ÁGORA
TEMA

Seminário com Christophe Dejours



Sermos recebidas por Christophe Dejours em seu Institut de Psychodynamique du Travail foi inesquecível! Com sua delicadeza e sensibilidade, repassou questões fundamentais da terceira tópica e do inconsciente amencial, para chegar à formulação da desafiante aquisição do senso moral na história subjetiva da emancipação: "Colocar em prática o senso moral é uma luta consigo mesmo, com seu próprio inconsciente amencial. É mais fácil ser amoral e clivado."

 

 

A partir da noção dos dois destinos da pulsão, satisfação sexual e satisfação pela renúncia à satisfação sexual, renúncia pulsional para Freud, Dejours assinala a sublimação como uma defesa que não acontece em detrimento do eu, mas como engrandecimento do eu. Assim, a sublimação não é mais suprimento da alma ou, no limite, reservada aos excepcionais; ela concerne a todos nós. Neste sentido, é importante conhecer o seu lugar, se possível ou impedida, já que tem um papel fundamental na saúde mental e somática.

 

 "A sublimação é uma saída da pulsão que pode ser aproveitada pelo corpo. É um paradoxo do trabalho. Quando funciona, é uma segunda chance para conquistar novos registros de sensibilidade, que são uma necessidade do corpo erótico. Escutar a dupla centralidade: a sexualidade e o trabalho vivo, a sublimação e os obstáculos da sublimação."

 

A busca de estudos da teoria da sexualidade de Freud com Laplanche foi singular: "A discussão com Laplanche foi para conhecer Freud, e, no meio do caminho, conheci Laplanche e a teoria da sexualidade generalizada". Até então considerava que, o que resistia à subversão libidinal, permanecia sob o primado do biológico instintual. Depois de Laplanche, coloca-se a pergunta: "Qual a origem da sexualidade na criança? Como pode estar a sexualidade na criança, se a biologia ainda não está presente? A sexualidade não pode vir do corpo, vem do exterior." É o primado do outro; é o adulto que introduz a sexualidade na criança.

 

A partir daí, Dejours aponta os caminhos e acidentes na construção do corpo erógeno, da vida subjetiva experimentada pelo corpo, e introduz o conceito de inconsciente amencial[1].

 

No registro do sexual, se origina e toma sentido o inconsciente sexual recalcado. O inconsciente amencial não é um inconsciente biológico; inscreve-se a partir do acidente da sedução. Os dois, inconsciente recalcado e inconsciente amencial, são herdeiros da sedução, mas são formados por processos diferentes. Enquanto o inconsciente recalcado é constituído pelo resultado da tradução pela criança e seus resíduos não traduzidos, o inconsciente amencial resulta do acidente da sedução, que faz transbordar a excitação no corpo da criança, sendo impossível qualquer pensamento, quando se inscreve uma mensagem intraduzível.

 

Todo adulto é um sedutor, e toda criança é um hermeneuta. A primeira tradução pela criança passa pela aquisição de um certo controle, da tentativa da criança de transformar a situação crucial de uma posição absolutamente passiva, em que é aberta à implantação.

 

Implantação, tradução pelo corpo da criança, supõe iniciar um jogo entre o corpo da criança e o corpo do adulto (mãe, pai, babá, professor, avós, irmão...). O tempo perigoso é quando a criança vira a sedutora, se torna ativa e convida o adulto ao jogo sexual a partir de jogos e brincadeiras, podendo tocar numa zona que ele não suporta e não consegue controlar a excitação, tendo uma passagem ao ato; "é quando o adulto fica doido". É tudo o que na criança, pelo engajamento do próprio corpo, e a mímica fantasmática é sempre uma maneira de engajar o corpo, solicita o adulto e toca numa zona que ele não suporta, levando a uma passagem ao ato impossível, de violência e até de abuso sexual. Isto é uma violência contra o corpo da criança, e a capacidade hermenêutica da criança tem limites, especialmente quando há o acidente da sedução. O acidente impede os pensamentos, faz transbordar os excessos no corpo da criança, e não tem pensamento possível. Não pode ser traduzido, mas algo se inscreve.

 

"Em outras palavras, ao impedir o pensamento da criança, a violência do adulto torna então impossível tanto a tradução quanto o seu resíduo - o recalcamento. Neste caso, aquilo que se sedimenta no inconsciente da criança em resposta à experiência de uma excitação traumática não pode proceder do recalcamento. Certamente, um traço dessa experiência permanece, mas não passa pelo pensamento. O inconsciente que se forma aqui é diferente do inconsciente sexual. Trata-se de um inconsciente (...) que designamos como amencial (...). Na medida em que não há recalcamento enquanto reverso de uma tradução, é possível considerar que se trata de uma ação de afastamento. Essa poderá ser caracterizada como um exílio, um banimento, uma proscrição ou uma relegação dessa experiência para fora do pensamento".[2]

 

A clivagem resulta de dois processos de formação de construção do aparelho psíquico; do inconsciente recalcado e do inconsciente amencial. Todos têm a clivagem. O que varia é o ponto onde recai a barra de clivagem: mais perto do inconsciente recalcado ou mais perto do inconsciente amencial. Quando foi muitas vezes vítima de violência, a barra está mais para amencial, menos para recalque. Ninguém está protegido de uma crise e descompensação. A relação com o outro pode tocar a zona de sensibilidade do inconsciente e desestabilizar o ponto de clivagem. Normalmente, o inconsciente amencial é silencioso, mas, com a desestalização da barra da clivagem, ele irrompe, se torna muito barulhento e destrutivo. Neste sentido, a relação amorosa é bem perigosa. O que ameaça o corpo erógeno e o desestabiliza é vivido como uma experiência do corpo que se ausenta, que desaparece, e experimenta-se um corpo como frio, a frigidez. O inconsciente amencial é uma parte inabitada do corpo, de um corpo que não experimenta nada, um corpo que não se experimenta em si mesmo. Esta é uma tópica do sistema e do corpo.

 

A descompensação pode causar uma desorganização somática, passagem ao ato ou delírio, dependendo da estrutura da personalidade.

 

Na psicose, não está em jogo lugares do corpo, mas são os jogos de corpo que a criança tentou experimentar no corpo, em seu contato com o adulto, que pode levar este à loucura. Toca especificamente a função em causa nos jogos do corpo, incluindo os jogos do espírito, que se tornaram impossíveis, porque o adulto não pôde jogar. O que é excluído, ao lado do inconsciente amencial, são os jogos do corpo, não só no sentido ativo, mas também no passivo. Certos jogos são proscritos, são impossíveis. Quando se aproxima do jogo, vem o medo de deflagrar a violência. Não são as zonas do corpo que são perigosas, mas os jogos do corpo. Dejours aponta que a função cognitiva amadurece a partir dos jogos. Quando o adulto não pode jogar, a função é comprometida. Há jogos com o pensamento da criança que o adulto não pode jogar, e aí, ao invés de bater, ou fazer um abuso sexual, ele faz um ataque contra estes jogos da criança, que passa pela manipulação do pensamento. "A criança tenta elaborar teorias sexuais, um romance familiar, uma história de suas origens", dizer o que está sentindo na relação com o adulto, mas o adulto enlouquece, desqualifica e "entorta" o pensamento da criança, deixando-a perdida, sem saber o que sente.

 

É um ataque à cognição, à função do pensamento, entrando-se, assim, no registro da psicose.

"A função que foi excluída da subversão libidinal não é uma função periférica, mas a cognição. A vulnerabilidade situa-se no plano do funcionamento cognitivo (escolha da função), e os transtornos somáticos localizam-se nas redes neuronais do cérebro que são indispensáveis para esse funcionamento (o órgão)."[3]

 

 

Para Dejours, o analista precisa se familiarizar com a resistência do inconsciente do paciente, com o que não funciona, precisa implicar-se em engajar o corpo e a capacidade de sentir do outro. Apoia-se primeiramente na resistência do paciente, naquilo que habita o corpo de outra forma, para criar registros novos de possibilidade, novas ideias que lhe permitam compreender o paciente. A partir da capacidade de suportar isso que não funciona, de suportar essa impossibilidade, vem uma ideia, de uma transformação, o que é um trabalho de si sobre si mesmo, que passa pelo sonho, o trabalho do sonho. Dejours chama o trabalho de transformação de si, no centro do qual o sonho permite habitar o corpo de outra forma, de perlaboração pelo sonho.

 

Dejours reposiciona questões fundamentais. Para ele, o trabalho não é achar a causa da doença. Tem vírus por todo lado, friagem, calor, a natureza etc. O problema da psicossomática não é procurar as causas psíquicas das doenças somáticas; todas têm uma dimensão genética, do ambiente e psíquica. A questão é saber por que não ficamos doentes o tempo todo, caracterizar a forma de habitar o corpo, continuar normal, estabilizar a doença, porque a saúde perfeita não existe, é o resultado de uma luta. A questão é perguntar do que é feita essa luta. O que é preciso mobilizar em si mesmo, para lutar contra a doença e a descompensação. Depende do amar-se, mas precisa de um tipo de relação com os outros, para que eles tomem conta de você, cuidem de você. A questão é como o sujeito se mobiliza, como faz para continuar normal e se curar. O Supereu é anormal, ele vai contra o Eu o tempo todo, ele não é justo, não é bom, não é verdadeiro. O futuro da doença depende da forma como me mobilizo para lutar. E se você não fizer essas lutas, ninguém fará por você. A gente vive para o amor, luta para o amor, do outro e de si mesmo.

"Somos todos capazes de delirar, de somatizar, mas nem todos são capazes de lutar".

 

"Para chegar à Teoria do Senso Moral é preciso lutar uma nova luta, contra a clivagem. Para Freud, a clivagem está no perverso sexual, é amoral, imoral. Uma parte do sujeito é composta pelo eu gentil, que sente os afetos, e outra que faz o pior, e tudo certo. Não é moral. A clivagem da terceira tópica é mais complexa, tem relações ambíguas. Uma parte do sujeito é composta pelo eu gentil, mas se confronta com seu inconsciente amencial, que o incomoda na sua vida. Usar o senso moral, colocar em prática o senso moral, é uma luta consigo mesmo, com seu próprio inconsciente amencial. É mais fácil ser amoral e clivado."

 



 


voltar ao topo voltar ao sumário
ano - Nº 2 - 2020
publicação: 28-11-2020
voltar ao sumário
Autor(es)
• Mila Bitelman
Departamento de Psiquiatria PAES – Programa de Atendimento e Estudos de Somatização, Unifesp
Psicóloga, Psicanalista, Aperfeiçoamento em Psicossomática Psicanalítica;
Rua Juquis, 273, cj 44, São Paulo, SP, Brasil.
milabitelman@uol.com.br

• Denise D. Moreira
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae
Psicóloga, Psicanalista, Especialista em Psicossomática Psicanalítica;
Rua Artur Azevedo, 1767, cj 127 – São Paulo, SP, Brasil.
denisedmoreira@gmail.com

Notas

[1] "Nossa hipótese se baseia na observação cínica, em virtude da qual o inconsciente recalcado se faz conhecer no pré-consciente pelos retornos do recalcado e pelas representações de palavra. Certas manifestações clínicas, dentre as mais ruidosas, fogem às formas reconhecidas de retorno do recalcado (passagens ao ato, crise evolutiva de uma doença somática, confusão mental). Elas trazem, no entanto, com toda a evidência, a marca de uma influência do inconsciente. A hipótese que tentamos demonstrar neste livro consiste em considerar que essas manifestações são produzidas por efeitos de uma parte específica do inconsciente. Este seria formado por duas áreas distintas. A primeira área seria formada pelo recalque originário; é o inconsciente sexual, também chamado de inconsciente recalcado. A segunda área do inconsciente seria formada, em contrapartida, pela violência exercida pelos pais contra o pensamento da criança. Quando a atividade de pensamento da criança, em resposta à sedução exercida pelo adulto sobre o corpo dela, desencadeia a violência do adulto, o pensamento da criança é interrompido. Sem pensamento, não pode haver recalque originário (que supõe uma mensagem do adulto, um enigma - pensamento; pela criança, um trabalho - do pensamento - de tradução e um resíduo não traduzido, de acordo com a teoria da sedução de Laplanche). Essa área do inconsciente, formada sem passagem pelo pensamento da criança, é a réplica, no plano tópico, das zonas do corpo excluídas da subversão libidinal e do corpo erógeno.

Formada fora de qualquer pensamento próprio da criança, essa área do inconsciente será denominada "sem pensamento" ou inconsciente amencial. Por falta de pensamento em sua base, ele não poderia gerar retornos do recalcado nem qualquer pensamento novo. O principal modo de reação desse inconsciente amencial seria a desorganização do eu ou o desligamento crítico (sua forma típica é a amência, de Meynert, segunda razão para a denominação de inconsciente amencial) e o agir compulsivo sem pensamento."

"(...) a clivagem, nessa concepção, não é vista, portanto, como um mecanismo de defesa específico. Ela é apenas o resultado final, no plano da estrutura, dos outros mecanismos defensivos. A clivagem é um conceito topológico e não um conceito dinâmico." Dejours, C. Primeiro, o corpo: corpo biológico, corpo erótico e senso moral, Porto Alegre, Dublinense, 2019, p. 84-85 e 113.

 

[2] Dejours, C. Primeiro, o corpo: corpo biológico, corpo erótico e senso moral, Porto Alegre, Dublinense, 2019, p. 161.

[3] Dejours, C. Primeiro, o corpo: corpo biológico, corpo erótico e senso moral, Porto Alegre, Dublinense, 2019, p. 158.

 

Referências bibliográficas

 


voltar ao sumário
Copyright, 2019. trama, Revista de Psicossomática Psicanalítica