MONOGRAFIA

Um encontro terapêutico e a reconstituição de Eros


A therapeutic encounter and the recovery of Eros
Cristina Satie Hirashima

RESUMO
Muitos pacientes que se encontram num verdadeiro deserto sensorial são indivíduos que têm um quadro álgico severo e, ao mesmo tempo, apresentam uma incapacidade de perceber seus próprios corpos. No campo das emoções, a subjetividade desses pacientes é empobrecida, com poucas ou quase nenhuma associação do trabalho corporal com imagens ou sentimentos, que podem ou não surgir durante a sessão. Nesta monografia, o caso clínico ilustra a evolução de uma paciente que, inicialmente, apresentava um quadro álgico que limitava demasiadamente sua locomoção, além das sequelas de uma mastectomia bilateral radical e de uma histerectomia. A paciente apresentou-se muito distante dos sentimentos, sem demonstrar qualquer sinal de expressão das emoções durante seus relatos. Através do trabalho corporal, ela pôde vivenciar experiências de um investimento libidinal pouco vivido nos primórdios de sua vida. A evolução do caso seguiu em direção à redescoberta do corpo erógeno, transformando um “corpo armadura” em “corpo de mulher”. A presença viva da terapeuta foi essencial para tecer o fio de ligação com a paciente e promover sua recuperação física e mental ao longo do processo terapêutico.

Palavras-chave: Psicocorporal, Sensorial, Erogenização, Mastectomia, Histerectomia.

ABSTRACT
A lot of patients who find themselves in a real sensorial wasteland are individuals in severe pain conditions and, at the same time, they are unable to perceive their own bodys. In the emotional field the subjectivity of these patients is very impoverished; there is little or almost no relation of body work to images or feelings which might emerge during a session.This monograph illustrates the clinical case of the evolution of a patient who initially showed an algic state which overly limited her locomotion, aside from the sequels of a radical bilateral mastectomy and a hysterectomy. The patient showed herself very distant to her feelings without expressing any sign of emotion during her statements. Through corporal therapy the pacient was able to undergo the experience of a libidinal investment she hardly lived in the primordios of her life.The evolution of the case moved on to the rediscovery of the erougenous body, transforming an “armored body” into a“female body”.The living presence of the therapist was essential to weave the tie of connection with the patient and to promote her physical and mental recovery throughout the therapeutic process.

Keywords: Psychocorporal, Sensory, Erogenization, Mastectomy, Hysterectomy.


Entrevista

As sessões tiveram início em fevereiro de 2003 e seguiram de forma esporádica nos últimos anos, até novembro de 2019. Na época, a paciente tinha 64 anos, solteira, e trabalhava em uma empresa familiar, onde lidava com locação de toalhas de mesa, guardanapos, etc. Os enxovais de linho e algodão, bordados, eram engomados e empacotados para cada cliente com o maior esmero.

Após a morte de sua mãe, a paciente, então com 54 anos, desempenhou a função de mãe dos irmãos mais novos e passou a ser solicitada principalmente pela irmã que sofria de anorexia.

Na entrevista, relatou que há dois anos sentia dores articulares e musculares intensas, provocando limitação dos seus movimentos e comprometendo suas atividades na vida diária. Nesse primeiro encontro, ela foi bastante objetiva na descrição dos sintomas. Relatou que aos 42 anos sofreu uma mastectomia bilateral radical e a retirada dos dois ovários. Fiquei impactada com a informação, mas percebi que o choque era só meu. Ela não demonstrou qualquer emoção com a lembrança do fato. Era simplesmente um relato.

Algumas sessões mais tarde, contou que, no dia da cirurgia, disse a sua mãe: "Mãe, quando a senhora voltar eu não estarei aqui, farei uma cirurgia para retirar um nódulo". Fiquei impressionada com a praticidade com que relatava uma situação tão grave. Perguntei como ela passou por essa situação sozinha, e ela respondeu: "Sempre fui assim, muito resistente". Fiquei muito sensibilizada, pensando nas partes femininas do seu corpo que foram retiradas. Mas observei que a paciente não se mostrou abalada pela lembrança, nem mudou a entonação de voz, e isto me chamou a atenção.

 

Proposta da Terapia Morfoanalítica

Desde 2000, atendo pacientes, no âmbito do consultório particular, em terapia morfoanalítica. A terapia morfoanalítica, criada pelo francês Serge Peyrot, entende o indivíduo como uma unidade indissociável corpo-psique e integra o trabalho de reequilíbrio postural sobre a estrutura ósseo muscular, através das cadeias musculares, com a análise do conteúdo emocional associado à vivência corporal. Esta Unidade Psicopostural é formada por três pilares: corpo real (pele, músculos, ossos e vísceras), corpo sensorial (sensações proprioceptivas e exteroceptivas) e corpo emocional (memórias registradas no corpo).

São utilizadas técnicas corporais, como o reajustamento postural, o trabalho respiratório, massagens suaves e profundas e os trabalhos de consciência corporal. O terapeuta morfoanalista utiliza a palavra por meio de diretivas, que são orientações verbais referentes aos locais que serão tocados, ou seja, convidando o paciente a dirigir a consciência até o local do toque. Existe também o espaço verbal oferecido ao paciente, no qual se faz, quando necessário, a análise do conteúdo emocional associado às tensões. Sofrimentos físicos (dores musculares, desvios posturais, problemas digestivos, etc.) e psíquicos (ansiedade, insônia, distúrbios alimentares, depressão) são acolhidos dentro do enquadre morfoanalítico.

Na primeira avaliação postural dessa paciente, visualizei deformações físicas bem acentuadas. Fiquei impactada. Biomecanicamente, seu corpo buscava um caminho para se manter em pé através de compensações múltiplas. Era todo retorcido. Era o melhor que ela podia fazer para manter seu equilíbrio. Senti um sufoco na garganta, aperto no peito e uma grande tristeza. Surgiu um questionamento: "Será que posso ajudar esta paciente tão desconectada do próprio corpo e com deformações tão instaladas?"

Quando eu perguntava como eram as suas dores físicas, ela respondia: "Dói". Não havia qualquer associação com uma imagem ou descrição, como alguns pacientes costumam relatar, como dor em pontada, em facada, em queimação, que irradia, etc.

Durante os primeiros oito meses, a paciente sentiu dores intensas persistentes, e a melhora do quadro álgico foi muito discreta. De alguma forma, eu compreendia que ela necessitava reclamar, queixar-se muito e ter alguém para ouvir e cuidar das suas dores.

Mesmo assim, pouco a pouco ela conseguiu relaxar a musculatura por meio dos trabalhos corporais, diminuindo a hipertonicidade avaliada no início do tratamento.

Ao final das sessões, havia uma expressão facial de descanso, a amplitude de movimento nas articulações aumentava, e ela se surpreendia com a possibilidade de se sentir tão solta. As massagens suaves associadas ao trabalho de consciência corporal foram muitas vezes utilizados nesse período. Enquanto tocava determinada região de seu corpo, eu dizia, por exemplo: "Vou tocar no seu braço. Fique em contato com o toque das minhas mãos na sua pele... Sinta os tecidos logo abaixo da sua pele... Sinta o volume do seu braço".

Ao final das sessões, a paciente expressava o que sentia por meio de frases como: "Sinto proteção e carinho. É bom, muito bom!", "Esse seu trabalho é uma delícia", "Você sabe o que é melhor para mim", "Não senti aquelas mordidas na coluna". Eu percebia que, apesar da melhora vagarosa do quadro álgico, ela estava experimentando, a cada sessão, várias sensações de prazer vividas por meio dos cuidados corporais.

Após 10 meses, as dores reduziram-se expressivamente. "Estou sem dor! É muito bom!", dizia a paciente logo no início das sessões. Porém, quando eu solicitava mais detalhes sobre as sensações corporais, ela respondia: "Bem. Estou bem". Ainda era difícil para ela perceber, por exemplo, o posicionamento dos braços ou das pernas ou sentir se alguma região do seu corpo estava mais pesada ou mais leve.

Suas respostas provocavam em mim a sensação de monotonia, e durante as sessões eu sentia muito sono. Observava também que a paciente me olhava como se fosse me engolir. Tinha um olhar atento, fixo, intenso, com uma certa expectativa. Talvez um olhar de medo, um olhar assustado com a experiência de ser tocada e paralelamente carregado da necessidade de proteção. Eu também associava a sensação de ser engolida pela paciente com a sua voracidade primitiva, como um bebê sedento do leite materno. Certa sessão perguntei o que ela via nos meus olhos e respondeu: "Proteção. Sinto que estou protegida".

 

Introdução do Trabalho de Reequilíbrio Postural

Segui com a proposta das posturas de alongamento das cadeias musculares, solicitando a participação ativa da paciente no trabalho de reequilíbrio das tensões corporais. Ao final dessas sessões, ela relatava a sensação de se sentir "encaixada", como se eu a estivesse "colocando no lugar". No trabalho com ela, eu buscava descobrir, integrar e desenvolver diversos níveis de sua economia psicossomática: estrutura e consciência corporal, bem como conteúdos emocionais.

Aos poucos foi surgindo um resultado surpreendente de realinhamento da coluna vertebral. Essas transformações resultaram no aparecimento do contorno da cintura - elemento muito feminino - e suas costelas mostraram-se muito mais soltas e com maior mobilidade. Ela precisou reformar suas roupas e o sutiã com as próteses em função das mudanças morfológicas. Conquistou também mais agilidade e maior equilíbrio durante a marcha, proporcionando assim o abandono do uso da bengala.

Apesar da melhora dos sintomas físicos e das transformações na morfologia corporal, suas respostas práticas e objetivas ainda se repetiam. "Sei, entendo". "Já entendi". "Estou bem, não senti dor nenhuma." Era improdutiva qualquer tentativa de ajudá-la a acessar a esfera sensorial. Eu via claramente a impossibilidade dela de construir mentalmente formas abstratas ou de ser atingida de dentro para fora por sentimentos. Eu associava minhas dificuldades à imagem de uma mãe que necessitava de paciência e compreensão com seu bebê, que não conseguia falar o que sentia.

 

Desconexão e Reconexão

            Durante uma sessão, senti um sono muito forte e literalmente dormi enquanto realizava uma manobra na região cervical da paciente. Acordei assustada com seu ronco e vi que ela também dormia. A princípio, ela não admitiu que dormiu: "Foi uma respiração presa que saiu mais alta", disse.

Finalizei o estiramento cervical e me coloquei ao lado dela, dizendo: "Eu dormi. Dormi e acordei com o seu ronco. Só o seu corpo estava aqui. E você, onde estava?". Ela ficou me olhando, sorriu e disse: "Acho que dei um cochilo". E em seguida perguntou: "Você ficou com sono, é?". Confirmei, dizendo: "Sim, dormi".

É muito comum o terapeuta sentir esse sono com pacientes empobrecidos em sua subjetividade. Talvez, nesta dupla, somente o terapeuta seja capaz de entrar nesse estado pré-consciente do sonhar.

Na sessão seguinte, ela me contou: "Eu uso prótese, mas às vezes eu sinto coceira no bico do seio". Até então ela nunca havia dito que tinha a sensação fantasma nem falado sobre a prótese que usava. Aproveitei o momento para saber um pouco mais: "Como é a sua prótese?". Ela explicou: "É no sutiã". E enquanto me mostrava sua prótese, tirou o sutiã e mostrou também as cicatrizes da cirurgia. Fiquei tocada ao vê-las. Mesmo com certa indiferença por parte dela, foi uma grande exposição me mostrar suas cicatrizes. Associo o fato de eu ter assumido abertamente que adormeci na sessão anterior com a condição que lhe permitiu expor suas cicatrizes. Talvez a minha transparência tenha proporcionado o fortalecimento do vínculo terapêutico através da confiança.

 

Primeiro Sonho

Houve uma mudança na relação terapêutica após a última sessão. Vi uma grande transformação no seu olhar, que não era mais duro como antes. Havia uma serenidade e uma tristeza também.

Nesta sessão, ela contou: "Não sonhei, mas veio uma imagem". Imediatamente me surpreendi, pois ela nunca havia relatado um sonho antes. "Vi a porta da minha antiga casa, em que morei até os 40 anos. Mas no final da massagem eu confundi com a porta da entrada do prédio onde moro hoje". Tentei ajudá-la a explorar um pouco mais essa imagem, perguntando se tinha alguma lembrança da porta: "Não, não tenho nenhuma lembrança. Antes da reforma era mais utilizada para entrar em casa. Depois ficou mais fechada e a gente usava outra porta". Perguntei: "Você disse que morou até os 40 anos nessa casa. Que idade você tinha no sonho?". Ela respondeu: "Acho que eu tinha uns 18 anos... e estava dentro da casa".

As associações, as imagens e uma memória afetiva foram surgindo aos poucos. Seu tom de voz parecia mais flexível e estava mais conectada comigo e consigo mesma também. Na avaliação postural ao final dessa sessão, observei maior suavidade nas curvas da coluna, abaixamento das costelas e diminuição da rotação interna nos ombros. Despontava uma grande transformação física. A postura também estava mais harmônica.

 

Mais Emotiva

"Sinto que estou mais sensível. Quando assisto a um filme, me emociono mais... como quando eu era mocinha (entre 15 e 18 anos)."

Além das emoções mais afloradas, as descrições das sensações corporais eram mais ricas. "(Meu corpo) parece uma espuma. Não é duro como antes." Eu estava tocando a região abdominal da paciente, que estava deitada em decúbito dorsal. Associei a imagem de uma espuma que absorvia e chupava um líquido. Imaginei que eu estava sendo absorvida pela paciente. Fiquei um longo tempo em silêncio, apenas em contato através do toque da minha mão. Então ela disse: "Parece que voltei a ser jovem". Perguntei quantos anos aproximadamente ela sentia que tinha, e ela respondeu que teria uns 20 anos. Quando perguntei como era sua vida nessa época, contou dos amigos, dos bons momentos vividos na juventude, etc. "Tinha um pretendente que morreu num acidente de avião. Eu gostava dele." Ela complementou dizendo que não chorou, pois o rapaz morreu e não podia fazer nada. Disse que "não podia ser outra pessoa" e que nunca mais se interessou por alguém. "Se eu soubesse o que fazer e o tivesse esquecido e procurado outro pretendente... mas não sabia", disse ela, com uma certa tristeza dessa vez. Aqui ela sugere não saber como vivenciar um luto. Essa impossibilidade é muito significativa. Parece dizer que não sabia o que sentir, como sentir, como dar conta da ausência dele. Nem percebeu que ele estava faltando, que já não estava mais lá, e talvez por isso não pôde gostar de outro pretendente! Esse "não processo" de luto é significativo, porque deixa à mostra suas falhas de representação e simbolização da perda.

Ao final do atendimento, ela se posicionou em pé para eu comparar o que via de sua postura naquele momento com sua postura inicial. Notei a melhora no realinhamento da coluna, abertura na região torácica, com aumento dos espaços intercostais, e relaxamento dos ombros e braços, com aumento da amplitude de movimento na articulação escapuloumeral bilateral. "Sinto que soltou por dentro. Me sinto mais leve. O corpo eu já sentia solto, mas agora está soltando muito mais, só que por dentro." A cada sessão era um desabrochar de sensações e sentimentos. Pouco a pouco, aquele "bloco de gelo" ia derretendo.

 

As Cicatrizes

Um dia, ela chegou se queixando de dores nas costelas inferiores do lado esquerdo. Perguntei se eu poderia tocar na região, e ela se dispôs a tirar o sutiã com a prótese. "É uma cicatriz enorme!", eu disse a ela. Então ela pôde me contar em detalhes tudo o que aconteceu naquela época e como se sentiu, o que pensou, o sofrimento no pós-cirúrgico. "Sim, a cirurgia tirou tudo o que era feminino: os seios e os ovários. É como se tivessem matado alguém. Só faltou eu morrer mesmo. Eu sentia que era só uma boca. Não existia o corpo. Sabe uma pessoa que volta da guerra toda mutilada? Era assim que eu me sentia."

Nessa sessão, ofereci um trabalho com massagem muito suave na região das costelas, sobre toda a grande cicatriz da cirurgia. Fiquei muito em contato com a paciente e tocava com muito cuidado e atenção, como se as mamas estivessem concretamente embaixo do toque das minhas mãos. Em alguns momentos, ela ficou ruborizada e percebi que tocava efetivamente em suas mamas.

No final da massagem, no espaço verbal, ela disse: "Quando você tocou senti crescer. Sei que só tem pele e osso, mas era como se você tocasse meu seio. Sinto que meus seios cresceram. É como se a massagem tivesse ajudado a lembrar como eu era antes". Aqui se trata do "prazer" sentido no membro fantasma. Uma parte perdida do corpo que se torna viva e presente através do toque empático e delicado.

No final do atendimento, a paciente observou um vaso de rosas em cima da minha mesa e comentou: "Que rosas lindas!". Fiquei muito emocionada nesse dia. Depois de uma mutilação tão violenta, a paciente estava recuperando o contato com seu corpo, consigo mesma e com o feminino.

 

Novas Sensações, Novas Imagens

"Sou mais suave, sinto que estou mais delicada." "Eu era ríspida quando sentia dor." "Me sinto uma escultura, como se você estivesse terminando e tirando um pozinho. É muito bom." A terapeuta escultora de um corpo que, para além de mutilado, pode ser ressignificado enquanto obra de arte. Arte no cuidar, arte no tocar, arte que possibilita renovar para a paciente o ato de apropriar-se de seu corpo feminino. A evolução dessa paciente me tocou muito na época em que escrevi esta monografia, principalmente por testemunhar o prazer de viver o que ela sentia ser uma reconexão consigo mesma e com seu corpo.

 

Reflexões Teóricas

No início do tratamento, a objetividade da paciente em relatar a mastectomia e a histerectomia realizadas lembra a descrição dos pacientes citados por Pierre Marty em seu livro A psicossomática do adulto (1993), sobre o funcionamento operatório. Principalmente no que tange à praticidade com que a paciente lidou com sua cirurgia, bem como o seu discurso sem emoção ou imagens, um discurso unicamente ligado à realidade material.

Durante os trabalhos corporais, eu sempre informava o que faria e também qual região tocaria. Além disso, dava também referências sobre seu corpo, como tamanho, forma, extensão. Esta função de nomear as partes do corpo ajudou a paciente a construir seu próprio corpo, e a cada sessão, a cada experiência corporal vivida, ela pôde se reconectar à sua imagem e ao seu esquema corporal, conseguindo se sentir "no lugar".

Segundo Françoise Dolto, em seu livro A imagem inconsciente do corpo, "[...] o esquema corporal reporta o corpo atual no espaço à experiência imediata" (2017, p. 15).

E a imagem corporal, por sua vez:

[...] é peculiar a cada um: está ligada ao sujeito e à sua história. Ela é específica de uma libido em situação, de um tipo de relação libidinal. Daí resulta que o esquema corporal é, em parte, inconsciente, mas também pré-consciente e consciente, enquanto que a imagem do corpo é eminentemente inconsciente, ela pode se tornar em parte pré-consciente, e somente quando se associa à linguagem consciente, que se utiliza de metáforas e metonímias referidas à imagem do corpo, tanto nas mímicas "linguageiras" quanto na linguagem verbal. (DOLTO, 2017, p. 14)

 

A psicanalista Maria Helena Fernandes, em seu livro Corpo (2003), desenvolve o caminho do "corpo de sensações" ao "corpo falado", destacando a importância da função materna em nomear as partes do corpo do bebê:

 

Aquelas sensações que causam desprazer vão constituir uma demanda e, quando o bebê chora, está, à sua maneira, exprimindo uma queixa. A mãe responde a esse apelo apaziguando as sensações corporais desagradáveis. Para que ela possa escutar o corpo do bebê e interpretar os sinais de um corpo que não pertence mais ao seu, ela precisa dar provas de uma capacidade de investir libidinalmente esse corpo. O trabalho de escuta e interpretação só é possível quando existe um investimento da mãe no corpo da criança. Ora, esse investimento supõe que ela é capaz de experimentar um prazer ao ter contato com o corpo da criança e ao nomear para ela as partes, as funções e as sensações desse corpo. Esse investimento supõe que a mãe é capaz de transformar esse "corpo de sensações" em um "corpo falado". (FERNANDES, 2003, p. 89)

 

Outro momento interessante deste caso é o relato da paciente em relação ao olhar. Eu sentia que seu olhar era sempre atento, penetrante, fixo nos meus olhos, e com certa expectativa. Quando questionada sobre o que ela via nos meus olhos, ela dizia sentir-se protegida.

Em conferência proferida por Fontes (2006) na IV Jornada Brasileira de Terapia Morfoanalítica, na cidade de Ribeirão Preto, no estado de São Paulo, o pensamento da psicanalista francesa Geneviéve Haag em relação ao olhar foi citado, e penso que está em sintonia com o que acontecia, em sessão, neste caso clínico. Haag é seguidora da psicanalista Ester Bick e é especialista em crianças autistas. Em sua clínica, ela teve a oportunidade de acompanhar aspectos corporais importantes do nascimento psicológico em seus pacientes. Em seu artigo, "A ternura tátil: o corpo na origem do psiquismo", publicado na Revista Psychê (2006), Fontes cita Haag (1997):

 

No estado autista propriamente dito a criança é dominada por angústias do eu corporal: a queda sem fim e a liquefação, até a formação de seu sentimento de envoltório cujo desenvolvimento eles mesmos, à semelhança do que se passa no desenvolvimento normal, conseguiram detalhar para nós: é preciso combinar o tátil das costas, o envoltório sonoro com a penetração do olhar/psiquismo - isso forma um em volta. (HAAG, 1997, p. 23)

 

Ainda na mesma conferência, Fontes (2006) apresentou o pensamento de Haag sobre o processo de "gestação psíquica", que seria anterior ao "nascimento psíquico". Para que esse processo aconteça, a criança precisaria interiorizar a não separação antes de separar-se. Seguindo seu artigo citado acima, prossigo no tema do olhar neste caso clínico:

 

A hipótese de Haag sobre a noção de "estrutura rítmica do primeiro continente" (1986, p. 45-50) é algo extremamente inovador dentro desse tema. Ela revela a importância dos movimentos de vaivém, tanto da interpenetração dos olhares mãe-bebê, quanto do bico do peito na boca (durante o aleitamento) como garantia de um ritmo fundamental para a estruturação psíquica. (FONTES, 2006, p. 330-333)

A primeira integração, isto é, a introjeção de uma primeira pele psíquica, refere-se a esse "olho no olho", tão intenso a partir do segundo mês de vida, acrescido da interpenetração da boca, e combinado com o suporte posterior costas-nuca-pescoço, integrando também o envelope verbal suave. A partir desse momento, o sentimento-sensação de ter esse primeiro envelope em vias de diferenciação começa a se esboçar, talvez com um mínimo de sentimento de "espaço" entre as duas peles. (FONTES, 2006, p. 113)

 

Na relação transferencial comigo, a paciente vivia o encontro com o fundo do olho de sua mãe. Esse contato reforçou a integração eu - não eu, talvez vivida no passado de forma precária, constituindo assim a sua pele psíquica nas sessões. A citação acima tem uma grande sintonia com a proposta das sessões, em que, em muitos momentos, foram oferecidos justamente o apoio e massagens na região das costas, nuca e pescoço, acompanhadas da orientação verbal da terapeuta com entonação muito suave. Durante as sessões, um dos objetivos foi propiciar à paciente a consciência corporal de sua pele e da pele do outro também.

Na conferência de Fontes (2006), discutiu-se também a respeito dos possíveis recursos que os indivíduos/bebês que vivem em estado de não integração corporal e psíquica poderiam utilizar para sobreviver. A esse propósito, Ester Bick (1968), discípula de Klein e Bion, afirmava que, nesses pacientes, o recurso utilizado seria a formação de uma "segunda pele muscular" funcionando como uma prótese e substituindo o objeto continente não introjetado, mantendo assim coesas as partes do corpo, muitas vezes ainda não diferenciadas das partes do psiquismo.

Pouco a pouco, através das experiências corporais vividas ao longo das sessões e das reconexões com seus pensamentos, sentimentos e sensações, foi possível para essa paciente abrir mão da prótese/segunda pele muscular, reencontrar seu tônus muscular natural e mais harmônico e, efetivamente, abandonar sua órtese, a bengala. Reapropriou-se da função dinâmica do sistema musculoesquelético, isto é, de movimentos articulares mais livres e marcha independente, sem apoio. Lembrar do passado, fabricar mentalmente imagens durante as sessões, sentir-se mais emotiva quando assistia a um filme; todos estes indicativos mostram a mudança pela qual a paciente foi passando ao longo das sessões em relação ao aparelho associativo, outrora adormecido.

Um trabalho de consciência corporal tocando as cicatrizes da mastectomia trouxe não só a consciência da retirada de partes do seu corpo, mas também de sua parte ainda viva. "Quando você tocou senti crescer. Sei que só tem pele e osso, mas era como se você tocasse meu seio. Sinto que meus seios cresceram. É como se a massagem tivesse ajudado a lembrar como eu era antes."

A partir desse momento do processo terapêutico, a energia de vida e a energia do feminino ressurgiram. Na verdade, penso que durante todo o tratamento, antes mesmo dessa etapa, a paciente pôde introjetar elementos do feminino através dos meus cuidados e da minha presença. Como uma menina que tem um modelo, normalmente sua mãe, para aprender como ser mulher.

Conforme o artigo de Rubens Marcelo Volich, "Câncer de mama, entrelinhas, entranhas..." (1998):

 

A mama tem uma função essencial na estruturação das experiências precoces e no desenvolvimento de todo ser humano, e no das mulheres em particular. O seio - como é também denominado este órgão no âmbito da psicanálise e da cultura - tem uma função primordial na estruturação do psiquismo, na relação entre a mãe e seu filho, e também entre a mulher e seus objetos de desejo. (VOLICH, 1998)

 

O processo de erogenização do corpo estava comprometido nessa paciente, em face do aniquilamento físico produzido pelas cirurgias. Ele faz parte da constituição do ego corporal e, como desenvolvi anteriormente, participa da construção do pensar. Marília Aisenstein, em sua conferência "Face a face, corpo a corpo", explica:

 

Os autoerotismos não concernem apenas às zonas erógenas, mas ao corpo inteiro, e constituem os fundamentos do narcisismo. Podemos imaginar quantas experiências infelizes, carências, traumatismos podem impedir a criação deste sentimento de continuidade interna e, ao contrário, induzir a instalação precoce daquilo que chamo dispositivos antiobjetos, que mais tarde se tornarão dispositivos antipensamento. Efetivamente pensar é doloroso porque inclui o objeto. (AISENSTEIN, 2003, p. 150)

 

Entendo que a melhora do quadro dessa paciente foi facilitada pelo tratamento de abordagem psicocorporal, porque seu sofrimento se manifestava justamente no corpo. Essa era a porta de acesso ao sofrimento inconsciente que estava aberta.

Embora haja uma diferença quanto ao método clínico entre a Terapia Morfoanalítica e a Psicanálise, já que a primeira privilegia a atividade de tocar o paciente, ausente da segunda, podemos notar uma paridade em relação ao lugar e à importância do enquadre em ambas.

Em seu texto "A realidade psíquica, o sonho, a sessão", Décio Gurfinkel (2001) destaca aspectos importantes referentes ao enquadre analítico:

 

O enquadre da sessão delimita um campo de forças para investigação da realidade psíquica e, segundo proposição de Gilliéron (1986), possui uma função tópica e uma função dinâmica. Em sua função tópica determina um conjunto de parâmetros espaço-temporais fixos, e com sua função dinâmica institui algumas regras de interação originais que têm como efeito criar um campo de "desordem cultural" pela suspensão de certos tabus e instituição de outros.

Como o enquadre analítico busca produzir as condições de instauração deste "terreno psíquico", este fenômeno onírico? (GURFINKEL, 2001, p. 25)

 

O autor segue destacando a importância do "afastamento do mundo exterior" através da regressão, proporcionando o contato com o inconsciente. A estratégia seria manter os dados "materiais" fixos e regulares, formando assim o enquadre. Esses elementos seriam, por exemplo, a disposição fixa dos móveis, a regularidade das sessões e do pagamento.

O enquadre morfoanalítico também concorda com o enquadre psicanalítico no que diz respeito à regra fundamental (atividade associativa e atenção flutuante) e à regra da abstinência.Talvez pelo toque no corpo do paciente, que privilegia a via corporal, o terapeuta morfoanalista seja mais suscetível a uma "atenção flutuante corporal", ou seja, às sensações que surgem via corpo.

Um último ponto que gostaria de destacar emerge com a pergunta de Gurfinkel (2001), ainda no mesmo texto citado acima, a respeito do caráter regressivo da análise:

 

Haveria um choque, então, entre o objetivo progressivo e o caráter regressivo da análise? O que parece acertado afirmar, quanto ao caráter regressivo, é que a própria situação analítica comporta - e isto varia em intensidade e qualidade em cada momento do processo - um "efeito maternagem"; podemos então supor que a regressão e a transferência hipnótica realizam uma função de maternagem necessária para o crescimento psíquico. (GURFINKEL, 2001, p. 34)

 

Mas também:

A interpretação - e a perlaboração do analisando - adquirem a função fundamental de promover crescimento psíquico. Na metáfora do triângulo edípico, elas agem como função paterna ao intervirem na relação dual-narcísica-fusional, dando, através da palavra, voz a uma relação muda. (GURFINKEL, 2001, p. 35)

 

O trabalho corporal no quadro da Morfoanálise convida o paciente a viver os cuidados corporais que lembram os cuidados recebidos, ou não, numa fase muito primitiva da vida. A relação da dupla terapeuta-paciente muitas vezes se instala num ambiente de maternagem e com uma comunicação infraverbal, sem palavras e com muitas sensações. Ambiente que possibilita, ainda, pelo relaxamento alcançado, um estágio regressivo que pode ser vivido muitas vezes através do cochilo e da atividade de sonhar.

Mas também fazem parte desse enquadre momentos em que a palavra se faz presente, por exemplo, durante as diretivas de um trabalho de consciência corporal, postural ou através da interpretação do terapeuta, quando se faz necessário, analisando a vivência corporal associada aos conteúdos emocionais verbalizados.

A regressão acompanhada tem um efeito estruturante nos pacientes. Porém, é importante nomear as sensações vividas, principalmente para os pacientes que ainda não conseguem dar nome ao que sentem. A palavra tem uma função organizadora nesses momentos e, como cita o autor no trecho reproduzido acima, tem também uma interessante função de promover o crescimento psíquico através da instalação, de certo modo, do triângulo edípico.

Através do caso clínico apresentado, descrevi não somente a boa evolução clínica da paciente, como também relatei a associação entre o trabalho corporal e o trabalho analítico. Esse diálogo ficou muito mais claro durante a elaboração desta monografia de conclusão do Curso de Especialização de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae, e, ao finalizar o texto, surgiu em minha mente a expressão "corpo-palavra".

Atendi essa paciente até novembro de 2019. Ela já havia recebido alta há alguns anos, mas insistia em vir uma vez por mês "para manutenção". Seu funcionamento não era mais tão operatório como no início do tratamento, mas também não se detinha muito sobre seus pensamentos e questões internas.

Nas sessões ela descansava, sonhava, saía revigorada. Era como se ela recarregasse a bateria em nossos encontros. Também via ela envelhecendo... Normalmente, nos meses de dezembro e janeiro, ela tirava férias, e retomávamos em fevereiro. Este ano não foi diferente, porém, em dezembro de 2019, ela surgia, às vezes, no meu pensamento. Em anos anteriores, eu imaginava e temia a ideia de que um dia receberia a notícia de que ela havia falecido. Mas ela sempre atendia a minha chamada e retornava às sessões no início de cada ano. Em março deste ano, um pouco antes da pandemia, eu liguei para ela, pois nem tinha me dado conta de que fevereiro já havia passado. Infelizmente, recebi a notícia que tanto temia... Ela havia falecido em dezembro. Fiquei em choque na hora. A notícia veio fria e cortante. Sua irmã comentou que ela havia melhorado muito com o tratamento, e desligamos a chamada. Enquanto escrevo este artigo, ainda sinto uma tristeza imensa. Não pude me despedir... Além da minha tristeza autêntica, talvez eu também esteja elaborando os lutos dessa paciente que ainda não haviam se apresentado de forma tão encarnada em nossa relação terapêutica.


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ano - Nº 2 - 2020
publicação: 28-11-2020
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Autor(es)
• Cristina Satie Hirashima
Fisioterapeuta e terapeuta morfoanalista. E-mail: cristina@cristinahirashima.com.br

Referências bibliográficas

AISENSTEIN, M. Face a face, corpo a corpo. Trieb (Nova Série), v. 2, n. 1, p. 145-155, 2003.

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