RESENHA

Singular

IACONELLI, Vera. Mal-estar na maternidade. Do infanticídio à função materna. São Paulo: Annablume, 2015.
Simone Pasetchny Amadelli


Esta obra da psicanalista Vera Iaconelli teve sua primeira edição publicada em 2015, após defesa de doutorado, em 2012, pela Universidade de São Paulo. A segunda edição foi publicada, em 2020, pela editora Zagodoni.

Ao entrar em contato com a obra, observamos que a autora, a partir do atendimento de um caso clínico de tentativa de infanticídio, discute algumas das condições para a construção da função materna.

O primeiro capítulo trata da descrição do seu encontro com Carla, uma jovem de 18 anos que chega à análise após uma tentativa de aborto que resultou em um parto induzido. Com a descoberta do bebê, deixado no lixo do banheiro de um hospital/maternidade, por uma faxineira do local, a jovem foi chamada pela equipe hospitalar para reconhecimento da maternidade. Esse reconhecimento só foi possível através do olhar do outro, o que a levou a assumir posteriormente, de forma surpreendentemente adequada, o papel materno junto ao bebê.

Muitas questões envolvem o caso de Carla. Alguns aspectos que dificultaram, inicialmente, a nomeação e o reconhecimento do bebê foram a concepção do mesmo com um homem casado, o fato de seus pais acharem que ela ainda era virgem e a relação sempre conflituosa com a própria mãe. A partir dessa problemática, a autora se propõe, brilhantemente, a reconstruir a história da maternidade com base nas particularidades que o tema evoca na contemporaneidade.

O segundo capítulo é dedicado à construção histórica do papel da mulher na maternidade, mostrando que a procriação sempre foi ponto fundamental nas sociedades e a fertilidade, muitas vezes, uma condição para que a mulher tivesse um lugar no grupo social. Já de início podemos pensar sobre o questionável "instinto materno", que relaciona o fato de ser mãe como um papel inerente à mulher e ainda tão enraizado em nossa sociedade.

Ao longo do terceiro capítulo, a autora aborda a posição da mulher no século XX, associando-a a conceitos psicanalíticos como o de "função materna", "sua majestade o bebê" e "mãe suficientemente boa", convidando-nos a repensar o lugar em que a psicanálise coloca a mulher. Neste momento, a autora faz uma importante crítica à teoria psicanalítica, já que, por tratar da conservação psíquica e moral dos indivíduos, sempre coloca as mulheres num lugar central no cuidado das crianças, independentemente de sua escolha em fazê-lo.

Iaconelli destaca a ideia errônea de que as mulheres devem partir de um suposto saber sobre a maternidade como algo natural, e não como fruto de aprendizagem e de suas vivências sociais. Ao final desse capítulo, ela faz uma distinção entre o nascimento do bebê e o parto, sendo o primeiro uma experiência exclusiva do recém-nascido e o segundo, uma experiência exclusiva da mulher. Apresenta, também, uma outra crítica à psicanálise, que pouco se debruça sobre as questões que envolvem o parto, como a violência obstétrica e todas as suas implicações na vida das mulheres, focando principalmente no bebê, no nascimento, para esclarecimento da constituição do psiquismo e prevenção de distúrbios de desenvolvimento, por exemplo.

Ressaltando então a importância do olhar para a mulher, ela nos lembra o caso de Carla, que não pôde reconhecer o bebê em decorrência de sentimentos de abandono na relação com seus próprios pais e da falta de reconhecimento de si mesma como sujeito.

No quarto capítulo, Iaconelli busca traçar um percurso histórico da mulher em relação ao conhecimento e ao domínio do próprio corpo. Retoma a ideia sobre o saber natural da maternidade e nos remete a pensar sobre a perda de transmissão de conhecimentos entre as gerações ao longo do tempo, marcando de forma muito significativa a atualidade, em que as mulheres precisam buscar vários especialistas (gestação, parto, aleitamento) para apoiá-las no papel de mãe.

O discurso médico também corrobora com as dificuldades encontradas pela mãe/mulher em relação ao seu corpo, aos conhecimentos sobre a maternidade e os tipos de parto, colocando o corpo como um organismo deficitário e a mulher num lugar de incapacidade. Atualmente, temas como cesarianas agendadas, poder de persuasão do médico, violência obstétrica e todo o "pacote de humanização" do parto nos remetem à absoluta desvalorização do sujeito, pois não dão espaço para que cada mulher reconheça o que é possível e o que deseja, respeitando sua singularidade.

No quinto capítulo, a autora se ocupa do corpo do ponto de vista da psicanálise e nos dá um relato sobre a formulação freudiana do corpo erógeno e a constituição do Eu, além do seu desdobramento para o estágio do espelho descrito por Lacan. Importante diferenciá-lo do corpo biológico, que é o corpo da anatomia, da medicina, e que, como já descrito anteriormente, é considerado deficitário e incapaz. O corpo erógeno é o objeto de estudo da psicanálise e está diretamente ligado à construção da subjetividade, que se dá na relação com o outro e que exerce a função parental.

O capítulo seis trata das condições para que a função materna se constitua. A autora parte da perspectiva de que a função parental não está garantida apenas pela gestação e nos faz refletir sobre temas como o desejo de maternidade, o investimento libidinal para a criação de laços, o conhecimento e o reconhecimento do bebê e todas as questões sociais que envolvem esses temas.

Como conclusão, no capítulo sete, a autora salienta a importância de rever constantemente as premissas da nossa clínica diante da situação atual que nos é apresentada. Retoma todo o processo e os aspectos que desencadearam o caso de Carla, passando por questões como aspectos sociais da maternidade, ambivalência de sentimentos e posicionamento da mulher diante da maternidade, a falta do olhar dos envolvidos (familiares e hospital/maternidade) e, por fim, o seu reconhecimento e a apropriação da função materna.

O livro é instigante e corajoso, pois a autora aborda a teoria sem deixar de questioná-la, baseando-se em sua vasta experiência clínica. Ela abre nosso olhar para a necessidade da escuta do indivíduo com base em três importantes eixos: a experiência corporal, o discurso social e o seu lugar de sujeito. Essa visão possibilita o entendimento de como se dá, individualmente, a construção da função materna na atualidade.

 


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ano - Nº 2 - 2020
publicação: 28-11-2020
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Autor(es)
• Simone Pasetchny Amadelli
Psicóloga. Pós-graduanda em Psicanálise, Perinatalidade e Parentalidade pelo Instituto Gerar de Psicanálise. E-mail: simonepase@terra.com.br


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