança ocorre no Complexo de Édipo - o que propiciaria, então, frente à constatação da mãe incompleta, as possíveis saídas já mencionadas anteriormente: afastamento geral da sexualidade, acentuação da masculinidade ou os primeiros passos para a feminilidade (FREUD, 2010 [1931]). Porém, caso o representante da função paterna não interceda na relação fusional, a criança permanece enredada no desejo materno, uma vez que, advinda do corpo da mãe, ainda se representa como extensão do mesmo e, sendo assim, seu único desejo. 

"Sinto que somos grudadas até hoje" ou "ela (mãe) diz que quer me ver independente, mas é ela quem decide tudo" são frases bastante corriqueiras nos atendimentos de pacientes com anorexia que pude acompanhar nesses quatro anos em que sou membro da equipe multiprofissional do PROATA - Núcleo de Atenção aos Transtornos Alimentares, pertencente ao Departamento de Psiquiatria da Unifesp e do CAISM - Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental. Alienadas de seu próprio desejo e capturadas pelo desejo materno, elas tecem suas vidas por meio dos fios que as mães desenrolam de seus próprios carretéis, podendo ir apenas até onde houver linha. Em sua grande maioria, possuem vida social escassa; muitas vezes não chegam a estabelecer vínculos amorosos e não se relacionam sexualmente com ninguém. Suas rotinas englobam, de forma bastante presente, a contagem de calorias dos alimentos que ingerem, quando o fazem.

Vieira (2008) entende a anorexia como uma tentativa de separação da menina frente ao desejo materno. De forma que, ao recusar o alimento, a anoréxica impõe à mãe uma falta e exige da mesma que busque algo além de sua existência, barrando o gozo invasivo da mãe. Assim, segundo Lacan (1998 [1958]) apud Geraldo e Lange (2016), a criança reivindicaria que a mãe não a usasse como realização de seus desejos e que buscasse, então, algo exterior a si mesma.

A função paterna inoperante ou insuficiente, que não se apresenta de forma a colocar a barreira que diferencia mãe e filha e, além disso, apresentar o mundo de forma segura e corajosa ao sujeito em processo de constituição, é uma notável semelhança nos discursos das pacientes em questão. Como já mencionado anteriormente, a função paterna é responsável pela interdição que marca a lei e, não obstante, de acordo com Palavras (2016), também é de responsabilidade desta função estabelecer-se de forma a ofertar segurança e confiança para que a criança seja capaz de descobrir seus limites e o mundo. Além disso, por meio da interdição se dá a possibilidade da construção do âmbito social da vida do sujeito, sua entrada na cultura, "questão essencialmente presente na dinâmica dos sujeitos acometidos pelos transtornos alimentares, que, uma vez enredadas no discurso e desejo materno, atravessam dificuldades para estabelecer vínculos sociais" (PELLEGRINO, 1987).

Comumente deparo-me com pais (ou sujeitos aos quais se poderia identificar como representantes da função paterna) que se apresentam na história das pacientes como violentos, agressivos, ausentes ou desvalorizados no discurso materno. Ao escutar relatos de violência e agressividade advindas dos pais, penso que a função paterna se faz inoperante, nestes casos, justamente pelo fato de assumir uma mesma nuance daquilo que invade e ameaça, como as possíveis sensações primárias sem a devida contenção. Nesse sentido, também me questiono sobre outro ponto que me parece pertinente frente à discussão levantada: como fazer deste pai - que aparece em seu discurso como um sujeito tomado por rompantes de agressividade - seu objeto de amor secundário? Como trasladar as ligações afetivas maternas para o pai? Penso que, novamente, neste ponto se salientam as dificuldades para uma possível diferenciação e separação do desejo, discurso e corpo materno.

Frequentemente, a figura paterna aparece no discurso como depositário dos sentimentos hostis - seja porque deste sujeito venha um registro de ausência e omissão, ou por registros de violência e agressividade - enquanto a figura materna, pelo contrário, se apresenta como o único objeto de amor. Sendo assim, haveria, então, a impossibilidade de uma triangulação e elaboração da constelação edipiana. Alonso (2007) aponta para a dificuldade de sustentação do confronto edípico por parte desses sujeitos acometidos pela anorexia e a nomeia como uma dominação amorosa, de modo que o desejo incestuoso materno cria um aprisionamento para a filha, do qual é difícil sair, e a mesma, por sua vez, domina a mãe com seus sintomas: dá-se um enodamento feito de culpa e sofrimento.

Semanalmente, escuto histórias que pontuam a problemática desses sujeitos, que vêm dizer do sofrimento de que, por não terem podido introjetar a função materna em si, tampouco internalizar a função paterna, se veem dependentes e engolfados do/no desejo materno. Como afastar-se do saber e querer materno "tão grandioso", se não se pôde enxergar o mundo para além dos olhos maternos? Como experienciar seu corpo, sua sexualidade, se este não lhe parece seu, mas de sua mãe? E como estabelecer vínculos sociais, permitindo a entrada de novos personagens em suas vidas, se o outro é, quase sempre, sentido como uma ameaça?

Penso que o trabalho de escuta de pacientes com transtornos alimentares, sobretudo a anorexia, se mostra como lugar de uma sutileza simbólica. Frequentemente, pode-se perceber uma convocatória para que analistas encarnem a posição de função paterna e intercedam, diferenciem aquele sujeito que vos fala de suas próprias mães, para que ele possa, não sem sofrimento e angústia, separar-se do desejo materno sem que tenha de lançar mão da desnutrição, do flerte com a morte, para realizar a empreitada.

Vê-se, diante do que se propôs a discutir nestes escritos, que a entrada da função paterna na dialética dual entre mãe e filha se faz primordial para que o sujeito possa ter acesso ao mundo e aos seus desejos, e que há uma particular e importante delicadeza desta entrada na dinâmica do sujeito acometido por transtornos alimentares. Sobre o que se apresenta nesse momento tão fundante e angustiante da vida psíquica do sujeito - a castração, penso-o, parafraseando Bento (2007), como um processo marcado sobretudo pela libertação, e não pelo prejuízo. É por meio desta lei que se faz possível a separação do sujeito do corpo da mãe, podendo voltar-se ao pai e constituir-se singular em sua subjetividade, fazendo-se a sinfonia da diferença e da separação que coloca o sujeito a arriscar outros passos e pares na dança da vida.   


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ano - Nº 2 - 2020
publicação: 28-11-2020
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Autor(es)
• Lara Giacometti Herrera
Instituto Sedes Sapientiae
Departamento de Psiquiatria – Unifesp (PROATA)
laragherrera@yahoo.com.br


*Psicóloga e psicanalista. Formação em Psicanálise pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Capacitação em Transtornos Alimentares pelo Departamento de Psiquiatria da Unifesp. Membro colaboradora do PROATA - Núcleo de Atenção aos Transtornos Alimentares e do CAISM – Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental.

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