RESENHA

Psicanálise e Oncologia: Alcances da Psicossomática Psicanalítica. CHIARELLA, A. Peter e o adoecer silencioso - Psicanálise e câncer São Paulo: Escuta, 2018.

Maria Luiza de Assis Moura Ghirardi


 

 

Todos os seres vivos sabem que são mortais, e a prova disso é que lutam e sabem lutar contra a morte, mas não a têm presente na consciência.

(Edgar Morin, 2020)

 

Quando se trata de uma enfermidade grave como o câncer, encontramos poucos trabalhos no âmbito da psicossomática psicanalítica que permitem compreender as múltiplas expressões do sofrimento psíquico envolvido. Temores em torno da dependência, da dor e da morte tendem a marcar as experiências advindas do tratamento necessário. Como sublinha o filósofo Morin, no auge de seus 99 anos, embora saibamos de nossa mortalidade e da luta ora estabelecida contra ela, não temos acesso à experiência da morte e, portanto, às suas representações. A aceitação da finitude humana é um trabalho psíquico fino e, amiúde, doloroso. Em 1923, Freud já nos fazia ver que "a morte é um conceito abstrato de conteúdo negativo para o qual não nos é possível encontrar nenhuma correlação no inconsciente" (apud ALIZADE, 2012, p. 50). Ninguém viveu a sua morte, e talvez essa seja uma ferida narcísica por excelência.

O testemunho da dor desses pacientes revela, com frequência, uma dimensão traumática instalada a partir do adoecimento, convocando-nos à montagem de práticas de cuidado voltadas ao processo de elaboração e produção de sentidos. A clínica psicanalítica nos mostra experiências acerca da morte com um potencial desorganizador, tornando fundamental a montagem de um enquadre voltado à escuta e ao acolhimento específicos, que privilegia a disponibilidade sensível dos profissionais para o acolhimento e o reconhecimento do sofrimento psíquico desses pacientes.

É o que encontramos neste precioso livro de Andréa Chiarella. A partir de suas próprias dores e de experiências derivadas da comunhão de diferentes etapas de sua vida, a autora revela uma rica aproximação com o sofrimento de cada um de seus pacientes, Peter, Rosa e João. O rico e potente trabalho aqui exposto trata de um assunto espinhoso, porém fundamental, por meio do qual Chiarella descortina sua sensibilidade e riqueza de pensamento.

O livro tem origem em sua pesquisa de mestrado e no acompanhamento de pacientes com desorganização somática grave, entendida como expressão de seus estados psíquicos mais primitivos, não representados, e de dinâmicas marcadas pelo vazio, a destrutividade, o falso self e a violência. Ao longo do livro, ela sublinha a importância da presença da escuta do psicanalista junto a esses pacientes, capazes de voltar "justamente para o que se repete dentro da singularidade da história de cada um: o mal-estar do desamparo e as vivências traumáticas precoces" (p. 129).

Inspirada no enquadre teórico da Escola de Psicossomática de Paris, enriquecido por autores contemporâneos como Winnicott, Nicolas Abraham e Maria Torok, Marilia Aisenstein, Ferenczi, Joyce McDougall, entre outros, Chiarella realça a importância do acompanhamento preciso do paciente, que valorize as histórias singulares de cada um, as vivências traumáticas e as dinâmicas familiares presentes no âmbito psicoterapêutico.

A clínica da desorganização somática revela, com frequência, como o corpo se oferece como destino dos excessos pulsionais não representados. Excessos que não encontram uma mediação psíquica por meio da elaboração. Muitas das teorias do campo da psicossomática psicanalítica derivaram do conceito freudiano de neuroses atuais, desenvolvido na última década do século XIX. Freud já assinalava a presença, nesses casos, de uma carência ou uma relativa inoperância da mediação psíquica dos excessos pulsionais, assim como uma descarga excessiva ou escassa, ambas alterando tanto o equilíbrio psíquico como o somático. Com um desequilíbrio da economia psicossomática e destacados dos quadros das psiconeuroses, os pacientes chamados de somatizadores sofrem no corpo e pelo corpo, por meio das variadas expressões de sintomas físicos. 

As ideias centradas na Escola Psicossomática de Paris, cujo principal expoente foi Pierre Marty, surgiram em meados do século XX, ampliando o horizonte da escuta clínica e abrindo um campo para novas compreensões acerca do sofrimento do paciente acometido por graves adoecimentos. Na clínica, novos aportes se fizeram necessários, no sentido de uma "elasticidade da técnica", já preconizada por Ferenczi e entendida como a necessária flexibilidade diante das dinâmicas psíquicas específicas que esses pacientes apresentam.

O enquadre terapêutico, então, sustentado pelos intensos movimentos transfero-contratransferenciais nesses casos clínicos, pode favorecer uma abertura em busca de novas significações do adoecer. Nesse sentido, Chiarella destaca a importância de uma escuta diferenciada do clínico e da equipe, visando oferecer ao paciente a ampliação de seus recursos psíquicos justamente quando a saída somática se caracterizou como solução hegemônica.

Nessa clínica da desorganização, como bem sublinha Tabacof (2018), "é frequente ouvirmos o paciente dizer que ‘o câncer foi o preço a pagar’ para poder continuar a viver", sugerindo que a eclosão de uma doença como o câncer poderá, paradoxalmente, significar, para alguns pacientes, a interrupção de um processo mortífero silencioso, enraizado em núcleos profundos do psiquismo e sem simbolização.

Buscando refletir sobre a possível relação entre ambiente inicial, traumas precoces e eclosão da leucemia na vida adulta de seu paciente, a autora destaca a importância de um tratamento psicanalítico transcorrer ao lado do tratamento médico. Ao ressaltar a importância de uma escuta diferenciada no contexto hospitalar com esses pacientes e seus familiares, Chiarella emprega o método psicanalítico em sua potência, em uma perspectiva de enquadre marcado pela resistência hospitalar em subsumir os aspectos da subjetividade do paciente.

O livro está dividido em seis capítulos, com uma linguagem consistente quanto à utilização dos conceitos da psicossomática psicanalítica, acrescidos de importantes aportes de autores da clínica psicanalítica contemporânea. Seu percurso é rico em reflexões que auxiliam profissionais de diferentes contextos interdisciplinares na observação de aspectos e manifestações não verbais que se apresentam ao lado das discursivas.

No primeiro capítulo, Chiarella nos apresenta a história de vida de Peter e do atendimento terapêutico. Seus relacionamentos afetivos primordiais, com as figuras parentais, com a mulher amada, os múltiplos abandonos vividos. Da mesma forma, já se descortinam os aspectos da técnica utilizada, como a transferência, o trabalho na contratransferência e as questões ligadas às contingências do setting utilizado no ambiente hospitalar e o enquadre analítico.

Ao abordar as questões somáticas, no segundo capítulo, Chiarella utiliza as ideias de autores que estudam e pesquisam sobre o câncer, sublinhando os ensinamentos da Escola de Psicossomática de Paris e do Curso de Especialização em Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae, no qual fez sua formação durante três anos. Além de explicitar os operadores teóricos da Escola de Paris, ela traz também o pensamento de importantes autores contemporâneos, como Aisenstein, Winnicott, McDougall. As falhas ambientais são reconhecidas pela autora como fatores coadjuvantes das desorganizações em sintomas somáticos graves como o câncer.

Ao reservar o terceiro capítulo para discutir algumas especificidades apresentadas pelos pacientes onco-hematológicos, Chiarella discorre sobre "a enfermidade prévia à enfermidade", expressão utilizada por Zubiri (2014) para referir-se a um frequente e, amiúde, imperceptível estado angustiado desses pacientes, apontado como precursor da desorganização progressiva. Diante da incapacidade de lidar com a situação traumática por meios psíquicos, esses pacientes sofrem um transbordamento. Seus interesses habituais desaparecem, ocorre um desinvestimento objetal, um apagamento da libido, a perda da atividade onírica, do sentido do humor, enfim, da maior parte de sua subjetividade.

No quarto capítulo, Chiarella recupera a importância da relação mãe/bebê e do ambiente familiar para a constituição subjetiva de cada um de nós. Problematiza, assim, a importância da consideração da história de vida e a herança transgeracional, discutindo os modos como se dão a transmissão psíquica e a relevância da presença do outro na constituição psíquica. E se pergunta se, em alguns casos, haveria uma ligação possível entre um trauma vivido precocemente e adoecimentos na vida adulta. Traz aportes valiosos de Freud, Ferenczi e Winnicott para pensar a noção de trauma.

Um estudo pormenorizado sobre a influência da dinâmica familiar no caso clínico atendido é feito de modo primoroso no capítulo cinco. Sempre amparada por um pensamento consistente, a autora faz potentes articulações teórico-clínicas.

Com seu pensamento clínico apurado, Chiarella dedica o sexto e último capítulo a discorrer sobre o sofrimento psíquico observado nos pacientes acometidos pela leucemia. Fruto de uma grande desorganização, conforme descreve a Escola de Paris, a autora busca, nesse capítulo, uma inovadora aproximação entre a clínica dos pacientes com câncer e a dos pacientes onco-hematológicos. Sustentada pelas ideias de importantes autores, que utilizam referenciais teórico-clínicos sobre a noção de trauma, ela descreve, cuidadosamente, as necessárias modificações técnicas que o acompanhamento clínico desses pacientes requer, como a "função materna", a "construção" como substituto da interpretação, a "flexibilidade do enquadre", "a escuta sensível do analista".

Esse é um livro necessário, cuja leitura é fundamental a todos os profissionais de equipes da saúde que se propõem a uma escuta do sofrimento desses pacientes oncológicos. Como nos diz a autora, "mediante uma escuta diferenciada, a doença poderá ser circunscrita e transformada em um objeto simbolizado, sendo, dessa forma, redimensionada, de modo a abrir espaço para outras representações e novos sentidos" (p. 131).

Boa leitura a todos!


 


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ano - Nº 3 - 2021
publicação: 20-11-2021
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Autor(es)
• Maria Luiza de Assis Moura Ghirardi
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

Psicanalista. Mestre pelo Instituto de Psicologia da USP. Membro do Departamento de Psicossomática Psicanalítica e docente da Especialização em Psicossomática Psicanalítica e Clínica Contemporânea do Instituto Sedes Sapientiae. Membro do Departamento de Formação em Psicanálise. Membro do Instituto Durval Marcondes da SBPSP. Autora do livro Devolução de crianças adotadas – um estudo psicanalítico (Primavera). Organizadora dos livros Laços e rupturas – Leituras psicanalíticas sobre adoção e o acolhimento institucional (Escuta) e Desamparo, adoção e acolhimentos: escutas psicanalíticas (Blucher) (no prelo).

Referências bibliográficas

ALIZADE, A. M. Clínica con la muerte. 2. ed. Buenos Aires: Biebel, 2012.

MORIN, E. Conhecimento, ignorância, mistério. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.

TABACOF, D. "Eu vou morrer curada": discussão sobre o "trabalho de somatização". Psicanálise - Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, 20 (1), 47-58, 2018

ZUBIRI, M. (2014) Abordaje psicoanalítico de los enfermos somáticos graves. Palestra proferida na Sociedade de Psicanálise de São Paulo. (Material impresso apostilado.) 


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